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Crítica | Vive-se Uma Só Vez

por Laisa Lima
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Quando Caravaggio e sua arte encontraram o cinema alemão da década de 20 e, logo depois, a teoria do crítico Nino Frank, o noir se estabeleceu. O taciturno marcante das cores e das histórias nesse estilo vivem em obras como Pacto de Sangue (Billy Wilder, 1944) e A Marca da Maldade (Orson Welles, 1958), memoráveis o suficiente para se fazer questionar o que há mais para ser visto além do noir contido nos filmes mencionados. De fato, ademais das características centrais desse gênero, como o núcleo policial e o suspense integrado nele, não resta nada de novo para se trabalhar. Fritz Lang, por exemplo, assumiu em Vive-se Uma Só Vez a réplica constante das diretrizes da vertente artística nos Estados Unidos, mesmo a transformando em uma duplicata de qualidade.

Após transitar entre a modernidade duvidosamente progressiva em Metrópolis (1927) e o terror pairante de M, O Vampiro de Dusseldorf (1931), o diretor austríaco de residência (e talvez preferência) metade alemã e metade americana, Fritz Lang, estaciona em Vive-se Uma Só Vez. E eis a composição de tal parada: Eddie Taylor (Henry Fonda) é um ex-presidiário apaixonado por Jo (Sylvia Sydney), sua noiva. Os dois planejam comprar uma casa, mas a empreitada se estagna ao rapaz não conseguir um emprego, sempre esbarrando no preconceito alheio. Como adição, Eddie é acusado de um roubo, tornando-se novamente um criminoso, agora fugitivo. A base simples da trama é entendida em poucos minutos, enquanto o desenrolar dela pode ser acentuado ou pela previsibilidade ou pelo total desconhecimento dos passos seguintes. 

Por meio da dúvida, o início do longa-metragem instala-se. Desde as locações semelhantes a cenários de sitcom até a personalidade dos personagens, a frequência de incertezas sobrevive em uma atmosfera quase romântica – o que por si só já é motivo de indagação em um filme vendido como noir. A provável intuição despertada no espectador é a de esperar pela manjada fuga do delinquente e da consequente batida policial atrás dele, sob, claro, chuvas torrenciais e rajadas de balas. O que acontece, porém, é um ambiente paciente de descoberta de quem são os protagonistas, com as divergências gradativas à medida em que a dubiedade presente neles seja aceita de maneira fluida, ao mesmo tempo em que a desconfiança ainda domine. O casal principal, fonte primordial de anexação em um filme, aqui transmite o que sentimentalmente a obra quer dizer, tendo em Jo e Eddie, materializações das condições impostas pelos acontecimentos e do controle das emoções que conduzem o caminho de ambos. 

Embora alvos de imprecisão, os personagens de Sylvia e Henry carregam em Vive-se Uma Só Vez, inicialmente, a contraposição de ideias e jeitos de se portar utilmente utilizadas para a credibilidade do caráter distinto dos dois, modificável conforme a gradual dificuldade da situação de Henry se faz notória. O roteiro, ainda que incisivo, se permite demonstrar a relação conturbada entre Jo e Eddie, e faz de tal afetividade, o sustento narrativo do filme. Por isso, nos primeiros atos do longa-metragem, o suspense é pautado no vínculo amoroso dos dois, sem ser necessariamente um thriller romântico, não contando com a suavidade e o protagonismo das moralidades do amor, recorrente em histórias melodramáticas. A solidificação do noir cabe, então, nas modulações da construção das pessoas que definem os protagonistas, dúbias o suficiente para causarem uma falta de partidarismo conforme as ocorrências se diluem, todas com um intuito instigante, visto a “bola de neve” que vai se tornando o filme.

As câmeras em travelling pelos cenários e os ângulos inusitados, como a perspectiva de Jo e Eddie por dentro da mata e a imagem no canto da casa em um plongée tortuoso de uma personagem, não enquadram Fritz Lang como o reprodutor de uma obra qualquer. A facilidade com que o cineasta manuseia até o sentir do público, dando zooms quando a intenção é extrair comoção ou surpresa da cena, ou reforçando o jogo de sombras ao desejar repassar o esmaecimento de um episódio não completamente esclarecido; é sentida com facilidade. Entretanto, mesmo que seu domínio diante o tom do enredo seja grande, os lapsos de tempo são tidos como adivinhações, já que não há clareza nesse quesito. E ainda que o artista possua um vasto controle para medir o balanço entre a seriedade e o propositalmente irreal, tal equidade não é distribuída entre os atos do longa-metragem, tendo sequências com mais conteúdo e outras não.

Vive-se Uma Só Vez é um Fritz Lang em contato com a América. Visivelmente moldando seus filmes, o austríaco chega, desta vez, em um longa-metragem que poderia ser mais denso, mas que não chega a ser raso. Com alguns problemas de conduta e de divisão no peso das circunstâncias, a obra não se delimita apenas a estereótipos reparados nos demais longas-metragens noir, aglomerando fatores já manipulados, mas os ajustando de maneira particular, tal qual o tema bandido versus segurança. Organicamente aderido, o enredo se detém a não criticar diretamente alguma das partes envolvidas na história, e sim fazer delas uma unicidade que não comprometa seu desenvolvimento e seu objetivo de atingir um suspense imersivo. E isto pode ser algo que o trabalho de Lang consegue obter, não retirando o mérito de seu bom desdobrar de uma trama básica e, mesmo assim, promissora no que diz respeito à tensão. Pode não ter sido o melhor feito do diretor, mas certamente é um daqueles escapismos que em nada importa quem é vilão ou mocinho.  

Vive-se Uma Só Vez (You Only Live Once) — EUA, 1937
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Gene Towne, C. Graham Baker
Elenco: Sylvia Sidney, Henry Fonda, Barton MacLane, Jean Dixon, William Gargan, Jerome Cowan, Charles ‘Chic’ Sale, Margaret Hamilton, Warren Hymer, Guinn ‘Big Boy’ Williams, John Wray, Walter De Palma
Duração: 86 min.

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