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Crítica | WALL-E

por Luiz Santiago
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Em 1994, enquanto Toy Story já estava e fase de pós-produção, os diretores John Lasseter, Pete Docter e Joe Ranft tiveram um dos almoços mais produtivos de todos os tempos. Foi nessa ocasião que surgiu as ideias para a produção de Vida de Inseto (1998), Monstros S.A. (2001) e Procurando Nemo (2003) sem contar a primeira conversa sobre uma ficção científica nos moldes de Robinson Crusoé, onde um robô solitário foi deixado ligado — ou permaneceu ligado –, tentando limpar um mundo coberto de lixo enquanto a humanidade esperava, por um período que deveria ser de cinco anos, na nave Axiom, no espaço.

Ambientado no ano de 2085, WALL·E possui uma das mensagens mais críticas à sociedade feitas em um filme da Pixar, talvez em par com Up – Altas Aventuras. Com um roteiro de diálogos mínimos e conceitos bastante densos como ideologia, axioma (que é o nome da nave), cultura de massa e alienação, especialmente em favor da mídia + máquinas, o filme coloca a humanidade em um limite que não nos parece assim tão impossível, distante, irreal. Se tirarmos o grande escopo de tenologia futurística que marca o longa, inclusive em suas referências visuais e conceituais a películas do gênero como 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) e Planeta dos Macacos (1968), é possível vermos sua matéria bruta em nosso tempo, desde a produção desenfreada e irresponsável de lixo; do escanteamento da crítica às mídias para uma alienação completa por uma tela ou um informativo; do sedentarismo doentio; da dificuldade maior em se fazer e manter laços humanos.

E tudo isso se torna ainda mais impressionante quando nos damos conta de que WALL·E é quase um filme mudo. Sua primeira parte, com fotografia harmoniosa e romântica é marcada apenas por ruídos e sons de um ambiente poluído e inabitado. A segunda parte, já na nave Axiom com sua fotografia de forte contraste (em várias paletas de cores) mas predominantemente estéril, possui algumas vozes de computadores e poucas humanas, mas nunca a ponto de se tornarem fortemente relevantes na história, que se sustenta pela simpatia dos dois robôs protagonistas, o Waste Allocation Load Lifter – Earth Class, cuja sigla dá nome ao filme e uma Extraterrestrial Vegetation Evaluator, que faz as cores desbotadas da Terra poluída ganharem um sutil filtro de rosa e azul — veja a foto de destaque desse texto e lembre-se da cena — quase como uma representação do fascínio de WALL·E pela visitante, algo que o faz olhar o mundo de uma forma diferente.

O diretor Andrew Stanton afirmou ter assistido, com parte de sua equipe, a filmografia de Charles Chaplin e Buster Keaton, no período de um ano, para terem uma base de como desenvolver a narrativa do filme de forma inteligível, profunda, cômica e romântica sem usar palavras, isso sem perder os já citados temas filosóficos e a camada ecológica, tecnológica e religiosa (metáfora de Adão e Eva) que se sobrepõe ao enredo.

Para que a mágica fosse possível, um dos profissionais contratados para trabalhar na produção foi Ben Burtt, premiado engenheiro de som responsável pelo setor em filmes como Star Wars: Uma Nova Esperança (1977), Os Caçadores da Arca Perdida (1981), E.T. – O Extraterrestre (1982), dentre outros, e que em WALL·E foi o criador das vozes, o supervisor de edição e mixagem de som.

Ao lado de Chris Barron, que fez a transferência digital de todo o aparato sonoro, Ben Burtt criou uma das mais ricas bibliotecas de sons para um filme da Pixar, alternando suas escolhas entre a probabilidade física de movimentação de determinado robô/máquina/aparelho/pessoa até a representação emotiva dele, dependendo qual das duas escolhas cabiam melhor em uma ocasião. E vejam que os sons se misturam a sintetizadores, gravação de ruídos feitos por aparatos especiais (simulação, inclusive com muitas referências ao que Walt Disney fazia em suas animações), manipulação e criação de sons digitais e adição e modulação de vozes humanas para os robôs WALL·E, EVE, M•O (Microbe Obliterator) e AUTO, o piloto automático baseado em HAL 9000 de 2001: Uma Odisseia no Espaço. Também o fato de Ben Burtt ter trabalhado nos 6 episódios de Star Wars lançados até aquele momento deu aos robôs de WALL·E uma certa familiaridade sonora com a dupla R2-D2 e C3PO, deixando o público em um território simpático de comunicação por ruídos e guinchos que não lhe era completamente estranho.

Eu concordo plenamente com o diretor Andrew Stanton quando diz que o tema central WALL·E é o amor e a sua capacidade de vencer tudo, inclusive a programação. Tentem ver essa declaração da forma mais ampla possível. Do amor a um par romântico ao amor à vida. Da programação em robótica até a programação ideológica, ambas quebradas pelo encontro de algo tão poderoso que só pode ser completamente explicado, no filme, por cenas do musical Alô, Dolly! (1969), um momento de alegria, amor, música e dança em meio à solidão e ao abandono. Os detalhes humanizados da “casa” de WALL·E, sua barata de estimação, a plantinha dentro da bota e a coleção de objetos humanos como talheres, cubo mágico, fita K7 (reproduzindo Put On Your Sunday ClothesIt Only Takes a Moment e La Vie en Rose) dentre tantos outros, ampliam o contraste entre os dois momentos do filme, de sua carga sentimental à sua lição de cidadania e humanitarismo.

Exibindo algumas cenas com atores reais — uma novidade dentre as produções da Pixar — e mantendo a altíssima qualidade gráfica de suas animações, da divisão da nave com configuração, detalhes, iluminação e cores diferentes (simulando pequenos espaços de Las Vegas, Xangai, Dubai e artes conceituais feitas para a Tomorrowland) até tomadas do espaço e da Terra, o filme nos traz tanta coisa para prestar atenção, observar e absorver que apenas uma sessão não é possível para conferi-lo como se deve.

As já famosas auto-referências da própria Pixar e plena aproximação com criações de nosso mundo, como as leis da robótica de Isaac Asimov que todos os robôs do filme obedecem; a voz de Stephen Hawking como parâmetro de construção para AUTO; modelos básicos da arquitetura do espanhol Santiago Calatrava; projetos da NASA e inúmeras referências à Apple (Steve Jobs esteve envolvido no início do projeto e é creditado nos agradecimentos do longa) fazem WALL·E um oceano inteiro de criatividade, um daqueles filmes que você assiste com enorme prazer e termina a sessão definitivamente mais apaixonado pela vida e pelo cinema. São poucas as ficções científicas que possuem uma história tão terna e de uma grandeza civilizatória tão grande — partindo de um texto com um diminuto número de palavras –, começando em um ponto sem esperança e chagando a reconstrução de um mundo; o recomeço da humanidade estragada por ela mesma, gerações antes. A pergunta que não quer calar é: estamos seguindo o mesmo caminho?

WALL·E (Estados Unidos, 2008)
Direção: Andrew Stanton
Roteiro: Andrew Stanton, Pete Docter, Jim Reardon
Elenco (vozes originais de): Ben Burtt, Elissa Knight, Jeff Garlin, Fred Willard, MacInTalk, John Ratzenberger, Kathy Najimy, Sigourney Weaver, Teddy Newton, Bob Bergen, John Cygan, Pete Docter, Paul Eiding, Donald Fullilove, Teresa Ganzel
Duração: 98 min.

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