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Crítica | Wandinha – 1ª Temporada

A revitalização de Tim Burton.

por Davi Lima
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Wandinha

Não quero ser estranha para você. – Mortícia para Wandinha.

Em 2017, Barry Sonnenfeld, diretor dos live-action de Família Addams nos anos 90, produziu e dirigiu a série Desventuras em Série. Os protagonistas eram ‘crianças fora de época’, assim como no livro adaptado, usando bastante do dinheiro da Netflix com efeitos visuais para contextualizar o estranhamento da narrativa de duas crianças sempre perto da morte. Cinco anos depois, Tim Burton, o cineasta famoso pelos seus filmes nos anos 90, com estilo próprio de tratar o estranho e o esquisito, é diretor e produtor de um spin off da franquia Família Addams na Netflix, chamado Wandinha. Aqui, ele trabalha com uma protagonista adolescente aversa a tecnologias modernas. Diante dessa comparação, é perceptível a necessidade da Netflix remontar aspectos dos anos 90 para atender ao público jovem contemporâneo.

Isso se torna ainda mais evidente por Wandinha ser a tentativa de Tim Burton refazer O Lar das Crianças Peculiares, seu longa que ressoou de maneira mista com público e crítica. O filme tinha quesitos semelhantes aos da série, como o foco na faixa etária adolescente, modo de colocar mais sustos em um terror leve, e o teor investigativo. O diretor traz para o público jovem suas inspirações-base, como o escritor Edgar Allan Poe e algumas recorrentes abordagens visuais, como as de seu filme A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça. Essas referências funcoinam tanto no sentido investigativo como para tratar o sobrenatural no limiar entre “algo normal” e “algo esquisito”. Wandinha conta a história da filha mais velha de Morticia (Catherine Zeta-Jones) e Gomez Addams (Luiz Guzmán) indo para uma escola para excluídos (outcasts) chamada Nevermore (Escola Nunca Mais) e investigando crimes com teor sobrenatural. Mistura-se aqui os elementos que a Netflix tem trabalhado com seu público — como os de O Mundo Sombrio de Sabrina — e aquilo que é popular em Burton.

A série foi criada por Alfred Gough e Miles Millar — que tornaram o Superman popular no começo dos anos 2000 com Smallville, e agora entram em outro percurso de revitalização. Com ajuda da dupla e de mais dois diretores, Gandja Monteiro e James Marshall, Tim Burton parece entrar nos trilhos, parece conversar com o presente, mesmo que ainda use recursos do seu passado para isso. Wandinha, interpretada pela competente Jenna Ortega, é uma ótima representação do estereótipo dos personagens do diretor, por exemplo. A produção aprofunda a ambiguidade de o estranho continuar sendo estranho, e incluir-se, ao mesmo tempo, pelas diferenças — sempre tentando não se definir.

Sonnenfeld deixou a marca no cinema que a Família Addams é aquela que se adapta a novas discussões – como as novas animações da franquia implementaram -, tendo o molde temático para tratar com o normal e o estranho. Isso acaba se tornando perfeito para Burton tentar, mais uma vez, se conectar em maior amplitude com o público jovem. A narrativa tem um triângulo amoroso de Wandinha com Tyler (Hunter Doohan) e Xavier (Percy Hynes White); tem uma escola inspirada em Edgar Allan Poe recheada de seres peculiares como monstros, sereias e lobos; e tem uma protagonista peculiar, num enredo whodunit (“quem matou?“) em busca de estranhezas na escola e dentro de si mesma. Um coming of age (eventos de amadurecimento do jovem) diferente. Isso sem dúvida é uma boa tática de renovo burtonesco, usando o passado como referência: o violoncelo que toca Rolling Stones para expressar os sentimentos da protagonista; Danny Elfman na trilha sonora da série e o vilão que parece Igor, o corcunda de Frankenstein.

I look inside myselfAnd see my heart is blackI see my red doorI must have it painted black

(música dos Rollings Stones que Wandinha toca)

O primeiro episódio até parece algo antiquado, como um telefilme, provavelmente uma homenagem à sitcom da Família Addams na década de 60. Entretanto, o renovo do burtonesco traz a juventude deslocada de Wandinha tentando entender a puberdade, não a infância melancólica, como o diretor costumava usar. Mortícia e Wandinha representam o conflito de gerações, tendo em vista que a escola Nevermore foi frequentada pela mãe e por Gomez. E apesar do romance da protagonista com um personagem “normal”; da sua amizade fofa de Enid (Emma Myers) – a menina loba super colorida -; e a inimizade clássica com a garota popular do colégio – a sereia negra chamada Bianca (Joy Sunday) -, o foco da série é a protagonista-detetive descobrindo conflitos entre o passado e o presente de Nevermore. 

Com um roteiro limitado por explicações da investigação, mas com a direção de Burton chamando atenção com a fotografia de primeiríssimos planos nos personagens; com ângulos acentuados e estranhos, e alguns planos mais elaborados para diálogos; há uma diversão morna, estranha de se acompanhar, na rotina escolar. Até mesmo porque a escola se torna estranhamente normal, mesmo que contenha mistério no seu passado. A ideia de Wandinha é que a loucura se torna normal, como um assassinato ficcionalizado buscando solução para a vida real – como Poe fazia com os crimes americanos no século XIX, e Wandinha datilografa, como uma autora e narradora da série. Nisso é bastante legal ver o estranho desafiando o estranho a saber seu lugar, como a protagonista sendo desafiada a ser excluída em meio aos excluídos. As visões, as peculiaridades dos estudantes e a temática da juventude se complementam bem nessa série.

Enquanto as sociedades secretas da escola são ironizadas, os peregrinos do Mayflower (primeiros colonos dos EUA) postos como conflito principal, e o mistério sobre quem é o monstro com olhos esbugalhados, há a crítica de como os excluídos buscam inclusão pela normatização do passado – de caça às bruxas, por exemplo – ao mesmo tempo que se questiona quem é normal de verdade. Wandinha é uma personagem que representa muitos adolescentes que querem se colocar à parte da sociedade, pessimistas que não querem se importar com aquilo que os define. Mas com um pouco de Tim Burton e a humanização que os criadores propõem, o teor se dramatiza, perde mais da comédia e cria um escopo de inclusão bem maior para a franquia.

Com um método episódico, onde até o sexto episódio há uma aventura escolar clássica (com competição, viagem de campo e aniversário), o coming of age se mistura com o whodunit, tentando alinhar os gostos de Burton e da Netflix. Porém, não é só Tim Burton que dirige os episódios, e estes não se baseiam apenas em suas ideias. O showrunner Miles Millar mostra sua cara ainda mais com a direção de Gandja Monteiro no quinto episódio. Ao mesmo tempo, as características de Miles Millar aparecem ao tratar desse clima investigativo dependente dos poderes de Wandinha, com conveniência quase cômica, mesmo num clima mais sério que a série vai tomando.

O suspense de Wandinha, no final, não é crescente, é parte do design da estranheza em que é inspirada. É muito mais uma referência a Burton e um percurso simpático para fazer uma série da Netflix popular com uma protagonista bem representativa dos sentimentos pós-modernos de questionamento a tudo, além das dúvidas e ceticismo aos afetos. Além disso,  a Família Addams nessa série está muito menos sarcástica e irônica com as dimensões sociais. O apego da série é muito mais as personalidades dos parentes do que ao estilo da família. Isso cria uma certa normalidade, uma facilidade em medir com o público a comédia e o drama, por exemplo, que o diretor sempre usa para propor a estranheza. Ainda assim, é uma série que vai mostrar como as temáticas de Burton são importantes, e só precisavam de uma limpeza de estilo e mais tato com o presente.

Burton não cria mais rivalidade do “ser estranho” com o social para produzir drama. Ele evidencia as diferenças como possibilidade de afetos. Ser excluído não implica viver apenas para si, e sim entender a situação em que se vive. E isso se reflete até mesmo na maneira engraçada/amadora com que a mixagem de som e os sustos evidenciam Wandinha. O segundo momento de terror se torna realmente aterrorizante porque os amigos são aterrorizados, o que assusta até mesmo Wandinha, que começa a se importar com eles tardiamente. Apesar desse direcionamento, os episódios não dirigidos por Burton criam a reviravolta na narrativa com mais ingredientes dramáticos, diferente do que os Addams normalmente faziam. Ou seja, sem esquetes, e com mais acidez e ironia. Isso serve bem ao whodunit, mesmo que normalize demais as estranhezas, ao ponto de se poder chiar como Wandinha “se descaracteriza” na série.

A presença de outros elementos familiares da franquia até remonta a voz burtonesca e a estranheza da família Addams, mas é muito pouco para o clima romântico e amável que a reta final da série apresenta, perdendo a estranheza divertida. A esperança é que Wandinha, carregada de filtro azul na fotografia, com um escopo de eventos nem tão proporcional a um whodunit, ou até mesmo como a personagem da franquia, introduza a tecnologia no gênero investigativo e crie ainda mais do humor “estilo Addams“, que vai se perdendo na trama dessa primeira temporada.

Wandinha (Wednesday) – 1ª Temporada (EUA – 23 de novembro de 2022)
Criação: Alfred Gough, Miles Millar
Direção: Tim Burton, Gandja Monteiro, James Marshall
Roteiro: Alfred Gough, Miles Millar, Kayla Alpert, April Blair, Matt Lambert
Elenco: Jenna Ortega, Gwendoline Christie, Riki Lindhome, Jamie McShane, Hunter Doohan, Percy Hynes White, Emma Myers, Joy Sunday, Georgie Farmer, Naomi J. Ogawa, Christina Ricci, Johnna Dias-Watson, Oliver Watson, Victor Dorobantu, Moosa Mostafa, Luyanda Unati Lewis-Nyawo, Daniel Himschoot, Iman Marson, Calum Ross
Duração:  Em média 45 minutos por episódio (aproximadamente 400 minutos)

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