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Crítica | We Are Who We Are – 1ª Temporada

por Ritter Fan
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Meu colega Luiz Santiago, ao escrever sobre o primeiro episódio de We Are Who We Are, afirmou o seguinte:

Dylan Grazer saiu de um dos personagens mais adoráveis em Shazam! para viver aqui uma nojeira de ser humano em formação, um adolescente que não tem modos, não tem respeito algum pelo espaço onde está e ainda por cima dá um tapa na cara da mãe! Confesso que desde a abertura do episódio, no aeroporto, eu pensava “meu Deus, se isso fosse com minha mãe essa desgraça tomava um beliscão tão grande que ia dormir por seis dias!” e a coisa em torno dele foi ficando ainda pior.

Em seguida, ele indaga o que o roteiro faria com o intragável personagem construído pelo roteiro e por Grazer, que merece todos os méritos por desvencilhar-se de pré-conceitos estabelecidos e realmente consegue estabelecer um sujeito que dá vontade de estapear pelo menos umas oito vezes por episódio. E a resposta à pergunta feita é: manter esse personagem exatamente assim ao longo de todos os episódios com proporcionalmente pouco desenvolvimento para o tempo de duração da temporada. Entre demonstrações de rebeldia sem rumo, desrespeito completo a qualquer coisa que não seja seu próprio umbigo e um gosto por despenteados e desfigurinos  tão horríveis que são capazes de agredir furiosamente as retinas, o jovem Fraser Wilson parece ser a encarnação do adolescente problemático, mas que é caracterizado tão difusamente que mesmo seus eventuais problemas – notadamente girando ao redor de sua sexualidade – perdem-se no caos encarnado que ele é.

E vou reiterar: o ator se entrega ao personagem sem reservas, resultando em um trabalho excepcional de caracterização que merece concorrer a prêmios. A questão é que seu Fraser, dentro da estrutura da primeira série de Luca Guadagnino, cineasta responsável por obras como Suspíria e Me Chame Pelo Seu Nome, não tem limites nem consequências, sequer servindo de instrumento eficaz para que a narrativa seja construída. Claro que o cineasta não empresta a We Are Who We Are uma estrutura clássica e a série mais parece resvalar na experimentação visual, algo que ele implementa logo de início ao usar Fraser, no episódio inaugural, como veículo para o espectador conhecer a geografia sem graça, árida e abrutalhada da base militar americana em Chioggia, na região do Veneto, na Itália, para onde se muda com suas mães, a coronel Sarah Wilson (Chloë Sevigny), comandante do lugar, e Maggie Teixeira (Alice Braga), uma major sem maiores funções específicas por ali.

O recorte geográfico é particularmente importante é Guadanigno é muito feliz em sair de sua Itália idílica como vista em Me Chame Pelo Seu Nome e mergulhar no mundo real. Apesar de próxima de Veneza, considerada uma das cidades mais bonitas do mundo (e de fato é!), Chiogghia ganha um tratamento visual que não suaviza a feiura da base americana. Ao contrário, é como uma extensão dos muros da base em que Fraser passa boa parte de seu tempo, amplificando uma impressão de clausura, de claustrofobia que se espalha como uma praga. Como pano de fundo, temos as eleições americanas de 2016 que daria vitória a Donald Trump, algo que é acompanhado pela televisão, menções breves de extras aqui e ali e pelo conflito entre a família de Fraser e seu vizinho, o tenente-coronel Richard Poythress (Scott Mescudi), conservador, que anda com boné com a sigla MAGA e rejeita o “estilo de vida” das lésbicas a seu lado.

Mas é a filha de Poythress, Caitlin (Jordan Kristine Seamón) que estabelece de imediato uma amizade indelével com Fraser a ponto de chegar a rejeitar seu amigos da base que, por sua vez, não simpatizam com Fraser. É no desabrochar dessa relação entre os dois que a série se refestela, estabelecendo logo de início o desconforto de Cait com seu gênero, o que a faz avançar vagarosamente pelo caminho da transexualidade, algo que ganha eco na potencial homossexualidade de Fraser. Essa abordagem de Guadagnino é exemplar, fugindo de todo e qualquer maniqueísmo narrativo e até mesmo de nossas mais liberais expectativas. Caitlin e Fraser não têm ainda certeza sobre suas respectivas sexualidades ou expressões de gênero e o “nós somos quem nós somos” ganha essa bela relativização que comanda a história até seu poético fim, que, porém, não é exatamente um encerramento (e nem deveria mesmo ser).

Acontece que o material que gira ao redor dessa temática não exatamente preenche o tempo da série, mesmo com os longos floreios visuais de Guadagnino e ele precisa recorrer aos coadjuvantes, só que com menos sucesso. Sem dúvida alguma, em grandes pinceladas, We Are Who We Are é sobre inadequação e desconforto, seja consigo mesmo, seja com o ambiente ao redor, seja com seus pais, seja com qualquer outro elemento que faz de uma pessoa uma pessoa, incluindo aí, claro, a religião. O que o cineasta faz com os personagens que orbitam Caitlin e Fraser é entregar um pouco de cada tipo de inadequação, como em uma fábula em que todos que ali são citados existem como arquétipos, não exatamente como efetivos personagens, tirando um pouco da relevância deles por um lado e, de outro, diluindo o drama de seus protagonistas. Além disso, apesar de o subtexto crítico político, que é constante pelo menos até o começo do sétimo episódio, permear toda a narrativa, ele é subaproveitado, ficando muito mais como instrumento de contextualização do que qualquer outra coisa.

Com isso, a temporada fica refém de sua própria tentativa de abarcar o máximo possível debaixo do guarda-chuva das incertezas da juventude. Notadamente nas questões envolvendo orientação sexual, Guadagnino segue muito bem, mas a temporada perde coesão quando o cineasta decide ir além e abraçar diversas outras pequenas tramas que não são desenvolvidas da mesma forma, tudo debaixo de um enfoque contemplativo que inevitavelmente sofre pelas repetições e pela preponderância da imagem sobre a substância. É, sem dúvida alguma, um esforço original e ousado, mas que talvez funcionasse melhor ao ser restringido organicamente pela duração de um longa-metragem. Ao ganhar o espaço generoso de uma série, com alguns episódios realmente longos, We Are Who We Are perde seu impacto inicial e acaba diluída e dependente demais de seu personagem bem classificado por meu colega como uma nojeira de ser humano.

Obs: Apesar de classificada inicialmente como minissérie ou série limitada, Luca Guadagnino já afirmou algumas vezes que tem material para uma eventual 2ª temporada de We Are Who We Are, algo que combina com o fato de que minisséries, hoje em dia, muito facilmente tornam-se séries e a HBO é especialmente pródiga nisso. É por essa razão que escolhi citar “1ª Temporada” no título, mesmo considerando que o último episódio tem título razoavelmente definitivo: We Are Who We Are VIII e Último.

We Are Who We Are – 1ª Temporada (Itália/EUA – 14 de setembro a 02 de novembro de 2020)
Criação: Luca Guadagnino
Direção: Luca Guadagnino
Roteiro: Paolo Giordano, Francesca Manieri, Luca Guadagnino
Elenco: Chloë Sevigny, Jack Dylan Grazer, Alice Braga, Jordan Kristine Seamón, Spence Moore II, Scott Mescudi, Faith Alabi, Francesca Scorsese, Ben Taylor, Corey Knight, Tom Mercier, Beatrice Barichella, Sebastiano Pigazzi, Vittoria Bottin, Nicole Celpan, Maria Teresa Cerantola
Duração: 444 min. (oito episódios)

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