- Há SPOILERS! Leia aqui as críticas dos outros episódios. E leia aqui as críticas para a série em quadrinhos O Que Aconteceria Se…?
Uma das expressões mais assustadoras que existe, em qualquer língua que possa ser dita, é a tal da “e se…?“. A abertura de possibilidades, o pensamento sobre o que poderia ter acontecido, suas implicações e tudo ou todos que poderia ter mudado é algo capaz de deixar qualquer um louco. A nossa sorte é que, na ficção, essa expressão funciona de forma diferente. Ver eventos conhecidos de nossa civilização sob outro ponto de vista é algo interessante e divertido, mesmo nas tragédias; e as várias produções com abordagem de História alternativa em seu cerne estão aí para provar. No Universo da Marvel, tal abordagem começou a ser vista regularmente numa série criada em 1977, que recebeu aqui no Brasil o título de O Que Aconteceria Se…?. A proposta da publicação era mudar eventos-chave na vida de alguns personagens e tornar as consequências disso o verdadeiro foco daquela edição, uma maneira inteligente e intrigante de explorar as possibilidades do Multiverso da editora.
Desde 2018 a Marvel Studios vem discutindo uma adaptação da série What If…? para a TV, tendo inicialmente problemas em torno das ideias apresentadas, já que algumas delas estavam reservadas para filmes futuros. Amadurecido o projeto, ele foi cair no colo da Disney +, após um limite estabelecido pelos chefões: o esperado “fechamento de uma Era” com Vingadores: Ultimato. A cereja do bolo em relação à temática da série veio com a produção de Loki, que ao final de sua 1ª Temporada, oficializou o Multiverso no audiovisual da Marvel e tornou orgânico qualquer tipo de projeto que falasse de diferentes linhas do tempo e possibilidades de mudança no mundo dos heróis como o conhecemos. É justamente desse ponto e com esse espírito que o roteiro do criador da série, A. C. Bradley, imagina como seria se Peggy fosse a Primeira Vingadora, sob o nome de Capitã Carter.
O episódio é um espelho alterado de Capitão América: O Primeiro Vingador, contando não apenas com a mudança de gênero do protagonista (bem explorada, em linhas gerais, apesar de muitas vezes o machismo ser jogado na nossa cara, tornando algumas cenas com o Coronel John Flynn bem artificiais), mas apresentando toda uma gama de alterações nos personagens e nas situações enfrentadas pelos heróis na Terra alternativa em questão. Peggy Carter (Hayley Atwell, muitíssimo à vontade dublando) não está aqui apenas figurando ou exibindo o escudo de maneira protocolar. Seu protagonismo é legítimo, das cenas de ação, às decisões pessoais e breve exploração de sua personalidade, assim como a relação amorosa que desenvolve com o magrelo Steve Rogers (Josh Keaton). Todo o lado pessoal é tratado no enredo com uma dose de humor que surge em momentos precisos, quebrando uma cadeia de eventos e nos deixando esperançosos para ver o que acontece a partir de então.
O que me incomoda aqui é o estilo de animação. Desde as primeiras fotos que eu vi da série, já me preparei para digerir esse híbrido entre animação 3D e 2D, que é simplesmente horroroso para todo tipo de close no rosto de algum personagem e para as cenas de diálogo, mesmo num plano aberto. Há uma estranheza na maneira como as expressões faciais são articuladas, nesse estilo. O movimento da boca é falso e tudo parece produto de um sonho ruim — e muita gente pode argumentar que, pelo caráter da série, é o “estilo perfeito“, uma vez que não falamos do Universo oficial desses personagens. Bom… que “isso não a realidade” a gente já sabe desde o título. Uma estilização como essa não é nada necessária para reforçar o óbvio. Mas eu entendo o apelo que isso tem, obviamente. Por outro lado, digo que tudo o que não tem a ver com rostos humanos cabe bem ao estilo, especialmente as cenas de ação e as cenas de qualquer veículo em movimento — essas, inclusive, são as melhores do episódio.
As quebras narrativas que o roteiro faz para indicar a passagem do tempo acabam enjoando pela repetição, sendo realizadas quase sempre da mesma forma, indicando preguiça ou falta de imaginação da montagem, que começou o episódio muito bem. O único momento em que essa saturação é bem vinda está nas cenas em que Peggy e Steve, como o HYDRA Stomper (um proto-Homem de Ferro) saem juntos em diversas missões. É uma colagem rápida de cenas de batalha em vários espaços e que não só funciona muito bem, como contribui para estabelecer de forma clichê, mas eficiente, a personagem em campo. A ligação disso com suas emoções, a interação cômica com Howard Stark (Dominic Cooper) e uma interação mais objetiva com Bucky (Sebastian Stan, que parece não fazer ideia nenhuma de como dublar um personagem) e Dum Dum Dugan (Neal McDonough) fazem o público investir emoções o suficiente para um episodio de 30 minutos, sem criar muitas esperanças de que isso possa ser visto uma vez mais no Universo Marvel.
E falando em esperar por algo, a aparição do howardiano/lovecraftiano Shuma-Gorath, na reta final do episódio, foi algo que me pegou de surpresa. Quando o Caveira Vermelha apareceu, eu desejei, lá no íntimo, que ele não fosse o único vilão da história (nem estava contando os nazis!), e foi uma grata surpresa vê-lo com um plano dentro da bobice megalomaníaca de dominação geral do planeta. Isso acaba tendo um significado diferente nessa realidade, especialmente porque o bicho que sai do portal criado pelo Tesseract mata o Caveira em dois tempos. Fazer com que esse bichão vindo das profundezas do Universo fosse o responsável por tirar a Capitã Carter de cena por 70 anos fez muito mais sentido do que se fosse algo realizado pelo Caveira, sem contar que é o tipo de vilão que traz uma ameaça muitíssimo mais respeitável.
What If…? começa com boa demonstração de uma linha alternativa da Marvel, sabendo criar coisas interessantes para a sua protagonista e cercando-a de personagens em ações e situações igualmente interessantes. O proto-Homem de Ferro que aparece não toma o lugar de Peggy, e o tempo inteiro temos uma interação gostosa entre amor, amizade, o prazer de matar nazistas e aquela abordagem ufanista e patriota que permeia uma porrada de produções sobre a 2ª Guerra Mundial e que, ao menos na ficção, tem a capacidade de tocar a gente. Montagem preguiçosa em certo ponto, cortes narrativos que quebram coisas muito boas e um estilo de animação que torna os rostos dos personagens em uma massa quase inexpressiva são pedras no sapato que, acredito eu, voltarão a aparecer no show. Se, a despeito delas, os episódios da antologia continuarem nos divertindo desse jeito, então teremos mais uma produção aplaudível vindo dessa dominadora de mundos chamada Marvel Studios. Tá difícil segurar, hein!
What If…? – 1X01: What If… Captain Carter Were the First Avenger? (EUA, 11 de agosto de 2021)
Criador: A. C. Bradley
Direção: Bryan Andrews
Roteiro: A. C. Bradley
Elenco: Jeffrey Wright, Hayley Atwell, Josh Keaton, Samuel L. Jackson, Jeremy Renner, Stanley Tucci, Dominic Cooper, Bradley Whitford, Ross Marquand, Neal McDonough, Sebastian Stan, Toby Jones, Darrell Hammond, Isaac Robinson-Smith
Duração: 31 min.