Lançado em 1971, What’s Going On é menos um disco de soul tradicional e mais um manifesto em forma de música popular. Marvin Gaye, até então um astro da Motown conhecido por hits românticos e duetos inesquecíveis com Tammi Terrell, rompe aqui com o molde que o havia transformado em ídolo e se reinventa como um artista que quer compreender e denunciar o mundo em colapso à sua volta. É um álbum que nasce do luto, do desencanto e da inquietação política, mas também da busca espiritual de um homem que não via mais sentido em cantar sobre amor romântico enquanto a desigualdade explodia nas ruas americanas.
A força de What’s Going On está no seu caráter orgânico: nove faixas que se conectam como uma única trama, fundindo soul, jazz, gospel e até elementos da música clássica em arranjos sofisticados, embalados pela inventividade da banda da casa da Motown, os Funk Brothers. O contrabaixo de James Jamerson é o pulso que guia grande parte do disco, enquanto cordas, sopros e percussões se entrelaçam num fluxo contínuo, quase litúrgico. Não há cortes abruptos, não há silêncio entre as canções: o álbum respira como um sermão moderno, onde cada capítulo dá sequência à meditação anterior.
A faixa-título é o ponto de partida e talvez a canção mais emblemática da carreira de Marvin. What’s Going On não é um protesto panfletário, mas uma súplica suave: em vez de gritar raiva, Gaye convida ao diálogo, ao afeto, à compaixão. O saxofone inicial abre caminho para uma melodia que parece abraçar o ouvinte, enquanto Marvin canta em múltiplas camadas de voz, dialogando consigo mesmo, como se fosse ao mesmo tempo narrador, vítima e pregador. O resultado é um chamado universal que ainda ecoa, cinquenta anos depois, em cada momento de crise.
Logo após, What’s Happening Brother amplia a perspectiva: é uma conversa íntima, dedicada ao irmão de Marvin que havia retornado do Vietnã. A faixa captura o desalento do veterano que volta para um país irreconhecível, onde guerra e racismo corroem o tecido social. Essa proximidade com a experiência familiar dá peso à narrativa do álbum, que não fala em abstrato, mas a partir da dor vivida por milhões de americanos.
Flyin’ High (In the Friendly Sky) desloca o olhar para as dependências químicas, em especial a heroína, cantada com um misto de fragilidade e aceitação. O arranjo minimalista, guiado por teclados etéreos, cria um ambiente quase espectral, onde a voz de Marvin paira como confissão e súplica. Essa atmosfera prepara o terreno para Save the Children, talvez a canção mais explícita no apelo humanitário, em que Gaye literalmente pergunta quem se importa com o futuro dos jovens em um mundo destinado a morrer. Sua interpretação alterna entre a narração quase falada e explosões emocionais de canto, sublinhando a urgência da mensagem.
Quando chegamos a Mercy Mercy Me (The Ecology), o álbum transcende o humano para olhar o planeta. É notável como Marvin foi pioneiro em trazer a pauta ambiental para a música popular. Em 1971, falar de ecologia em uma canção de soul era praticamente impensável. Mas ele o fez com beleza e melancolia: a linha de sax de Wild Bill Moore e os vocais delicados criam um lamento pelo planeta em degradação. Hoje, a música soa quase profética, como se fosse um aviso ignorado por gerações.
Right On expande a paleta musical, misturando ritmos latinos, soul e jazz em uma jam prolongada que alterna entre observação social e busca espiritual. Em seguida, Wholy Holy reforça a dimensão gospel do álbum, defendendo o amor coletivo como única forma de salvação. É um chamado à união, que ganha força justamente pela serenidade do arranjo. O ciclo se encerra com Inner City Blues (Make Me Wanna Holler), um mergulho sombrio na realidade urbana de pobreza, criminalidade e desesperança. Aqui, a bateria seca e o baixo criam uma base dura, quase de blues, sobre a qual Marvin solta seu grito contido de raiva e frustração. O fade-out que retorna à introdução do álbum fecha o círculo, reforçando a ideia de que a busca por respostas continua, que o ciclo da opressão e da resistência é interminável.
Mais do que um disco, What’s Going On é um gesto artístico de emancipação. Foi a primeira vez que Marvin Gaye conseguiu autonomia plena sobre a própria música, enfrentando o maquinário da Motown para impor uma obra que contrariava as fórmulas comerciais do selo. Ele trocou as canções de amor por um soul espiritualizado, que olha para o mundo com espanto, dor e esperança. O resultado foi um divisor de águas e um marco absoluto na história da música popular, em especial o R&B. Ao revisitá-lo hoje, o impacto continua avassalador. Cada faixa parece atual, da denúncia ambiental às tensões raciais, da violência urbana à descrença com os líderes políticos. Mas a beleza está em como Marvin não se entrega ao desespero: mesmo quando canta make me wanna holler, ele o faz em busca de catarse, como se a música fosse sua forma de sobreviver e oferecer consolo.
É por isso que What’s Going On transcende a época em que foi feito. É um álbum que não se contenta em ser registro: ele é pergunta, oração e manifesto. Ao mesmo tempo sofisticado e acessível, íntimo e universal, é uma das raras obras que conseguem unir arte, espiritualidade e política em um só fluxo. Não é exagero chamá-lo de obra-prima, reconhecendo que Marvin Gaye, em 1971, conseguiu transformar sua dor pessoal e o caos coletivo em música eterna.
Aumenta!: Inner City Blues (Make Me Wanna Holler)
Diminui!: —
What’s Going On
Artista: Marvin Gaye
País: EUA
Lançamento: 1971
Gravadora: Tamla, Motown
Estilo: Soul, R&B
Duração: 35 min.
