Crítica | Xala

por Luiz Santiago
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Xala é uma palavra do idioma wolof que designa uma “maldição” muito peculiar: quando o homem sofre de impotência. Neste quarto longa-metragem do diretor senegalês Ousmane Sembène, temos uma sátira que se constrói a partir dos eventos sociais e dos dissabores que assolaram El Hadji (Thierno Leye), um respeitado membro da Câmara de Comércio que está prestes a casar-se com sua terceira esposa, dando imediatamente uma demonstração de excesso e de “masculinidade”, exibindo a jovem como um prêmio social.

Uma das leituras possíveis que podemos fazer da obra é justamente a do caráter dos papéis familiares que ela representa, buscando aí uma visão social construída na base tradicional daquele país, uma visão advinda do islamismo (um homem pode ter quantas mulheres ele tiver condições de manter financeiramente). Discussões sobre o papel da mulher e até sobre a visão cultural, mas criticamente ilógica, do protagonista, que acha que “ser homem” é conseguir ter uma ereção, também podem vir à tona, vistas em paralelo à questão política. No entanto, Xala vai muito além dessa leitura um tanto superficial, mas também importante.

Em ótimo artigo sobre o filme, a escritora Sanyu Mulira escreve sobre a representação das mulheres aqui como um espelho para a sociedade senegalesa daquele momento, cada uma expondo um momento dessa nação, sendo a primeira mulher ligada à tradição; a segunda mulher ligada ao Senegal em processo de assimilação da cultura europeia mais o desejo de possuir coisas; e a terceira mulher como um produto final da ideologia da segunda. Uma esposa-prêmio capaz de provar, como eu já comentei antes, a relevância financeira e também a virilidade de El Hadji.

Esta leitura tende a ver o lado político do longa como um simples elemento adicional e não como um fotografia viva das representações políticas e culturais que Sembène trabalhou aqui, adaptando o seu próprio livro para as telas. A questão é que esse lado social cumpre um papel importantíssimo nos símbolos explorados pelo diretor, não só aproximando cada uma das esposas a uma era do desenvolvimento de Senegal, mas também utilizando El Hadji como uma encarnação institucional do país. Ele fez parte do grupo que retirou os colonizadores do poder, mas manteve a subserviência econômica da nação e o descaso para com a população miserável, que é enganada, roubada e constantemente jogada para a periferia pelas forças policiais, sempre a serviço da elite (agora negra) no poder.

Essa relação da esfera pessoal que satiriza esferas da sociedade é filmada de modo bastante inteligente, sempre contrastando os núcleos (também através da música) e mostrado como cada um enfrenta problemas de ordem financeira e de perda de posses ou poder. O uso da ereção e dos casamentos de um polígamo são motivos interessantíssimos que constroem a identidade de cada mulher (reparem na diferença de figurinos e relação delas com o marido, inclusive a jovem terceira esposa, que sequer tem fala mas deve ser deflorada o mais rápido possível) ao passo que liga questões de classe e pensamento social àquilo que elas representam na realidade.

Xala é um afiado olhar satírico sobre como o poder se constituiu no Senegal após a saída dos franceses. A identidade cultural nacional (reparem no importante papel que os idiomas wolof e francês terão na história), as políticas para o povo e o fortalecimento das elites que já eram elites nos tempos de dominação são descortinados pelo cineasta através de arquétipos humanos. Ele também dá a oportunidade de se manter ao menos uma tradição: aquela que humilha um certo poderoso que caiu em miséria. E este é o tipo de andamento político que todos nós conseguimos entender. Um exemplo nacional que Sembène consegue transformar em sátira para mazelas semelhantes vistas no mundo todo.

Xala (Senegal, 1975)
Direção: Ousmane Sembène
Roteiro: Ousmane Sembène (baseado em seu próprio livro)
Elenco: Thierno Leye, Myriam Niang, Seune Samb, Fatim Diagne, Younouss Seye, Mustapha Ture, Iliamane Sagna, Dieynaba Niang, Langouste Drobe, Farba Sarr, Abdoulaye Boye, Papa Diop, Martin Sow, Mamadou Sarr, Makhouredia Gueye
Duração: 123 min.

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