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Crítica | Yentl (1983)

Driblando as barreiras do gênero.

por Fernando JG
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Yentl é uma garota judia que vive em Lublin, numa Polônia em que a divisão de gênero é muito acentuada, a ponto de as mulheres não poderem sequer estudar. Fascinada pelo conhecimento, a jovem, logo após a morte de seu pai, se veste com trajes masculinos, se passa por homem e vai em busca de sua formação. Contudo, no meio do caminho, muitas questões começam a surgir para ela, que agora é ele, inclusive um casamento inesperado com uma mulher que se apaixona erroneamente pela jovem Yentl: como lidar com a farsa de ser um homem no corpo de uma mulher que só queria estudar? E mais: como relevar, no meio de uma sociedade violenta para o gênero feminino, enfim, que é uma mulher? O escândalo parece inevitável. Este é um filme dirigido e co-roteirizado por Barbra Streisand

Lembro-me muito claramente do poder de adesão que teve o Funny Girl quando o vi pela primeira vez: I’m The Greatest Star; My Man e Don’t Rain on My pareciam colados na minha mente ainda depois de dias assistido. De mesmo modo, ao finalizar Yentl, a inesquecível voz desta senhora tem a capacidade de ressoar ainda por muito tempo. Papa, Can You Hear Me; No Wonder e The Way He Makes Me Feel são lindas e seus famosos beltings, inconfundíveis. Inclusive, as canções de Michel Legrand geraram um álbum de estúdio excelente. 

A respeito de Barbra Streisand, pouco tenho a dizer de sua atuação. Esta é uma atriz completa, que vai da Broadway ao cinema com muito primor. Aqui, ela segura muito bem a sua protagonista e o insistente close-up aplicado em sua face faz com que suas expressões soem ainda mais genuínas, com dramaticidade e ingenuidade, como é próprio ao personagem que dá vida. Enquanto diretora, gosto de suas escolhas de condução cênica, do arranjo da mise-en-scène, dos planos-abertos conduzidos por ela e da paleta de cores secas que mantém ao longo da trajetória fílmica. Ao fim, a cineasta consegue manter um tom interessante e nos prende pelo enredo construído, pelo mistério gerado em torno da figura principal e pela curiosidade em saber o fim da história.

O filme desenvolve um drama-romântico em sua maior parte, com um toque de luta social que é relevante, introduzindo questões a respeito da equidade de gênero, insistindo em quão prejudicial é, para todos, a ideia de uma sociedade patriarcal que inferioriza a mulher. As mensagens mobilizadas pela cineasta são extremamente bem-vindas e encontramos uma bela discussão a respeito da posição da mulher enquanto detentora de conhecimento e o lugar da religião no rebaixamento da mesma. Saber quem você quer ser no mundo e encontrar uma barreira tão sem sentido que a impede de, simplesmente, ser minimamente livre, parece ser um tema que Streisand bate o martelo inúmeras vezes em sua adaptação fílmica. Pela formação teatral de Streisand, além de adaptar o conto de Singer, “Yentl the Yeshiva Boy“, incorpora muitos aspectos teatrais ao seu longa-metragem. 

Embora haja uma atuação consistente da parte de Barbra e de seu parceiro Mandy Patinkin, existem falhas na caracterização masculina de personagem, deslizando em transmitir verdade na transformação do feminino ao masculino, o que mina todo o filme de um tom de inverossimilhança. Ainda, embora o enredo seja bem montado, com boas cenas de ligação e um argumento cativante e delicado, peca em excessivo em inúmeras cenas, elevando a minutagem da película, abusando daquilo que se denomina popularmente por “enchimento”. 

Creio, contudo, que a grande falha está em alguns pontos do texto; alguns furos propriamente. Por exemplo, o que mais me incomoda é o fato de que, na admissão para a faculdade, sequer pedem o documento de Anshel e em nenhum momento este personagem de Barbra é legitimado legalmente, nem através de documentos falsos. Como ele passa tão ileso? Ainda que cinema seja ficção, não está isento de verossimilhança. É preciso ter a aparência de verdade. Há ainda outros problemas em relação ao triângulo amoroso que há no filme: a relação de Yentl (agora Anshel) e Avigdor é um tanto sugestiva. Evidentemente, há uma manutenção de uma tensão sexual entre ambos, mas não me parece claro se ele desconfia que ela é uma mulher ou se ele é, de fato, um rapaz bissexual e se atrai pela figura masculina. A primeira hipótese, descarto, uma vez que ele fica furioso quando descobre a verdadeira identidade de Anshel, isto é, que na verdade ele é ela, Yentl. A segunda hipótese me parece mais verdadeira, uma vez que o filme não se furta em apostar em subtramas arriscadas, flertando com o tema da bissexualidade nas duas principais relações da trama. É tudo muito não-dito, mas está lá nas entrelinhas. 

Gosto da genialidade da cineasta em transformar tudo o que toca em um musical de ótima qualidade, com sensibilidade, delicadeza e relevância. Emocionante mas igualmente indigesto pelas condições sociais que mobiliza, o Yentl de Barbra Streisand tem a sua assinatura mais cara: não deixa de ser um drama tocante mas muito bem-humorado e com agilidade. Yentl é, enfim, uma reflexão moderna sobre a condição da mulher, dirigido e co-roteirizado por uma, e por isso fala com tanta propriedade daquilo que se propõe. 

Yentl (Yentl, 1983, EUA)
Direção: Barbra Streisand
Roteiro: Barbra Streisand, Jack Rosenthal (baseado no conto Yentl the Yeshiva Boy de Isaac Bashevis Singer)
Elenco: Barbra Streisand, Mandy Patinkin, Amy Irving, Nehemiah Persoff, Steven Hill, Allan Corduner, David de Keyser, Miriam Margolyes, Doreen Mantle, Lynda Baron
Duração: 131 min. 

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