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Crítica | Zatoichi (2003)

Um espadachim rabugento.

por Luiz Santiago
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Takeshi Kitano é um diretor que prioriza muito o ritmo em seus filmes, tratando sequências de ligação ou mesmo momentos-chave de suas obras como um balé que integra trilha sonora e movimentos dos personagens à atmosfera de cenas muito específicas. Sua forma se revela de modo bastante teatral e conceitualmente interessante neste Zatoichi (2003), versão do diretor para o famoso personagem de Kan Shimozawa, um espadachim cego, com grandioso senso de percepção da realidade (sentidos apurados), massagista, acupunturista, expert no jogo de dados e uma verdadeira lenda no uso da espada cane.

A produção veio em um momento de mudanças para o diretor, que se juntou ao compositor Keiichi Suzuki (depois de 11 anos trabalhando com Joe Hisaishi) para conceber uma identidade musical fortemente marcada pela percussão. Cenas na abertura e no encerramento do filme trazem uma interessante sincronia entre batidas de instrumentos e movimentos de trabalho dos personagens, levando-nos para a sequência de encerramento que é uma mistura de características musicais do tradicional teatro kabuki com um tipo de encerramento feliz à la Hollywood que o diretor quis utilizar de maneira irônica, mas que acabou não fazendo bem ao filme, pois destoa imensamente de tudo o que havia sido trabalhado até então.

Escrito pelo próprio Kitano, que também interpreta o personagem principal, o filme não se desvia da linha comumente vista nos filmes de Zatoichi. O personagem aqui defende algumas pessoas de uma pequena vila, enquanto se desenrola uma guerra entre fações da Yakuza local, principalmente pelo domínio das “taxas de proteção” que cobravam dos comerciantes. Notem que o texto já ganha aí duas veredas distintas, e ambas receberão atenção do roteiro no decorrer do longa, não ficando necessariamente escanteadas enquanto outras camadas e personagens importantes vão sendo adicionados. Quanto a eles, vale destacar as duas irmãs gueixas (uma delas, na verdade, é um homem e esse aspecto de gênero na obra é muito delicado e muito bem trabalhado) que buscam vingança pelo assassinato de seus pais.

O complemento dramático vem com a entrada do ronin Hattori Genosuke (Tadanobu Asano, possivelmente com a melhor interpretação de um lutador do filme), cujo alinhamento moral reside inicialmente em uma área cinzenta. Gosto bastante de personagens que entram para o ramo dos vilões por motivos que não são banais ou puramente maniqueístas. Temos alguns desses maus exemplos aqui no filme, mas este não é o caso de Genosuke. E talvez por isso mesmo é que ele passa a ser visto pelo espectador como o principal oponente futuro de Zatoichi. Tal expectativa, no entanto, termina numa decepção, pois o encadeamento do filme indica uma épica luta entre os dois personagens, mas tudo acaba rápido demais, com poucos movimentos e sem uma boa continuidade, a despeito de uma excelente preparação.

Escolhendo uma interpretação mais contida para o espadachim, Kitano consegue emular um pouco o estilo perfeito (e na minha opinião, definitivo) criado por Shintaro Katsu para o personagem a partir de O Conto de Zatoichi (1962). Todavia, o espadachim de Kitano é mais velho, mais rabugento do que o normal e sem o humor mórbido e às vezes ácido que normalmente esperamos do andarilho — até a versão dele nos quadrinhos de Usagi Yojimbo traz esses elementos!. O ganho, todavia, aparece na hora das lutas. Os movimentos de Kitano e a coreografia de batalhas para todos os personagens são muito boas, e recebem um adendo de CGI que muitos espectadores não gostam, mas com o qual eu não tive problemas porque entendi a proposta do diretor com esse uso e acho que combina com o que está sendo narrado: o sangue espirrando de forma exagerada toda vez que uma espada corta um corpo.

A vingança pode ser selecionado como o principal sentimento na vida da maioria dos personagens aqui em Zatoichi. Na esfera sociopolítica e na esfera pessoal, diversos tipos de violência empurram essas pessoas para agir de uma forma a dar ainda mais espaço para a dor, para o sangue e para a morte. A sociedade perigosa, corrupta e traiçoeira em que o protagonista vive é também a sociedade que traz pessoas honestas e bondosas, capazes de ajudar a quem precisa, uma dualidade da existência que faz com que a vida e as ações de Zatoichi sejam perfeitamente aceitas e até necessárias.

A reconstrução da casa que vemos em uma das últimas cenas poderia ser um bom momento para que o filme se encerrasse. A citação ao Festival acontece muito tardiamente e não há nada na unidade da obra que dê suporte às danças e cânticos que aparecem depois. De todo modo, o fechamento dessa jornada de Zatoichi é pelo menos satisfatório. Uma frustração com uma luta aqui, uma montagem esquisita na reta final e a destoante sequência teatral não derrubam o filme para baixo da média. É uma boa experiência, de fato, mas é inegável que poderia ser bem melhor.

Zatoichi (Japão, 2003)
Direção: Takeshi Kitano
Roteiro: Takeshi Kitano (baseado na obra de Kan Shimozawa)
Elenco: Takeshi Kitano, Tadanobu Asano, Michiyo Yasuda, Taka Guadalcanal, Daigorô Tachibana, Yûko Daike, Yui Natsukawa, Ittoku Kishibe, Saburô Ishikura, Akira Emoto, Ben Hiura, Kohji Miura, Tsumami Edamame, Kosuke Ohta, Yoshiyuki Morishita, Taichi Saotome, Kanji Tsuda
Duração: 116 min.

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