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Crítica | Zé Carioca: Viagens Fantásticas

O Zé encontra Machado de Assis e Sherlock Holmes.

por Luiz Santiago
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Viagens Fantásticas é uma daquelas coletâneas de histórias que deixa qualquer pessoa que gosta muito de um personagem ou de um estilo de narrativa bastante feliz. Publicação da editora Culturama, lançada em dezembro de 2021, o pequeno volume traz três aventuras de 10 páginas cada uma, mostrando como o malandro Zé Carioca se meteu em viagens no tempo e encontrou duas importantes personalidades nessas andanças. São três histórias que se passam em tempos diferentes, com uma mudança de cenário entre Brasil e Inglaterra e problemas distintos envolvendo o nosso papagaio carioca, que acaba questionando a própria sanidade ao fazer esses translados temporais, ao interagir com alguns notáveis da literatura e depois voltar para o presente e ver ou viver uma mudança causada por essas interações.

Em termos de estrutura, a segunda e terceira história se interligam, sendo uma sequência da outra, embora funcionem de maneira independente, se o leitor for atento. No caso da primeira, podemos dizer que existe o plantio do tema central que veremos percorrer a trilogia, mas ela está mais afastada das outras duas tramas, no espaço e nas referências. Com texto de Gérson Luiz Borlotti Teixeira e Paulo Maffia, Um Estudo em Verde abre a coletânea apresentando para o leitor o “jeitão de viagem” do Zé Carioca, que passa a trabalhar em uma biblioteca do Rio de Janeiro, a fim de descolar uma grana para levar a Rosinha ao cinema. A estante caindo em cima do Zé é aquilo que, por algum motivo, irá transportá-lo para o passado, até a cidade de Londres, onde existe um indivíduo chamado “Sherclock” Holmes.

O título da aventura já faz alusão direta a Um Estudo em Vermelho, e a obra de Arthur Conan Doyle é literalmente citada pelo dono da livraria, de modo que o leitor sabe que esse encontro irá existir. E que encontro bacana! Não tão legal quando aqueles com o Machadão, mas muito bacana, sem dúvidas. Por ser a primeira viagem, o roteiro brinca com a ambientação, com o espanto do papagaio em chegar à Inglaterra sem saber como isso aconteceu e acabar se metendo na investigação de um roubo de tortas de maçã. O negócio da estante caindo por cima do Zé, “nocauteando-o” e fazendo-o acordar em outro tempo e espaço não me incomodou em nada. Acho que o princípio é divertido, combina com o Universo dele nos quadrinhos e evita que o roteiro crie coisas muito complicadas para explicar a viagem. Por ser uma história bem curta, foi uma ótima maneira de fazer com que a viagem acontecesse (e mantenho essa mesma opinião para as alterações na “viagem de volta” que a gente vai ter nas tramas posteriores).

A segunda história é intitulada Dom Carioca, e mostra o ilustre encontro do Zé com o Bruxo do Cosme Velho, o nosso inigualável Machado de Assis. Aqui eu senti muito mais algo que me pegou em todas as outras histórias: o lamento pela história ser curta demais. Porque a ideia é absurdamente maravilhosa e abordada de maneira divertida, com o roteiro brincando com o vocabulário do século XIX e trazendo conhecimentos muito legais, que — e isso é muito difícil de se fazer! — funcionam como apresentação dinâmica e gostosa para quem não conhece as informações sobre a ABL (Academia Brasileira de Letras) e outros detalhes histórico-literários; ou como referência/piscadela orgânica e bem empregada para quem já tem essas informações. Dessa história, a única coisa que não me chamou tanto a atenção foi a arte de Eli Marcos M. Leon, a que menos gosto dentre as três artes que temos no volume (minha ordem de preferência aqui é a seguinte: os desenhos de Moacir Rodrigues Soares na terceira história; os desenhos de Luiz Podavin na primeira, e os desenhos de M. Leon na segunda).

A ligação entre a segunda e a terceira história é pensada de maneira muito criteriosa e confesso que Cariocas Sonham com Papagaios Elétricos? me pegou de surpresa. Começa na brincadeira titular e depois passa para a brincadeira temática com Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick, refletindo sobre o futuro da humanidade, tornando crítica a diminuição da leitura mais relevante em nosso tempo e o que isso pode trazer para a população em um futuro distante (a trama se passa em 2221). E aqui deixo claro que o argumento de que “nunca se leu ou se escreveu tanto como hoje, por conta das redes sociais“, simplesmente ignora o conteúdo e a qualidade da leitura e da escrita das massas nessas redes, além do fato óbvio de que a leitura de coisas que ultrapassam um tweet ou mensagens pessoais têm sido substituída de maneira incontestável pelas dezenas de telas e sons que dominam a nossa sociedade hiperconectada, principalmente para as novas gerações.

A preferência pelo audiovisual é óbvia, e qualquer pessoa minimamente ligada a áreas de publicação editorial sabe a luta que existe para se formar um nicho de novos leitores. É uma luta socioeconômica e geracional, na verdade, que ultrapassa iniciativas editoriais (por melhor que sejam) e evidentemente precisam de um programa maior, entre estadual e federal, que comece nos anos iniciais da educação básica. Essa terceira história do compilado, com o Machado de Assis em holograma e as pessoas apartadas da literatura e das artes como um todo, me deixou um tanto melancólico. Me fez pensar nessas questões do avanço tecnológico e como hábitos essenciais para desenvolvimento, enriquecimento e expansão de nosso arcabouço cultural tem sido substituído por banalidades.

E o mais frustrante é que uma coisa não precisaria excluir a outra. Todo mundo gosta de consumir suas banalidades. Isso faz parte. Mas todo um conhecimento estrutural, toda uma coluna cultural para diversos conhecimentos ou mesmo entretenimento em nossa sociedade tem perdido espaço; curiosamente numa sociedade que poderia utilizar os próprios meios digitais para propagar em massa, e com acesso muitíssimo mais facilitado e amplo, a literatura, os quadrinhos, as artes para as pessoas. Não sou pessimista a ponto de imaginar um futuro como essa aventura final com o Zé nos mostra, mas penso que, no fim das contas, algo próximo disso deverá acontecer mesmo se um processo educacional de massa, que não apenas cultive, mas mostre a importância da leitura para as massas, não ganhe espaço em nossa grande Tela Global o mais rápido possível.

Viagens Fantásticas nos traz bons momentos de diversão, boas risadas e três deslocamentos temporais aplaudíveis do nosso querido Zé Carioca, num modelo de aventura que eu adoraria que a Culturama desse sequência e não num hiato grande entre uma publicação e outra. O Zé ainda tem muitas viagens incríveis para fazer, e meios para realizar essas viagens ou mesmo lugares literários para visitar é o que não faltam, afinal, ele conseguiu fundar uma Biblioteca Pública na Vila Xurupita! Taí um lugar para novas estantes caírem na cabeça dele ou para que qualquer outro artifício bibliotecário apareça e o impulsione tempo-espaço afora.

Zé Carioca: Viagens Fantásticas (Brasil, dezembro de 2021)
Códigos das Histórias: B 2021-014a / B 2021-015 / B 2021-016
Roteiro: Gérson Luiz Borlotti Teixeira, Paulo Maffia, Lederly Mendonça
Arte: Luiz Podavin (primeira história), Eli Marcos M. Leon (segunda história), Moacir Rodrigues Soares (terceira história)
Arte-final: Eli Marcos M. Leon, Luiz Podavin, Irineu Soares Rodrigues
Cores: Fernando Ventura, Toni Caputo
Capa: Luiz Podavin
Cor da capa: Cris Alencar
31 páginas

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