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Crítica | Zerando a Vida

por Luiz Santiago
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Consta que a Netflix assinou um contrato de quatro filmes com Adam Sandler, ação que estou tentando entender até agora. O primeiro longa deste tsunami de desastres foi o western The Ridiculous 6 (2015) e o segundo, o presente Zerando a Vida (2016), comédia de ação e aventura que conta a história de Charlie (David Spade), um gerente de banco que tem sua vida completamente bagunçada quando um amigo do passado o convence a forjar a sua própria morte e embarcar em uma aventura do tipo “agora podemos ter uma nova vida, vamos fazer de tudo“. O resultado, claro, não poderia ser nada menos que quase duas horas de explicação detalhada de como não fazer cinema. Não há nenhuma dúvida de que cursos de audiovisual utilizarão este filme em matérias do tipo: “Como Não Fazer Um Filme” ou “Não Seja Este Diretor” ou “Não É Assim Que Se Faz Comédia”.

Dirigido por Steven Brill, que já havia trabalhado com Sandler em Little Nick – Um Diabo Diferente (2000) e A Herança de Mr. Deeds (2002), Zerando a Vida sofre de uma crônica falta de foco, a ponto de o espectador imaginar-se em uma sessão de curtas-metragens feitos especialmente para vencer todos os prêmios do Framboesa de Ouro. Sugerindo certa inteligência ao trabalhar temas em mise en abyme, o roteiro a quatro mãos de Kevin Barnett e Chris Pappas vai revelando pouco a pouco intenções e tramas secundárias dentro da trama principal, como se quisessem seguir a trilha de filmes policiais de alta classe ou comédias onde várias histórias aparentemente desconexas se juntam para tornar a jornada dos protagonistas mais engraçada. O problema é que o texto de Barnett e Pappas não funciona nem em uma instância, nem em outra. O que era para ser algo inteligente torna-se um amontoado de problemas soltos de nulo impacto sobre a história e reafirmação da raiva de espectador.

No princípio, existe um encontro entre velhos amigos de colégio. Se o espectador não viu o trailer, ficará momentaneamente ludibriado com o fato de estar vendo uma comédia bobinha, mas que tem certa simpatia. Sim, porque o início do filme é, de fato, simpático. Mas isso só dura alguns minutos, até o momento em que o roteiro começa a fazer uma explanação desnecessária do cotidiano de Charlie, que surpreendentemente (ou não) é abandonada após a morte falsa e não possui mais nenhuma função na história, nem quando somos obrigados, para fins didáticos, a observar novamente takes deslocados do passado que explicam um bloco do filme que aponta para a cura do câncer, além de sinalizar a descoberta de que o semi-ninja-asshole vivido por Adam Sandler está doente e que tudo aquilo havia sido um subterfúgio para que ele conseguisse a cura [?].

Como disse anteriormente, não há foco. Vejam, existem muitas formas de estabelecer uma narrativa em abismo dentro de qualquer gênero cinematográfico, mesmo em comédias despreocupadas. Quer ver um exemplo? Assista às comédias românticas da cineasta Nancy Meyers. Nelas, existe certo cuidado em pelo menos guiar o filme em uma unidade de roteiro dentro de uma lógica estabelecida pelo próprio filme. Nem vou entrar no mérito de julgamento para a qualidade ou não do projeto. Estou falando exclusivamente de sentido intrínseco ao texto, coisa que Zerando a Vida não possui. O que ele carrega, tanto nos diálogos quanto na direção, é uma mímica reciclada de obras de diversos gêneros (Cassino, Pulp Fiction, franquia Bourne) que não se conecta bem e que não diz muita coisa, porque se recria e inventa novidades a cada 15 minutos, resultando em um desvio de atenção e, como não podia deixar de ser, zero desenvolvimento para as tramas que o próprio enredo propõe. Ao final, essa torrente nonsense deságua em um mar de piadas infames, uma briga em câmera lenta que é capaz de deslocar a retina de qualquer um de tanto revirar os olhos e um final com lição de moral à la Antes de Partir (2007), com a diferença de que o filme de Rob Reiner tinha qualidade.

Seria uma perda de tempo falar das atuações, posto que o elenco parece estar brincando de fazer caricaturas. Meu único lamento é ver Kathryn Hahn, que mostrou ótimo trabalho dramático em Transparent, entregar-se a essa bobagem cheia de caras e bocas, gritos, puxões de cabelo e ranger de dentes. Ao lado da canastrice insuportável de Sandler e total deslocamento de David Spade (o único que me pareceu desconfortável no papel), seria até covardia levantar a bola sobre dramaturgia aqui. Há youtubers iniciantes que fazem esquetes dramatizando de forma bem melhor.

O que se salva parcialmente em Zerando a Vida são os figurinos e a direção de fotografia, esta última, com boas tomadas em Porto Rico e iluminação adequada para o cenário litorâneo. Também destaco a sequência de “tortura” de Max, tanto na tonalidade da foto (marrom) quanto nas angulações. Se tudo naquele bloco falha miseravelmente, pelo menos existe, na fotografia, algo que funcione. Mas claro, esses pequenos momentos não são o bastante para salvar o horror que é a obra, do roteiro e direção desgovernados, passando por um não-elenco e chegando em uma trilha sonora aleatória e mal utilizada.

A grande questão é: o que deu na cabeça dos executivos da Netflix para assinar um contrato com Adam Sandler para quatro filmes? A tirar pela queda de qualidade do primeiro (que já era ruim) para este péssimo segundo filme, podemos concluir que as duas produções seguintes estarão classificadas em nível tóxico. Que os deuses do audiovisual tenham piedade de nós.

Zerando a Vida (The Do-Over) — EUA, 2016
Direção: Steven Brill
Roteiro: Kevin Barnett, Chris Pappas
Elenco: Adam Sandler, David Spade, Paula Patton, Kathryn Hahn, Nick Swardson, Matt Walsh, Renée Taylor, Sean Astin, Natasha Leggero, Luis Guzmán, Catherine Bell, Jackie Sandler, Michael Chiklis, Torsten Voges
Duração: 108 min.

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