Depois do sucesso gigantesco do primeiro Zootopia, a sequência chega com a ingrata tarefa de expandir um universo que já havia encontrado um ótimo equilíbrio entre comentário social, buddy cop e aventura familiar. Zootopia 2 tenta honrar esse legado ao dobrar a aposta no componente político e ao abraçar uma trama maior, mais ambiciosa e mais cheia de reviravoltas do que o filme de 2016, mas, em certa medida, essa ambição é tanto o que mantém a continuação interessante quanto o que a deixa tropeçar. O novo longa quer comentar o passado da cidade, quer reescrever sua mitologia, quer discutir segregação, revisionismo histórico e pertencimento, ao mesmo tempo em que mantém o humor, o carisma e o dinamismo da dupla Judy e Nick. E embora consiga bons momentos, há um evidente conflito entre a simplicidade encantadora da fábula original e o peso temático que essa continuação tenta carregar.
O acerto mais imediato de Zootopia 2 é reestabelecer Judy e Nick como protagonistas em conflito. A ideia de que, após pouco tempo de parceria, os dois já estão à beira de serem separados é um ótimo ponto de partida, pois afirma que eles continuam diferentes demais para funcionar sem esforço, e que a amizade entre os dois sempre dependeu desse atrito produtivo. Esse retorno à dinâmica imperfeita dos personagens é inteligente, porque impede a sequência de transformar a dupla em caricaturas estáticas. Judy continua ansiosa, convicta e obcecada com a noção de “fazer o certo”; Nick continua hesitante, sarcástico e emocionalmente mais cauteloso; mas há um claro desenvolvimento dramático em seu relacionamento (só acho que falta coragem para transformar em romance). Segue sendo bonito e maduro para o público-alvo que o filme reconheça que uma amizade verdadeira não existe sem atrito, sem cansaço e sem mágoas momentâneas.
Mas é quando Zootopia 2 tenta elevar suas ambições temáticas que o filme mais se atrapalha, não exatamente por buscar mais densidade, mas porque é uma obra meio inchada de elementos. A introdução de Gary De’Snake, da comunidade reptiliana escondida e de uma história secreta sobre a verdadeira fundadora da cidade, transforma a fábula policial em uma espécie de mistério histórico conspiratório, com uma trama menos condensada e firme do que vimos no primeiro filme. A extensão narrativa é ousada, mas às vezes soa inflada: existe uma massa de informações, personagens novos, tradições secretas e injustiças centenárias que o filme quer discutir, e nem sempre isso cabe organicamente dentro da estrutura da aventura ou de investigação. Inclusive, vejo a trama detetivesca como a maior deficiência da obra, bem menos engajante e envolvente do que na trama anterior. Ainda assim, o tema é forte, já que Zootopia sempre foi um universo construído sobre linhas de tensão racial, e revisitar a própria história da cidade é quase inevitável. O filme atualiza isso dando voz a uma minoria ainda mais marginalizada, no caso aqui os répteis, que literalmente foram enterrados sob a expansão urbana. É uma metáfora explícita, mas não desprovida de significado.
Por outro lado, narrativamente, Zootopia 2 se perde um pouco quando tenta fazer demais ao mesmo tempo. O caso de Gary é interessante e sua relação com Judy é um dos pontos altos da história, mas os próprios répteis ganham pouco espaço dentro da história (senti falta de uma exploração melhor nesse sentido). Além disso, ao empilhar o arco de alguns vilões menos interessantes do que o mote de presas vs predadores, a rivalidade política como pano de fundo, a prisão de Nick que o separa da linha principal, a conspiração histórica e a reintegração dos répteis na sociedade, o filme começa a perder foco ali pela metade. A profundidade emocional da trama principal se dilui em uma sucessão de reviravoltas, muitas das quais são repetitivas do filme anterior, ainda que, felizmente, a história de Judy e Nick se mantém como centro afetivo da franquia.
Mesmo entre erros, a sequência sabe tocar em algumas potências já estabelecidas. Nick continua sendo um dos personagens masculinos mais bem construídos da animação recente, vulnerável sem deixar de ser espirituoso, hesitante sem deixar de ser leal, ferido sem perder a capacidade de compartilhar afeto. Um bloco específico de resgate é um dos momentos que devolvem ao filme o coração que às vezes se perde no excesso de mitologia e de exposição. Gosto, também, como a dinâmica deles revela a justificativa da sequência, que vai além do acidente de trabalharem juntos para efetivamente entender se conseguem trabalhar juntos, noutro bom uso de clichês de buddy cop pela equipe criativa.
Visualmente, Zootopia 2 é deslumbrante, assim como a produção anterior. A obra confirma que a Disney ainda sabe criar microuniversos urbanos cheios de textura, com destaque especial para um bloco que mostra uma região com elementos aquáticos. A nova região dos répteis é igualmente marcante, embora apareça por menos tempo do que merece (novamente, esse lado narrativo é subutilizado). E o filme acerta ao diferenciar o movimento serpentino de Gary, que nunca é tratado como antagonista visual, mas como alguém deslocado do ecossistema político da cidade. A animação por si só segue sendo expressão narrativa das personalidades dos animais, sempre com ótimas sacadas para misturar nossa realidade com elementos selvagens, além de muitas referências divertidas, em especial de uma cena que evoca O Iluminado.
O clímax, centrado no confronto contra um vilão específico (sem spoilers, para evitar atrapalhar a reviravolta), é talvez o ponto mais previsível do filme, mas ao mesmo tempo um dos mais eficazes. A resolução emocional sublinha que Zootopia sempre foi sobre reparação. A reescrita da história oficial da cidade, envolvendo os répteis, é um comentário inteligente, mesmo que um pouco apressado, sobre revisionismo histórico, apagamento institucional e a necessidade de corrigir injustiças estruturais. A imagem final da reintegração reptiliana funciona, mesmo que o arco tenha sido comprimido demais para ter o impacto que merecia. No entanto, é no epílogo, com mais um “reencontro” da dupla principal, que o filme reencontra o tom perfeito. É doce, é íntimo, é a reafirmação desse vínculo tão bonito que move a franquia. E, no fundo, é isso que mantém Zootopia 2 vivo: por mais que se envolva em sua própria mitologia e por mais que às vezes se perca em seus temas, o filme nunca deixa de voltar ao seu núcleo emocional dos protagonistas carismáticos, em especial Nick.
Zootopia 2 é imperfeito, ambicioso e por vezes excessivamente carregado, mas ainda encontra momentos de encanto genuíno. É um filme que tenta correr mais longe do que consegue, mas que, graças ao coração da dupla protagonista e a uma sensibilidade política ainda presente, embora menos afiada, mantém algo do espírito que fez o primeiro filme tão querido. Nem tudo funciona, mas quando funciona, é porque Judy e Nick lembram que nenhuma cidade e nenhuma amizade permanece de pé sem verdade e confiança. A sequência não é tão elegante quanto seu predecessor, tampouco tão envolvente com a narrativa investigativa, mas é suficientemente sincera para garantir que Zootopia continue sendo um lugar onde vale a pena voltar.
OBS: Não falei do trabalho de voz do elenco de peso porque, como se tornou recorrente, não temos sessões legendadas para animações infantis, então tive que ver o filme dublado. A dublagem brasileira segue sendo de muita qualidade, mas é muito desserviço não termos salas com sessões legendadas.
Zootopia 2 – EUA, 2025
Direção: Byron Howard, Jared Bush
Roteiro: Jared Bush
Elenco: Ginnifer Goodwin, Jason Bateman, Idris Elba, Ke Huy Quan, Fortune Feimster, Andy Samberg, David Strathairn, Shakira, Patrick Warburton, Quinta Brunson, Danny Trejo, Alan Tudyk, Nate Torrence, Don Lake, Bonnie Hunt, Jenny Slate
Duração: 108 min.
