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Crítica | A Vida de Emile Zola (1937)

por Guilherme Almeida
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Émile Zola é figurinha carimbada no panteão dos grandes literatos franceses. Dono de um estilo mordaz e de uma inteligência arguta, o escritor foi um dos pináculos do movimento naturalista. Seus textos angariaram inimigos, promoveram discórdias, criticaram as mais diversas instituições francesas, do Estado ao Exército, passando também pelo jogo de aparências que mascarava a sujeira da burguesia. O autor legou à humanidade um arcabouço artístico inestimável, e seus livros, marcados pelas descrições animalizantes e pelo profundo pessimismo, são referência obrigatória a todos e todas que amem literatura.

A romantização cinematográfica de sua vida, entretanto, não chega nem perto de alcançar a maestria estética do retratado. A Vida de Émile Zola (1937), infelizmente, tem várias carências a abalar fortemente os seus reconhecíveis méritos. Acho até que não seria impreciso dizer que, objetivando homenagear o autor de Germinal e Nana, o filme deu um tiro que saiu pela culatra: o seu roteiro, obviamente edulcorado e idealizado, simplifica tudo ao máximo para facilitar a vida do espectador; é preguiçoso porque trata tudo em termos de Bem e Mal; vai, enfim, na contramão do senso de complexidade que guiava as obras do Zola histórico, prestando uma reverência simplória que certamente seria rechaçada pelo escritor.

A construção dramática do protagonista é cheia de falhas. No primeiro ato do filme, Zola (Paul Muni) é apresentado de maneira moralmente unilateral: sua suma bondade, seu empenho em criticar as assimetrias da sociedade francesa e denunciar a penúria dos desvalidos quase reverberam uma simbologia crística. Ao lado do grande pintor e fiel parceiro, Paul Cézanne (Vladimir Sokoloff), Zola corporifica o ideal do intelectual engajado e corajoso que volta o rigor da sua pena contra tudo e contra todos.

O sucesso de seus livros e a consequente glória na carreira, no entanto, fizeram-no se afastar dos gargalos sociais. A grande questão é que o longa trabalha essa transformação de personalidade muito abruptamente. Num átimo, o intelectual de intrépido torna-se pusilânime, de comprometido transfigura-se em indolente e egoísta. Seus laços com Cézanne se rompem e ele passa a conviver no círculo da alta classe francesa, sendo condecorado, louvado e inclusive aceito nos restritos âmbitos da Academia. Por meio dessa derrocada ética o que se sugere é que a fama, ao desbotar as causas às quais elas se dedicavam anteriormente, pode tornar as pessoas piores. Porém, a forma como se expressa isso é pouco competente e desprovida de matizações ou inflexões mais sutis.

O que faz Zola retomar a verve crítica são os desdobramentos da injusta condenação do capitão Alfred Dreyfus (Joseph Schildkraut). Esse caso toma grande parte da narrativa e consegue estabelecer uma boa conexão entre os dramas individuais dos personagens e o olho do furacão que se tornara o debate público da França no último quartel do século XIX. A participação do escritor francês nas grandes discussões coletivas é apenas mais um dos diversos casos em que intelectuais se recusaram a incorrer no solipsismo e subir as escadarias da torre de marfim. Lord Byron, a título de exemplo, tomou parte na Guerra de Independência da Grécia e lá morreu, e um século depois Thomas Mann faria transmissões radiofônicas pela BBC exortando o povo alemão a destronar Hitler. Mas A Vida de Émile Zola não conta a história na sua totalidade: Dreyfus foi vítima de uma conspiração principalmente por ser judeu; a polêmica pública que cercou seu julgamento é indissociável do antissemitismo francês. O bom e velho IMDB nos informa que o apagamento desse aspecto foi feito para não ofender o regime nazista então em ascensão e não prejudicar as bilheterias na Alemanha. Se verdadeiro o parecer, o gesto dos distribuidores não poderia ser mais odioso!

Analisada a pobreza do roteiro e a suposta mancha moral que cerca o filme, seria injusto não destacar seus pontos positivos. Algumas atuações são memoráveis. Joseph Schildkraut levou a estatueta de melhor ator coadjuvante e o sempre ótimo Paul Muni (presente também no clássico absoluto Scarface, 1932) faz um discurso de tirar o fôlego na muito bem filmada cena do tribunal. Lá, um sereno Zola espera o momento para se defender das acusações da promotoria e, quando chamado, entoa uma fala de seis minutos que prima pela beleza e transmite retidão irretocável. Por sua parte, na elegante direção de William Dieterle predominam os movimentos discretos de câmera, o chamado plano americano e os close-ups. Dieterle filme tudo sem querer aparecer. A montagem “invisível” e a trilha pouco chamativa não reclamam atenção para si, dando todo o destaque para a jornada do personagem-título.

Embora resguardada sua valia, o filme não é, efetuado o balanço geral, tão bom quanto podem fazer crer as dez indicações ao Oscar e os três prêmios conquistados (inclusive o de melhor filme e, pasmem, melhor roteiro!). A Vida de Émile Zola é uma tentativa hollywoodiana de transformar um escritor num herói. Compartilha o pecado de muitas biografias que, apaixonadas por seu tema, prestam um desserviço à verdade e à inteligência. Já faz parte do anedotário dos cinéfilos os erros das premiações cinematográficas — e eu trato desse tema na crítica de Como Era Verde o Meu Vale (1941). Os disparates da Academia mostram que, em muitos casos, o sábio tempo é melhor juiz do que os festivais.

A Vida de Emile Zola (The Life of Emile Zola) – EUA, 1937
Direção:
William Dieterle
Roteiro: Norman Raine, Heinz Herald e Geza Herczeg.
Elenco: Paul Muni, Gale Sondergaard, Joseph Schildkraut, Gloria Holden, Donald Crisp e John Litel.
Duração: 120 minutos.

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