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Entenda Melhor | A Jornada do Herói

por Leonardo Campos
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A palavra herói é bastante ampla e não abarca somente personagens dotadas de poderes especiais, convidadas para alguma aventura em busca da salvação do planeta ou da cidade em que moram. O herói de uma aventura pode ser um professor, um atendente de supermercado, uma mãe ou qualquer outro personagem que é retirado do seu conforto para sair em busca de resolução para alguma questão. Talvez pela quantidade de filmes de ação e de super-heróis que inundam as salas de cinema semanalmente, as pessoas constantemente confundem as definições. Diante do exposto, entendemos que o herói e a sua jornada compreendem uma passagem muito importante numa narrativa, pois será através dos seus ideais e das suas necessidades dramáticas que as histórias a que você se propor a construir serão pouco ou muito interessantes. Como reforçou Syd Field em seus manuais, sem personagem não há ação e sem ação não há história.

Ao observar o painel de realizações ficcionais ao longo da história da humanidade, a impressão que se tem é que nós estamos sempre contando histórias muito semelhantes. Obviamente que alguns itens mudam entre uma cultura e outra, mas no geral há uma espécie de esqueleto narrativo utilizado como fórmula e tratado como alicerce para os livros que lemos e os filmes e séries que acompanhamos. Foi com essa mesma impressão que em 1946, o pesquisador Joseph Campbell publicou O Herói de Mil Faces, compêndio que traça as semelhanças e diferenças dentro deste esquema narrativo aparentemente similar desde que a humanidade começou a registrar as suas histórias. Nesta época, Carl Jung publicou algumas teorias sobre os arquétipos e o inconsciente coletivo, material que lido em paralelo com o livro de Campbell, torna-se essencial para compreensão das afirmações sobre as estratégias na construção do herói no cinema, na literatura e nas demais manifestações narrativas.

Estrutura básica da Jornada do Herói, adaptada para diversas áreas, inclusive o Marketing.

Através de seu meticuloso trabalho que envolveu pesquisas acerca da estrutura dos mitos, lendas e fábulas, tendo o cinema e as histórias modernas também inclusas no painel de análises, Campbell percebeu que em quase todas as histórias há um personagem intitulado herói e que os acontecimentos da narrativa giram em torno de suas peripécias. Como apontado logo em nossa abertura, o herói pode ser humano, um grupo de pessoas, uma figura oriunda da mitologia ou até mesmo um animal. Na esteira da publicação de Joseph Campbell, os estúdios da Disney contrataram Christopher Vogler, autor de A Jornada do Escritor, para escrever um memorando que seria largamente utilizado na construção de roteiros dentro da seara de produção hollywoodiana. Este material, publicado posteriormente como livro, estabeleceu a jornada do herói que conhecemos em diversos filmes que assistimos nas últimas décadas, tais como A Pequena Sereia, Lucy, Matrix, Star Wars, Thelma & Louise, O Silêncio dos Inocentes, etc., alguns com maior referência aos modelos, outros adotando apenas algumas das etapas.

Lucy, Thelma & Louise, Matrix, Procurando Nemo, A Pequena Sereia e A Fuga das Galinhas: narrativas que permitem um diálogo com a Jornada do Herói.

Diante do exposto, eis a questão: quais são as doze etapas da jornada do herói? Antes de traça-la pormenorizadamente, cabe relembrar ao leitor que nem toda história se encaixa neste modelo. Vejamos o caso do nacional Tropa de Elite. Mesmo que o roteirista afirme que não houve nenhuma consulta aos passos da jornada do herói, percebemos que há etapas desta saga que estão presentes no filme. Somos formados por uma cultura que repete fórmulas de sucesso, reinventando-as. Isso, entretanto, não significa que todo filme precisa forçar a barra e encaixar as doze etapas na construção tradicional, fórmula que funciona, mas que também pode ser uma armadilha diante de uma história com potencial mais subjetivo. Nós, consumidores de cultura industrializada no contemporâneo, precisamos conhecer Aristóteles, Syd Field e DOC Comparato? Sim, sem dúvida alguma. São manuais bem traçados, dotados de informações elaboradas por autores extremamente cultos e referenciados em quase todos os filmes a que assistimos, entretanto, é preciso conhecer para subverter. Você verá que nem toda obra se encaixa no modelo, tampouco precisa cabalmente desta estrutura para ter uma obra narrativamente interessante. Exemplo? Veja os filmes de terror orientais. Observe como desobedecem determinadas regras fixadoras e ainda assim, conseguem desenvolver as suas histórias.

As etapas da jornada do herói

1 – O Mundo Comum: o momento em que o herói é apresentado em seu cotidiano. Lembra-se da abertura de O Silêncio dos Inocentes? Clarice Starling está em treino quando é chamada para uma tarefa que mudará a sua vida. Ao chegar ao escritório do seu chefe, descobre que foi selecionada para conversas com o temível Hannibal Lecter.

2 – O herói recebe o chamado: é o momento em que o herói precisa sair da sua rotina para resolver algo inesperado ou incomum. A cena seguinte ao chamado de Clarice Starling, durante os seus exercícios, é continuação direta da primeira etapa da jornada. É uma passagem que reforça a importância na concepção de um personagem que seja muito interessante. Se não há magnetismo entre o herói e o espectador, esqueça a narrativa. Ela não vai funcionar. Vejamos o caso de Lanterna Verde, herói de uma das adaptações de quadrinhos dos últimos anos. O personagem é pouco interessante, apesar do charme de Ryan Reynolds. Neste caso, nem o ator é capaz de salvar um personagem ruim. Em Tropa de Elite, por sua vez, acontece o contrário. O Capitão Nascimento é um personagem bem delineado, forte, em evolução, nos interessamos tanto por ele que damos o mesmo crédito à sua segunda jornada, em Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro. Wagner Moura humanizou o personagem, haja vista a sua grande capacidade dramática, mas o personagem em si já era bom no próprio texto. Resumindo: se um personagem é banal as chances do público gostar são parcas.

Clarice Starling em O Silêncio dos Inocentes: primeiras etapas da aterrorizante jornada da heroína.

3 – A recusa ao chamado: o herói não quer se envolver e prefere dar continuidade a sua vida comum. Homem-Aranha tem alguns aspectos. Peter Parker só dá o primeiro passo depois de muita resistência. Dentre as diversas versões, deixo como sugestão a adaptação de Sam Raimi, lançada em 2001. O filme possui um ar juvenil, mas não peca em infantilizar os personagens e situações. Nada contra narrativas infantis, Procurando Nemo e A Fuga das Galinhas, também funcionais na infância, na verdade, são jornadas complexas e muito adultas, mas há uma dinâmica preocupante na seara da indústria cinematográfica que tende a facilitar tudo para o espectador, não deixando, como já apontado, espaço algum para a reflexão. Este é o momento em que o vilão/antagonista precisa ser muito bem definido, pois a mudança de opinião do herói e o seu passo para a próxima etapa da trajetória vai depender da verossimilhança do perigo proposto na narrativa. Até este momento estamos a caminhar pelo primeiro ato.

4 – O encontro com o Mentor: momento em que o herói se encontra com alguém dotado de maior experiência ou com uma situação que o força a tomar uma decisão de extrema importância. Em O Silêncio dos Inocentes, essa passagem fica evidente na “descida aos infernos” realizada por Clarice Sterling. Ao se encontrar com Hannibal Lecter no manicômio, a personagem vai encontrar-se consigo mesma. Ao passo que a narrativa se desenvolve, entretanto, a agente do FBI perceberá que Hannibal funciona como uma espécie de mentor, pois a força a pensar nas suas atitudes e interpretar as situações de maneira mais sofisticada.  Geralmente o mentor acompanha a personagem até determinado momento. Mais adiante será preciso seguir com as próprias pernas, pois a jornada de transformação do herói requer a aplicação dos ensinamentos durante a sua etapa como aprendiz. Bellini e a Esfinge, Hamlet, Kill Bill, Karatê Kid e De Volta para O Futuro são alguns exemplos.

Encontros com seus respectivos mentores em O Silêncio dos Inocentes, Kill Bill e Karatê Kid. Abaixo, a personagem de Sandra Bullock faz a sua travessia pelos umbrais do seu passado, revelador para a sua tomada de decisão ao adentrar na jornada, em Cálculo Mortal.

5 – A primeira travessia (limiar ou umbral): nesta fase o herói decide dar entrada no novo mundo, tendo fatores pessoais e/ou coletivos como mola propulsora da sua decisão. Mesmo que o personagem não queira, alguma coisa engrena esta motivação. Após o encontro com Hannibal Lecter, Clarice Sterling decide investigar o passado do canibal e descobrir os motivos que o levaram ao encarceramento. A caçada é ao psicopata Buffalo Bill, mas será preciso vencer os desafios psicológicos de Hannibal inicialmente. Os manuais apontam que o primeiro ato geralmente se encerra neste ponto, caso no momento de sua criação, você estiver interessado em seguir cabalmente este passo a passo. Em Cálculo Mortal, suspense contemporâneo que possui laços estreitos com o clássico Festim Diabólico, de Alfred Hitchcock, a personagem desenvolvida por Sandra Bullock precisa investigar um crime aparentemente perfeito. Ao adentrar no processo investigativo, a personagem vai começar uma jornada que funciona como uma espécie de terapia, haja vista os seus traumas do passado. O filme não é brilhante, há ruídos narrativos, mas como já apontado, aprendemos com os bons, com os medianos e, principalmente, com os ditos ruins.

Outro filme mediano, com a mesma atriz, do mesmo gênero cinematográfico, como exemplo para esta etapa: Premonições. Na produção, Sandra Bullock interpreta uma dona de casa que certo dia é informada sobre a morte do seu marido em um acidente na estrada. A situação insólita vai se estabelecer no dia seguinte: ao acordar, ela descobre que o marido está vivo e que os seus dias estão desajustados, tal como uma trama de viagem no tempo. Sendo assim, será preciso tomar as devidas precauções para tentar salvar a vida do seu marido e, consequentemente, o seu casamento em crise e a sua família. Este tipo de narrativa pode ser um treinamento eficiente para você, caro leitor, pois ao passo que a trama não segue o caminho óbvio da linearidade, o público é levado a refletir mais sobre o que está assistindo. Isso não significa que a narrativa seja o que se convencionou, na fala popular, a chamar de “diferentona”: ao contrário, em Premonições há falhas narrativas, um exemplo cabal de narrativa pretensamente ousada que não consegue sustentar as suas ambições.

6 – Entre os aliados, inimigos e testes de aptidão: fora do seu ambiente comum o herói descobrirá quem são os seus inimigos e os seus aliados. Em algumas narrativas, os aliados tornam-se inimigos posteriormente, bem como inimigos/antagonistas podem se tornar aliados. Mesmo que as narrativas mais clássicas sigam um modelo engessado, nem sempre será preciso se adequar aos padrões. O ideal é conhecer para subverter. Vejamos o caso da série Revenge, inspirada no romance O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Alguns prováveis inimigos tornam-se aliados da heroína, assim como alguns aliados tornam-se inimigos ferrenhos posteriormente, a depender dos seus interesses e necessidades dramáticas. Na série, Emily Thorne retorna ao local de onde foi retirada da infância, graças à traição sofrida por seu pai. Renovada e com sede de vingança, a personagem pretende destruir a todos que estragaram a sua juventude. Apesar de ter perdido a mão em quatro temporadas longas para um tema que pedia uma boa minissérie de ótimos dez episódios, Revenge possui alguns elementos interessantes para pensarmos a jornada do herói. Dê uma chance ao material e tire as suas próprias conclusões. Os manuais indicam que nestes trechos, o ideal é que o criador utilize diálogos oblíquos. Cabe ressaltar que é uma etapa que pode se repetir constantemente ao longo da história.

Quem são os aliados e oponentes de Emily (centro)? Aidan, Ashley, Margot, a eterna vilã novelesca Victoria Grayson e Jack, o amor do passado: personagens do inconstante roteiro de Revenge. 

7 – Aproximação do objetivo da jornada: eis uma fase de incertezas. O herói se torna mais próximo do cumprimento de sua missão, mas o nível de tensão é elevado e a trama apresenta uma série de indefinições. De acordo com os manuais, quando o herói alcança esta fase, ele está passando pela Segunda Travessia.

8 – Provação máxima: os manuais apontam esta fase como o auge da crise. É quando o herói demonstra toda a sua coragem, no momento mais tenso da narrativa. Voltamos ao clássico contemporâneo O Silêncio dos Inocentes: após ser afastada oficialmente da investigação, Clarice Sterling sai sozinha em busca de resolução para o problema. Enfrenta Buffalo Bill numa missão que poderia ter custado a sua vida. Momento mais crítico da narrativa? Sendo assim, o que acha de caprichar na tensão? Não precisa histeria, tampouco excessos. Aprende-se muito sobre este tipo de construção lendo contos e assistindo ao máximo de filmes que puder. A sugestão dos contos está ligada ao fato de ser um gênero literário curto e dinâmico, com estrutura que pede o máximo de tensão para manter o leitor preso à dinâmica do enredo. Adonias Filho, Clarice Lispector, Edgar Allan Poe e Machado de Assis são ótimas opções (caso algum leitor queira desenvolver uma história dentro deste esquema).

9 – A recompensa: após a provação na etapa anterior, o herói conquista a recompensa. Em O Silêncio dos Inocentes, Clarice Sterling ganha notoriedade após a resolução do caso Buffalo Bill. Ela o enfrenta, corre risco de vida, salva a filha da senadora e consegue legitimar-se dentro do esquema machista do FBI. Pede-se, nesta etapa, que o escritor evite delongas neste trecho. Nada contra o melodrama, mas a sutileza às vezes é mais interessante que frames lacrimejantes em profusão. É um momento de cuidado, pois qualquer descuido pode colocar todos os seus trunfos narrativos a perder.

Depois da recompensa, a personagem de Jodie Foster passa pela depuração, com a ligação de Dr. Hannibal. Sidney Prescott, em Pânico 4, também, ao descobrir que depois do massacre, a sua prima era a mentora da tragédia. Acima, cada desfecho dos três primeiros filmes da franquia Pânico: em cada encerramento, Sidney cumpria uma etapa, reaberta no filme seguinte.

10 – O caminho de volta: é basicamente a etapa mais curta. Em alguns filmes é elidida ou suprimida. Após o alcance do objetivo, o herói retorna ao seu mundo comum. Vale lembrar que este caminho ainda pode oferecer perigos.  Em filmes de terror é muito comum essa obsessão por continuações. Neste caso, o herói sabe que cumpriu aquela missão, mas precisará enfrentar alguns problemas mais adiante. Na franquia Pânico, sabemos que haverá mais problemas ao passo que o primeiro e o segundo filme acabam, pois os criadores informaram a proposta para uma trilogia logo no início da jornada de Sidney Prescott. No entanto, mesmo com esses dados, o roteiro fecha a jornada sem deixar brechas ou suposições para a etapa seguinte. Neste caso, há uma jornada completa em cada filme da franquia, com novos desafios sempre na etapa seguinte.

11 – Depuração: acontece com muita frequência, mas não é uma obrigação. Neste momento, o herói precisa enfrentar algo secundário que ficou em aberto ao passo que a narrativa fechou o seu problema central. Vejamos o caso de Hannibal Lecter. Depois de orientar Clarice Sterling, o personagem desaparece. Durante a celebração do sucesso de sua jornada, com a condecoração na polícia, a agente recebe uma ligação e ao atender, descobre ser o psicopata foragido. Esta situação pode ou não ser resolvida neste final, ou então, estabelecer-se como um problema que ficou em aberto, sem possibilidade de resolução, ou então, tornar-se o gancho para uma sequência, como de fato houve com o lançamento de Hannibal, desta vez, sob o comando de Ridley Scott, tendo Juliane Moore no lugar de Jodie Foster para a interpretação de Clarice Sterling. Um bom filme deixa o espectador tão envolvido com o ponto central que o ressurgimento desta trama secundária se mostra como um elemento surpresa para o desfecho. É o que acontece no final de O Silêncio dos Inocentes.

12 – Retorno e transformação: é o momento final da história, com o retorno do herói transformado ao longo da sua jornada. O personagem não enxerga as coisas como antes, tampouco é o mesmo do inicio da saga. A transformação ocorre para torna-lo alguém melhor. O herói pode ter encontrado a cura para algo ou a liberdade para viver. Dizem que a evolução não é obrigatória, mas é a melhor opção. Difícil concordar com esta afirmação, mas se você estiver em uma trama bem realista, muitas vezes esta é uma boa opção, afinal, conhecemos tantas pessoas que passam por situações extremas e não evoluem, dando continuidade ao mesmo pensamento tacanho de outrora, mesmo tendo sido testado pelas peripécias da vida, não é mesmo?

O Senhor dos Anéis, Doutor Estranho, Steve Jobs, O Rei Leão, Star Wars e Interestelar: alguns dos diversos casos da aplicação da fórmula da Jornada do Herói.

Ademais, pense na tríade Partida, Iniciação e Retorno.

Partida: momento em que a narrativa lida com o herói adaptando-se a sua jornada.

Iniciação: as várias aventuras durante a travessia pela jornada.

Retorno: momento em que o herói volta a casa com o conhecimento e os poderes que adquiriu ao longo da jornada.

Lembrete: há narrativas que burlam esta sistematização, iniciando o filme com o Retorno, para adiante, apresentar a Partida e a Iniciação. Em alguns casos, pode começar com A Iniciação, explicar mais adiante a Partida e no final arrematar a narrativa com o Retorno. São muitas as possibilidades. Interessante pensar em todas para compreender as subversões de histórias menos subservientes aos sistema, não é mesmo? Conhecimento nunca é demais e para subverter é preciso conhecer as regras, correto?

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