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Entenda Melhor | A Música de Hannibal

por Leonardo Campos
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Densidade, referências aos clássicos eruditos e construção atmosférica que mescla doses generosas de horror com traços dramáticos profundos. Assim é a condução musical das produções audiovisuais do universo de Hannibal Lecter, um dos personagens mais audaciosos da literatura, oriundo dos romances de Thomas Harris, e levado ao cinema e para a televisão no triunfante O Silêncio dos Inocentes, no polêmico Hannibal, na tessitura branda, mas sofisticada de Dragão Vermelho, no opaco Hannibal – A Origem do Mal e nas três enigmáticas temporadas da série Hannibal. Em linhas gerais, os resultados obtidos nas texturas percussivas de Howard Shore, Hans Zimmer, Danny Elfman, Ilan Eshkeri, Shigeru Umebayashi e Brian Reitzell são muito bons, com variações de qualidade e potencial memorialístico entre um trabalho e outro, apontados hierarquicamente aqui até o desfecho deste breve artigo.

Uma obra-prima, tal como o filme que acompanha. Assim é a trilha sonora de O Silêncio dos Inocentes, um dos tantos triunfos de Howard Shore, compositor que conduz a trajetória evolutiva de Clarice Starling e Hannibal Lecter com pompa. O canadense, parceiro de David Cronenberg em longas jornadas em torno de tramas enigmáticas e psicologicamente densas, assumiu aqui, um trabalho opressor, acompanhado por latões, cordas constantes, harpas, flautas, dentre tantos outros instrumentos peculiarmente trabalhados para a construção do tom ideal para o filme dirigido por Jonathan Demme. O tema principal é um primor auditivo. Começa suave e sobre gradativamente, por meio da sonoridade de cordas graves, instrumentos de sopro baixos e acordes que parecem ondular na textura inquietante. Encontramos trepidação, lentidão proposital e cordas taciturnas em The Asylum, composição que nos passa um pouco de ansiedade. Clarice traz protagonismo dos sopros e elementos das composições anteriores. É uma das faixas mais importantes, pois expõe a intensidade da protagonista em sua jornada passional.

Quid Pro Quo e Lambs Screamings são demasiadamente sombrias, a primeira por conta do uso assertivo de trompas e a segunda por unificar cordas e sopro suave, numa simbiose quase romântica. The Cellar, faixa que representa o choque entre Buffalo Bill e Clarice Starling, traz densas cordas que soam como uivos, num contraste entre instrumentos de sopro, antecipação de Finale, composição com presença firme de harpas dedilhadas e flexibilidade das cordas que entre um ponto e outro da música, ressoa travessa, antes de triunfar em seu desfecho denso. O trabalho de Hans Zimmer na sequência é também maravilhoso, mas a textura de Shore é o ponto alto de todo este universo de personagens esféricos e conflitos dramáticos poderosos. Desenvolvida pelo músico com base na montagem bruta do filme, sem necessariamente se prender ao roteiro, a trilha sonora de O Silêncio dos Inocentes reflete o ponto de vista feminino da protagonista, bastante significativo, num trabalho com progressão de acordes, instrumentos justapostos em camadas e uma proposta que se tornou assustadora, sem ser a intenção inicial de seu compositor.

Bela, gótica e conectada de maneira eficiente com o espaço cênico de Florença, habitada por ninguém menos que Hannibal Lecter, a trilha sonora de Hannibal é um trabalho primoroso de Hans Zimmer, espécie de treino para o que foi desenvolvido em O Chamado, isto é, uma atmosfera sonora sombria e assustadora, diferente do que se compõe no geral neste campo de produção. Dear Clarice é o primeiro passo. Zumbidos tomam assustadoramente a faixa que tem acompanhamento de coro feminino discreto e vozes misteriosa que dão o tom da textura firme. É a faixa do álbum que traz a narração de Anthony Hopkins para a sua carta endereçada a Starling. Envolvente, temos um piano que a encerra, antecipação para as cordas que nos levam aos créditos iniciais, musicado pelas Variações Goldberg, de Bach, a música clássica que acompanha o canibal ceifando os dois seguranças antes de jantar e deixar as suas vítimas numa cenografia inspirada pelos quadros de Francis Bacon, o pintor da “carne” do século XX.

Uma variação distorcida da valsa Danúbio Azul, de Strauus, surge como tema para o infame Mason Verger, antes da referência ao trabalho de Goblin, compositor de Dario Argento em Prelúdio Para Matar, na faixa Avareza. Se na anterior tínhamos a inclusão de piano e acompanhamento de Lecter pelas ruas de Florença, The Library Capponi traz envolventes bandolins dedilhados e sintetizadores. O coro distante e as cordas se unificam na gótica Virtue, sinos se destacam em Let My Home Be My Gallows, faixa com o retorno da voz de Lecter, envolta numa orquestração agitada. Ao passo que a trilha se aproxima de seu desfecho, o trabalho se mantém firme, sem perder o fôlego e, principalmente, a sua beleza exuberante. Junto ao mestre Ridley Scott, Zimmer compõe um trabalho sombrio, parte de um filme que gerou bastante polêmico e debates diante das escolhas narrativas controversas. Bach e outros nomes pontuais da história da música classe estão constantemente presentes neste universo, em especial, nesta produção e em suas “origens”.

Os Compositores Howard Shore & Hans Zimmer

Sem o impacto emocional das trilhas anteriores, a condução musical de Dragão Vermelho, composta por Danny Elfman, deixa-nos com uma sensação branda demais enquanto acompanhamos o material em audição exterior ao filme. Com exceção de duas ou três faixas impactantes, o resultado geral é morno e funciona bem, como já mencionado, quando a música é parte de uma cena interessante, captada pela ótima direção de fotografia do filme, bem como de seu design de produção bastante interessante. Com sua bagagem na televisão, no teatro e no cinema desde os primeiros anos da década de 1990, Elfman esteve com Tim Burton, Gus Van Sant, Sam Raimi, dentre outros diretores renomados. Constantemente, o músico se diz influenciado pelo estilo de Bernard Hermann, compositor que encontra desdobramentos nas produções do contemporâneo. Para Dragão Vermelho, ele inseriu algumas tonalidades do trabalho de Howard Shore, tendo em vista estabelecer algumas conexões com o universo em questão, num trabalho orquestral, com poucas inserções eletrônicas, presença massiva de metais e ritmo firme nas cordas de baixo. Destaque para o Main Title, atmosférico ao criar uma redoma de horror com toques sutis de uma suavidade contrastante com a temática abordada, faixa que ao lado de The Old Mansion e The Fire, representam os melhores momentos desta textura percussiva branda.

Os Compositores Danny Elfman, Ilan Eshkeri e Shigeru Umebayashi

Como já apontado na crítica de Hannibal – A Origem do Mal, as aventuras predecessoras que buscam explicar o comportamento dos personagens não se apresentam como um filme ruim. É uma narrativa com bons momentos, mas tola como a maioria das narrativas que fazem parte do processo de expansão de universos bem-sucedidos, exauridos após incursões em excesso. No desenvolvimento do álbum em questão, Ilan Eshkeri e Shigeru Umebayashi cumprem adequadamente os seus trabalhos, mas estão com material irregular em mãos, então não conseguem fazer muita coisa além de trivialidades. O primeiro, compositor inglês, atuou em diversos segmentos, desde produções com envolvimento musical erudito aos filmes com atmosfera pop. Com sua experiência em música e literatura na Universidade de Leeds, Eshkeri também trabalhou para museus e instalações. O segundo, compositor japonês, começou a fazer trilhas após longa colaboração numa banda de rock até 1985. Depois disso, investiu em produção musical para filmes chineses, sérvios e japoneses, senda a colaboração com Wong Kar-Wai um dos momentos mais pomposos de sua trajetória no campo das trilhas sonoras.

Para as origens do canibal mais famoso do cinema, Ilan Eshkeri e Shigeru Umebayashi investiram em muitas cordas, algumas densas, outras mais suaves, tal qual o desenvolvimento sonoro do filme, inicialmente mais soturno e mais brando ao posso que as histórias se desdobram. Ao longo de todo o material, Bach é o grande destaque, da mesma maneira que as trilhas anteriores deste universo. As Variações Goldberg, conjunto que teria sido escrito para um conde chamado Kerman Karl Keyserling, uma das obras mais famosas e respeitadas do músico alemão que foi regente e cravista, além de mestre da composição. Essa é a penúltima trilha do universo específico de Hannibal, novamente retomado nas trilhas de Brian Reitzell para as três temporadas da série que leva o nome do personagem, sem sobrenome.

Música de bastante densidade em seus três anos, a textura para a abordagem televisiva é um retumbante trabalho de qualidade musical, mas que funciona quase que exclusivamente em simbiose com os episódios da série, funcionando pouco para uma audição dissociada, como os trabalhos de Shore e Zimmer, conteúdos que cabem tranquilamente como acompanhamento sem precisar associação com as imagens. Na primeira temporada, metais e cordas, poucos investimentos em sopro, afinal, quem assistiu a série sabe que a produção evita jumpscare e coisas do tipo, preferindo as sutilezas. Além de inserir sonoridades japonesas ao longo da segunda temporada, Reitzell trouxe sinos, gamelons e materiais da Indonésia. O estilo continua em sua terceira incursão, sempre com piano em tom sinistro e metais que ajudam na construção da atmosfera de horror e sofisticação que mesclam a audiovisualidade em Hannibal.

Com bastante experiência em games e trilhas sonoras, Brian Reitzell também foi músico de uma banda de punk, sonoridade anárquica que ganha tons obscuros e inquietos no desenvolvimento da engenhosa composição para Hannibal. Seu trabalho é constantemente associado ao estilo experimental de John Zorn, com traços consideráveis de Philip Glass. Observada por um viés hierárquico, como mencionado na abertura desta panorâmica reflexão, a trilha sonora de Howard Shore para O Silêncio dos Inocentes é operística, intensa, incomparável, forte dentro e fora do filme, uma obra-prima da trilha sonora moderna, seguida do trabalho de Hans Zimmer, compositor que mescla clássicos com produções originais, dando ao ouvinte um presente, isto é, a voz de Anthony Hopkins narrando algumas passagens suntuosas. O trabalho de Brian Reitzell para a série de tv, apesar de funcionar pouco dissociado, como já dito, tem alguns pontos bem eficientes, mesmo que parcos, melhores que os trabalhos de Danny Elfman e da dupla Ilan Eshkeri e Shigeru Umebayashi para Dragão Vermelho e Hannibal – A Origem do Mal, respectivamente, materiais com alguns excelentes momentos, mas resultado geral irregular.

O Compositor Brian Reitzell 

Por questões editoriais, isto é, de recorte, a trilha básica de Jeff Russo para a primeira temporada de Clarice e o trabalho de Michel Rubini e The Reds, para Caçadores de Assassinos, não foram inseridos nesta análise panorâmica.

 

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