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Entenda Melhor | A Vulnerabilidade do Vidro: Medo e Perigo na Cenografia Slasher

A morte está lá fora: uma análise da cenografia no filme slasher.

por Leonardo Campos
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Um insight que me veio após anos de imersão nos filmes slashers, narrativas que embalaram a minha infância e adolescência como entretenimento ligeiro e, na fase adulta, se tornaram um objeto ainda diletante, mas fruto de análises críticas. A questão norteadora deste artigo é a seguinte: vocês, caros leitores, já observaram o quão vulnerável é a construção do espaço cênico nos meandros das produções classificadas como slashers? Abundantes janelas e portas de vidro deixam os personagens, protagonistas e coadjuvantes, como potenciais vítimas numa vitrine, vulneráveis para o ataque dos famigerados antagonistas mascarados filmes das franquias Pânico, Sexta-Feira 13, Lenda Urbana, Halloween, dentre outros. Nestas produções, cenografia, desempenho dramático, trilha sonora, direção de fotografia e design de som estão em simbiose para permitir que a sensação de medo e perigo se estabeleça no desenvolvimento das histórias, algumas dramaticamente questionáveis, outras mais sofisticadas, todas, no entanto, embaladas numa caixa da memória que a transformaram em clássicos do cinema, referências constantes no bojo das realizações contemporâneas deste subgênero que está sempre em constante transformação e permanência.

Vamos nessa?

Um Punhado de Conceitos: Sobre Cenografia no Cinema

Todos os setores de uma produção cinematográfica são importantes. A cenografia é um deles, parte integrante do design de produção, segmento que engloba, dentre tantas áreas, a direção de arte, a maquiagem, os figurinos, os efeitos visuais e demais áreas que compõem a visualidade de uma narrativa. A cenografia colabora com o desenvolvimento da história a ser contada, pois situa os personagens dentre de espaços que compõem os seus perfis físicos, psicológicos e sociais, estrutura básica da dramaturgia na formatação das figuras ficcionais que embasa um roteiro. Relacionada com a arquitetura, a cenografia cuida das instalações e engloba profissionais aderecistas, construtores, designers de interiores, arquitetos, jardineiros, carpinteiros, maquinistas e, como não poderia deixar de ser, os cenógrafos. A composição destes espaços é classificada pelos teóricos da linguagem do cinema como geografia narrativa, principalmente quando se trata de espaços mais abertos, tais como cidades, ruas, etc.

Cenas de Pânico (2022)

São dois tipos mais habituais: cenografia externas, isto é, parques, ruas, bairros, como podemos ver em Crystal Lake, Elm Street, Woodsboro e Haddonfield, ambientações de existência prévia que passam por adaptações para se tornarem as cidades do cinema; e a cenografia interna, criadora de quartos, cozinhas, salas, banheiros, dentre outros espaços de uma casa/apartamento, além de bares, restaurantes, lojas e demais ambientes cênicos para o desenvolvimento de narrativas. Recortando especificamente para o filme slasher, os cenários destas produções exibem os seus personagens dentro de vitrines que os colocam vulneráveis para os ataques dos antagonistas, dando uma função maior aos recursos de passagem que noutras histórias, servem apenas de aproximação com as estruturas arquitetônicas da realidade, isto é, as portas e janelas de vidro, itens que não estão nestas histórias apenas com essa aplicabilidade, mas servem como elementos para criação de tensão e estabelecimento da sensação de perigo.

Cenas de Sexta-Feira 13 Parte 4: Capítulo Final 

As portas e janelas de vidro, na cenografia slasher, em sua maioria, não possuem a funcionalidade básica de iluminar naturalmente os espaços, servir como circulação de ar, exercer isolamento acústico e térmico, dentre outras possibilidades destes itens que compõem estruturas arquitetônicas na realidade. Tais portais também são feitos para permitir que a vítima observe, apavorada, o antagonista do lado de fora, bem como dá visão ao monstro da cena, colocando os personagens incautos sobre a mira das facas, de motosserras, dos machados e de outras armas potencialmente perigosas destes mascarados que geralmente buscam insanas vinganças. Com colaboração da direção de fotografia, temos muitas vezes o uso do ponto de vista de ambos os lados, vítima e algoz, em momentos de pura tensão, além do funcional plano geral, adequado para captar o trecho em que o perigoso psicopata adentra o espaço antes aparentemente seguro, tendo em vista ceifar as vidas de suas presas. Tudo isso funciona muito bem com as aplicabilidades do design de som, representantes do barulho de vidros trincados e estilhaçados, no ato de ataque dos antagonistas inveterados pela morte. A composição fica ainda mais completa com o emprego da trilha sonora, geralmente “gritante” neste tipo de narrativa.

Vítimas na Vitrine: Vulnerabilidade Nas Representações Cenográficas

Para deixar a análise mais completa, decidi investigar panoramicamente a história das janelas, a composição do vidro e suas respectivas simbologias. Curioso viajar no tempo e descobrir que nem sempre as construções arquitetônicas tinhas janelas vedadas com uma superfície de vidro, algo que foi se estabelecendo ao longo dos avanços e descobertas da humanidade. Os historiadores não entram em consenso, mas credita-se as primeiras composições de vidros aos povos do Egito, algo que data de mais ou menos 3 mil anos. Compostos de sílica (areia industrial), potássio, alumina, sódio, magnésio e cálcio aquecidos numa temperatura média de 1.600°C, o vidro inicialmente é uma massa viscosa despejada em amplos recipientes de estanho líquido em densidade maior, aplicabilidade que gera uma mistura heterogênea posteriormente levada para um resfriamento gradual que o deixa com a transparência e estrutura ideal para ser cortado e aplicado nos recursos que aqui, funcionam como elementos narrativos do slasher: as portas e janelas da cenografia que transforma os personagens nas já mencionadas vítimas em potencial. Basta lembrar de qualquer final girl de Sexta-Feira 13 e Drew Barrymore em Pânico.

Cenas de Sexta-Feira 13 Parte 4: Capítulo Final 

Material transparente que pode se tornar translúcido, opaco, bisotado, jateado, colorido ou espelhado, o vidro é uma substancia amorfa, inerte e biologicamente inativa, impermeável, de elevada dureza, conhecido por sua versatilidade na aplicabilidade em janelas de ferro, alumínio, PVC e madeira. Ótimo isolante térmico e acústico, permite, nas narrativas slashers, maior intimidade para os jovens incautos que se enclausuram em seus quartos em busca da relação sexual perfeita, mas no geral, possuem a função narrativa de colocar os personagens como observadores do que acontece dentro e fora dos espaços, tanto as vítimas como os algozes deste tipo de história que envolve segredos do passado, assassinos mascarados, revelações surpreendentes no desfecho e trilha de corpos consideráveis, com alguns sobreviventes que, em poucas histórias, voltam para a continuação para enfrentar, mais uma vez, o monstro da cena. Símbolo de receptividade, da abertura para as influências vindas de fora, extensão do olhar e portal para o inconsciente, as janelas são uma parte da casa que numa determinada linha filosófica chinesa, foram classificadas como olhos da casa, assim como o sistema elétrico design o sistema nervoso, a porta como a boca, os canos de água como as emoções circundantes e o esgoto como o aparelho excretor. Ainda nesta mesma linha, reflete-se que um ambiente com muitas janelas possui dupla simbologia, pois ao mesmo tempo que transmite a ideia de segurança e proteção, também designa uma vitrine de ampla exposição e, consequentemente, vulnerabilidade numa situação que represente perigo, como nas cenas aqui selecionadas.

Do Outro Lado do Vidro: A Inevitabilidade Da Morte no Slasher

Na abertura de Pânico (cenografia de Michele Poulik), a personagem de Drew Barrymore é a primeira vítima de Ghostface. Nesta emblemática passagem, o espaço cênico sofisticado de sua casa é rodeado de janelas de vidro, funcionais para o estabelecimento da sensação de perigo que culmina no aniquilamento de sua vida. Ainda no mesmo filme, a protagonista Sidney Prescott é apresentada também pelo viés da vulnerabilidade, como exposto nas imagens. Ainda na mesma franquia, em Pânico 2 (cenografia de Bob Kensinger), temos uma das melhores cenas de perseguição com a repórter Gale Weathers numa sala de edição de som da faculdade de cinema que serve de local para algumas das passagens do filme. Com isolamento acústico, a estrutura se assemelha as janelas das casas mencionadas anteriormente, servindo de separação entre possível vítima e algoz, camada que coloca a personagem de Courtney Cox numa vitrine, pronta para ser eliminada pelo assassino mascarado, oriundo do tenebroso passado de Woodsboro.

Duas cenas de tensão envolvem tais recursos em Pânico 3 (cenografia de Gene Serdena), uma delas é a sequência de pesadelo da protagonista Sidney Prescott, em sua casa situada numa zona longínqua, para fugir da possível perseguição de um novo psicopata trajado de Ghostface. A cena é claramente inspirada no legado de A Hora do Pesadelo, com um clima soturno. Ela acorda de um sono inquietante e resolve olhar para o motivo causador de alguns ruídos em sua janela. Ao perceber que vislumbra a sua falecida mãe, Maureen Prescott, fantasmagórica, a personagem entra em pânico, se aproxima do vidro que encobre a janela e logo é atacada por Ghostface, numa passagem de ótimo uso dos recursos que envolvem o design de som. Noutra cena, quando a moça é retirada de seu lar por causa das ameaças do assassino, ela vai até o set onde acontecem as filmagens de A Punhalada 3, o filme dentro do filme. Não demora, o mascarado aparece e a vulnerabilidade da cenografia ajuda no estabelecimento da sensação de perigo.

Não seria diferente em Pânico 4 (cenografia de Helen Britten), em especial, na cena de abertura, com o assassinato das primeiras personagens. Enquanto promove o seu reino de horror numa ligação cheia de metalinguagem, o psicopata atira uma das jovens pela janela de vidro, demonstrando o quão a casa é apta para um ataque, belíssima em sua arquitetura caso a cidade não atravessasse uma nova onda de crimes hediondos envolvendo o passado. A cenografia vulnerável também está presente com bastante frequência na série Sexta-Feira 13. A franquia, situada num acampamento em Crystal Lake, com exceção da Parte 8 (quase totalmente num navio e depois em Nova Iorque) e Jason X (numa nave espacial, com homenagens ao legado de Alien), traz várias cenas com corpos sendo atirados por janelas, Jason a destroçar o elemento arquitetônico para atacar as suas vítimas, dentre outras interações que possuem a funcionalidade de colocar os seus personagens em perigo. Observe a sequência de imagens abaixo, todas envolvendo os filmes desta bem-sucedida coleção de narrativas slashers que vão desde os primeiros crimes de Pamela Vorhees, mãe do Jason, aos demais capítulos envolvendo o mascarado.

Na sequência: Sexta-Feira 13 (cenografia de Virginia Field), Sexta-Feira 13 Parte 2 (cenografia de Virginia Field), Sexta-Feira 13 Parte 3 (cenografia de Dee Suddleson), Sexta-Feira 13 Parte 4: Capítulo Final (cenografia de Shelton H. Bishop III), Sexta-Feira 13 Parte 5: Um Novo Começo (cenografia de Robert Howland), Sexta-Feira 13 Parte 6: Jason Vive (cenografia de Jerie Kelter), quando Jason encontra Carrie, A Estranha, no divertido Sexta-Feira 13 Parte 7: A Matança Continua (cenografia de Woody Croker), no navio que o leva para uma jornada de cosmopolitismo, há janelas que colocam Jason Vorhees em posição de ataque. Em Sexta-Feira 13 Parte 8: Jason Ataca Nova Iorque (cenografia de Linda Vipond), em sua dinâmica no espaço, Jason X (cenografia de Clive Thomasson), todas cenas que trazem o recurso como possibilidade cenográfica narrativa. No desenvolvimento de Lenda Urbana (cenografia de Carol Lavoie) não temos necessariamente uma janela, mas um recurso alusivo, tal como descrito em Pânico 2, com a vítima separada por uma camada de vidro (uma espécie de janela), divisora do espaço entre a figura assassina e a próxima vítima. O mesmo ocorre em Lenda Urbana 2 (cenografia de Carolyn Looks) numa cena de perseguição morna com a protagonista interpretada por Jennifer Morrison.

Há, também, na franquia Halloween, criada por John Carpenter e Debra Hill, alguns momentos em que as janelas e portas de vidro exaltam a sensação de perigo e separam, por pouco, os personagens do alvo do mascarado Michael Myers. No quintessencial slasher de 1978, precursor dos demais assassinos mascarados que fariam longas trilhas de corpos desde os anos 1980, o enigmático psicopata vislumbra as suas vítimas por meio das diversas janelas da casa onde a personagem circula. Neste caso, Nancy, antes do ato final onde o primeiro contato com Laurie Strode é estabelecido. Em Halloween: A Noite do Terror (cenografia de Craig Stearns), a cenografia trabalhe em prol da colaboração no teor dramático e na tensão desenvolvida pela história, pois permite que sejamos temerosos em relação ao que acontecerá com os incautos jovens que tem como destino, a afiada máscara de Michael Myers. A vulnerabilidade retorna em várias cenas de Halloween H20: Vinte Anos Depois (cenografia de Wanda Peterson), em especial, no momento em que o mascarado supervisiona as ações de LL Cool J., segurança do colégio interno dirigido por Keri Tate, nova identidade de Laurie, personagem icônica de Jamie Lee Curtis ao longo de alguns filmes da franquia que terá seu desfecho em Halloween Ends.

As cenas não se esgotam por aqui. Minha abordagem é apenas um recorte com base na memória de alguém que consome slasher, tal como mencionado na abertura deste artigo, há bastante tempo. Há outras janelas e portas com vidros destroçados por maníacos mascarados, mas por questões editoriais, selecionei apenas algumas ilustrações pontuais para reforçar algo que pode parecer óbvio, mas que é sempre importante ressaltar: nada, na composição visual de uma narrativa cinematográfica, é inserido aleatoriamente. Cada recurso é adaptado para servir de elemento desenvolvedor das ações dos personagens, sendo as janelas e portas, destroçados pelos antagonistas ou arrebentados pelas vítimas em busca de salvação, partes arquitetônicas integrantes da dinâmica do que é contado, tendo maior função narrativa quando servem de portais de entrada e saída das figuras ficcionais e de tudo que elas representam: medo, horror, perigo, morte, violência, desespero e luta pela sobrevivência. Aos leitores, deixo um questionamento: lembra de alguma outra cena marcante que tenha ficado de fora? Leiam e se possível compartilhem essas ideias, combinado?

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