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Entenda Melhor | Clarice, Hannibal, Michelangelo e A Criação de Adão

por Leonardo Campos
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Quem conhece o universo literário de Thomas Harris sabe que o autor é um cuidadoso pesquisador na área temática de suas publicações. Indo além da história em si, o escritor inseriu famosas obras de arte como conteúdos para o estabelecimento de alegorias entre os personagens e o desenvolvimento da história. Na investigação de Will Graham em busca do psicopata Francis Dollarhyde, em Dragão Vermelho, a enigmática ilustração de William Blake para uma passagem do Apocalipse define a metáfora de transformação do atormentado assassino que possui uma relação peculiar com a obra de arte. Em sua trajetória, ela deseja devorar a pintura e chega a realizar tal façanha numa visita ao Museu do Brooklyn, num ato que pode ser compreendido como uma estratégia de “calar” o dragão que o domina ou se tornar a criatura que tanto o fascina. No romance Hannibal, continuação de O Silêncio dos Inocentes, a pintura é apresentada em destaque também, em especial, na passagem do Dr. Lecter por Florença. A rivalidade entre as famílias Pazzi e Médici, estudada por meio de ilustrações e pinturas de época, delineiam a violência medieval na região italiana e promove ilações com o conteúdo macabro da história urbana contemporânea.

Se observamos atentamente o cartaz de divulgação do filme de Jonathan Demme lançado em 1991, veremos que a mariposa da morte que silencia a personagem de Jodie Foster traz em seu interior uma montagem da também enigmática fotografia surrealista de Salvador Dali, A Morte Voluptuosa, dando ao material o status de obra de arte, muito além de ser apenas um instrumento qualquer de marketing da produção ganhadora de vários prêmios na ocasião de seu lançamento e constantemente classificada, merecidamente, como um dos melhores filmes de todos os tempos. Diante do exposto, caro leitor, o interesse desta breve reflexão é demonstrar que direta ou indiretamente, as artes plásticas integram o universo literário e cinematográfico de Hannibal Lecter, um dos mais icônicos personagens de Anthony Hopkins, considerado um papel definidor em sua carreira. Aqui, a minha intenção é deflagrar algo que o teórico Marcel Martin chamaria de uma “metáfora ideológica”, isto é, algo que não está no filme em si, mas pode ser interpretado com base em nosso conhecimento de mundo. Para continuarmos, cabe situa-lo no trecho em perspectiva e na obra de arte que nos serve como ilação, por isso, peço-lhe que observe atentamente a imagem abaixo, um dos pontos mais belos do amplo afresco do pintor Michelangelo para a Capela Sistina.

A Criação de Adão, um dos destaques do teto da Capela Sistina, pintura tratada pela história da arte como uma das obras-primas do italiano Michelangelo

Michelangelo, A Criação de Adão na Capela Sistina e as Ilações Entre Cinema e Pintura

A pintura é uma arte influenciadora da fotografia cinematográfica. Dos planos mais fechados que lembram os autorretratos aos planos mais abertos que nos remetem às belas paisagens pintadas por grandes nomes registrados na história da arte, a direção de fotografia no cinema aprendeu bastante com a pintura para se estabelecer enquanto linguagem que, de acordo com o Manifesto Futurista, de Ricciotto Canudo, publicado na década de 1910, é a sétima arte, realização artística que emula elementos da literatura, o volume da escultura, a sonoridade da música, a plasticidade das pinturas, o desempenho dramático do teatro, etc. O foco, aqui, no entanto, não são as pinturas que estampam a cenografia e direção de arte do clássico moderno O Silêncio dos Inocentes.

Elas falam muito no filme e prova disso é a cena em que Clarice Starling chega ao escritório do Dr. Chilton para ser insultada pelo supervisor da instituição que encarcera Hannibal Lecter. Há um quadro bastante simbólico na sala, com figuras pintadas que parecem olhar para a agente do FBI, da mesma maneira que o olhar masculino está o filme inteiro a contemplá-la, seja por curiosidade, desejo, retaliação, etc. O que pretendo aqui, como já mencionado antes, é apresentar a relação que um brevíssimo trecho do filme faz, de maneira proposital ou não, com um dos afrescos do italiano Michelangelo na Capela Sistina, a Criação de Adão, pintura que traz em sua “essência” a ideia de transmissão do dom da vida, o mentor que cria o seu aprendia, nas palavras do texto bíblico que serve como ponto de partida para a obra de arte em questão, “a sua imagem e semelhança”. Importante salientar a relação de mentor e aprendiz estabelecida ao longo do filme, para assim, compreender adequadamente a livre interpretação entre o excerto do filme que se passa em segundos de sua história, e a obra de arte tão ovacionada pela história da arte.

Faz-se necessário, também, retratar o elo de comparação ao filme, a pintura de Michelangelo. Como destacado pela crítica especializada, na concepção artística do italiano, a anatomia se torna música sublime, o corpo humano, ainda um mistério a ser mais desvendado no Renascimento, é material puramente arquitetônico, afirmações que podem ser observadas no desenvolvimento da pintura do teto da Capela Sistina, datado de 1508 a 1512, justaposição de painéis que representam passagem do livro da criação do mundo, o Gênesis, num feixe de composições que foram executadas com rigor por esse artista conhecido pelo dinamismo e multiplicação da abordagem espacial. Encomendada por Júlio II, Papa de Roma na ocasião da primeira versão, o teto da Capela Sistina sofreu com uma fenda e acabou sendo assumido por Michelangelo posteriormente, projeto que era ainda mais ousado no papel, como fica delineado numa carta enviada para João Francisco Fattucci, secretário do Papa Clemente VII, datada de 1523. Em todo o painel e como podemos observar, na Criação de Adão, o pintor se dedicou ao detalhamento da figura humana, elemento crucial de seu estilo, afinal, Michelangelo não foi um pintor de paisagens.

Cena crucial para o desenvolvimento da narrativa: a última orientação do Dr. Lecter antes do desfecho de sua aprendiz Clarice Starling na casa de Buffalo Bil

Culto e com três biografias que o analisaram ainda em vida, algo que outros artistas anteriores e posteriores não tiveram como privilégio, pois geralmente ganhavam reconhecimento póstumo, Michelangelo era um pintor culto, admirador das artes e leitor voraz de Dante, Petrarca, Boccaccio, dentre outros nomes da literatura, salvaguardadas as devidas proporções, tal como o Dr. Hannibal Lecter, psicopata mitológico que cita Marco Aurélio e a filosofia estoica, contempla a literatura canonizada e comete um crime e acompanha tranquilamente as Variações Goldberg, de Bach. Na concepção da Criação de Adão, o italiano nos apresenta o primeiro homem numa posição acomodada, com feições de quem está despertando, relativamente inerte à espera do toque do criador, a figura de Deus que emite a sabedoria necessária, cena alegorizada ao longo da passagem de O Silêncio dos Inocentes, abordada em específico aqui no artigo. Em sua dimensão de 280×570 centímetros, a cena nos apresenta Deus como um ancião barbudo envolto num manto que divide com alguns anjos. O seu braço direito esticado cria o poder da vida para Adão, figura que aparece com o braço esquerdo, em contraposição ao seu criador.

Interessante que na ocasião de produção do filme, o médico Frank Lynn Heshberger publicou um artigo polêmico que trouxe uma abordagem revolucionária para a Criação de Adão. Ele interpretou que a figura divina se apoia em algo que se assemelha ao formato anatômico de um cérebro, com o manto em formato de útero e a echarpe verde muito parecida com um cordão umbilical. Como o pintor entendia de anatomia, as reflexões do médico são bastante pertinentes e a figura de Deus neste sustentáculo é considerada por muitos adeptos desta interpretação como uma mensagem subliminar do racionalismo, característica que marcou o período renascentista, era onde tínhamos no desenvolvimento das ideias, o homem como centro do mundo. Na belíssima obra de arte de Michelangelo, temos Deus como transmissor de sabedoria para Adão, da mesma maneira que o Dr. Lecter será no processo de aprendizagem da astuta Clarice Starling no filme inspirado pelo romance de Thomas Harris. Guiada por Jack Crawford, seu mentor oficial, a jovem desce aos infernos e triunfa soberbamente em seu retorno, tendo o canibal, paralelamente também mentor de Buffalo Bill, como um dos obstáculos essenciais de sua jornada.

Incrível observar como apenas um breve trecho da narrativa, extraído de um plano detalhado, com a direção de fotografia de Tak Fujimoto a exercer pormenores ao longo da estrutura fílmica, possa significar tanto com tão pouco. A ilação com a Criação de Adão, de Michelangelo, não é aleatória, mas se faz ao longo de todo o filme, sendo um destaque interpretativo que se expõe declaradamente na tela neste breve trecho mencionado. Importante ressaltar que a pintura, obra de arte de antecede a ascensão do cinema e ajudou a chamada sétima arte na construção de seu estilo enquanto linguagem, em especial, na questão dos planos e profundidade de campo, faz-se presente em vários momentos do filme, desde a metáfora ideológica com o pintor italiano ao assumido processo de referenciação de Kristi Zea, designer de produção em O Silêncio dos Inocentes, profissional que se inspirou em esboços do estadunidense Francis Bacon, o pintor conhecido por retratar a “carne humana”, para compor a cena de fuga de Hannibal Lecter, logo após o estudado encontro com Clarice Starling. O momento em questão? Aquele que o policial aparece pendurado e com as entranhas violentamente abertas na cela da prisão.

Hannibal Lecter e Buffalo Bill, Clarice Starling e Jack Crawford:

Entre Mentores e Aprendizes

O que se pretende elucidar ao longo desse breve artigo é a complexidade da narrativa criada pelo cineasta Jonathan Demme, ao adaptar o roteiro de Ted Tally, dramaturgo inspirado no romance homônimo de Thomas Harris. Não há menção alguma da obra de Michelangelo ao longo dos 110 minutos de O Silêncio dos Inocentes. Isso, no entanto, não nos impede de realizar o processo interpretativo e promover a ilação de conteúdos de épocas tão distintas, pois é parte da tarefa da crítica e do espectador mais ativo, estabelecer as suas reflexões com base no que a narrativa apresenta e no quão aberta pode ser a sua linha de correlação com outros contextos. Há tempos estamos distantes da ultrapassada ideia que gravitava em torno “do que o autor quis dizer”. Um autor pode querer dizer muita coisa, mas outras podem estar lá por causa de seu contexto. E, ao observar a cena selecionada como uma belíssima passagem que metaforiza visualmente a transmissão de conhecimento entre mentor e aprendiz, podemos tranquilamente fazer a justaposição com a pintura de Michelangelo, com tema tangencial, para que assim haja algo dentro do que chamamos de análise comparada, campo bastante profícuo na teoria da literatura.

Um pequeno detalhe do afresco de Michelangelo na Capela Sistina

Tal como Adão recebe o toque de criação pelo divino na pintura que emula passagens do Gênesis bíblico, Clarice é ligeiramente tocada pelo responsável por seu processo de aprendizagem ao investigar a trajetória assassina de Buffalo Bill e desvendar o caminho pavimentado pelo personagem que a colocará no maio desafio de sua vida, obstáculo que não apenas a ajudará a salvar vidas, mas promoverá a evolução necessária em sua caminhada como grande heroína do cinema moderno. Erroneamente interpretado por alguns como um toque sensual, de cunho sexual por parte de Hannibal Lecter, o trecho deixa claro que o interesse do canibal não é devorar a personagem em qualquer circunstância, mas na verdade, manter o contato que permite que Hannibal tenha momentos diletantes com a moça inicialmente tida como uma estagiária vulgar qualquer, uma caipira em busca de ascensão e apagamento de suas marcas do passado, alguém que o desafiou dentro de determinadas perspectivas e acendeu o seu desejo em filosofar, mesmo que de maneira peculiar, com todos a atravessar o cotidiano emergencialmente.

Hannibal Lecter e Jack Crawford: Clarice Starling centralizada entre os seus dois mentores?

Para quem conhece o filme, sabe que O Silêncio dos Inocentes é uma narrativa cheia de paralelismos. Hannibal Lecter se torna, salvaguardadas as devidas proporções, um mentor para Clarice Starling, tal como Jack Crawford também, pois ao escolher a jovem estagiária do FBI, o experiente homem sabia exatamente o que fazia e as possibilidades de extração das informações necessárias para a investigação, afinal, Hannibal Lecter havia se fechado em copas para outros tantos momentos e a sagacidade e inteligência de Starling aparentemente seriam capazes de criar algum interesse no canibal encarcerado. E o resultado é a explosão de diálogos intensos, necessidades dramáticas em simbiose com os conflitos internos e externos dos envolvidos, culminando num filme eficiente em sua concepção de imagens, bem como no desenvolvimento de suas estruturas dramáticas, tornando-se um clássico que após três décadas de lançamento, continua influenciado o cinema e sendo tema de interesse para estudos de diversos tipos.

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