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Entenda Melhor | Clarice Starling: Personagens Icônicos do Cinema

por Leonardo Campos
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Aos leitores, um esclarecimento. Esse texto é a tradução de uma oficina intitulada Desenvolvimento de Personagens, realizada num evento de 20 horas dividido em quatro partes. A ideia é aqui é adaptar o contexto de realização do encontro e os temas trabalhados por meio de leituras, debates e atividades práticas por meio de um artigo. Como o título já deixa delineado, o tópico temático é Clarice Starling, personagem criada por Thomas Harris no romance O Silêncio dos Inocentes, também presente em sua polêmica continuação, Hannibal. Ela foi levada ao cinema duas vezes, a primeira com Jodie Foster e a segunda com Julianne Moore, duas atrizes que entregaram desempenhos dramáticos formidáveis no desenvolvimento da esférica personagem atualmente retomada em nova jornada, interpretada por Rebecca Breeds na série televisiva Clarice, criada por Alex Kurtzman e Jenny Lumet.

Quem conhece o universo que veio da literatura para o cinema sabe que a jovem estagiária em destaque no FBI foi “intimada” por seu mentor Jack Crawford para instigar o Dr. Hannibal Lecter, encarcerado na penitenciária, a falar sobre o perfil do psicopata Buffalo Bill. A jornada aterrorizante rendeu um romance elogiado pela crítica, um filme ganhador de numerosos prêmios e lugar privilegiado na prateleira de clássicos modernos da história do cinema e ainda teve rendeu um reencontro dez anos depois, no filme de Ridley Scott, cineasta que considerou o desfecho do romance impossível de ser filmado e assim, deu novos contornos para a personagem que agora retornou para a TV seguindo a cronologia pelo meio da linha do tempo deste universo. Situada logo após os acontecimentos do filme de 1991, a personagem é levada a confrontar os seus medos e anseios após salvar a filha da senadora Ruth Martin e ser alvo da perseguição misógina de seus companheiros de trabalho na polícia.

Feito esse panorama, tendo em vista que se faz importante a leitura das críticas dos romances e dos filmes para melhor compreender a análise por aqui empreendida, é hora de voltar a falar sobre o encontro transformado em artigo. Parte do componente curricular Argumento e Roteiro de um curso de Cinema e Audiovisual, a oficina pretende subsidiar os interessados em cinema no desenvolvimento de personagens para projetos futuros. Para isso, ler manuais de dramaturgia, assistir lives e palestras sobre o assunto no YouTube, fazer fichas para criação de figuras ficcionais e outras estratégias são os caminhos mais comuns para esse tipo de aprendizagem, mas nada melhor que se embasar com esses conteúdos e observar pela própria produção cinematográfica os modelos que devem ou não ser emulados para inspiração de projetos pessoais posteriores ao processo de obtenção do diploma.

Por isso, Clarice Starling foi uma personagem escolhida em várias edições. A complexidade na construção de seu perfil físico, social e psicológico, as suas necessidades dramáticas, as versões inspiradas em sua estrutura, desenvolvida em filmes posteriores, além dos aspectos visuais que nos permite fazer interferências no campo da direção de arte, design de produção, trilha sonora e outros elementos introdutórios para a compreensão do cinema enquanto arte além do consumo para o entretenimento. É por isso que sempre reforço que da mesma maneira que Alfred Hitchcock é um conteúdo básico para qualquer pessoa que cursa ou se entende cinéfila, mesmo que seja para não gostar e propor um ponto de vista crítico sobre o filme ou algum aspecto do cineasta, O Silêncio dos Inocentes e se possível, Hannibal, devem também estar na lista dos filmes inevitáveis.

Além da exibição dos filmes, requisito básico para engendrar as discussões durante um encontro com a proposta de desenvolver personagens, torna-se viável ler ao menos os dois romances que serviram de ponto de partida para as narrativas cinematográficas e a série televisiva. Se não for possível, o exercício de leitura e reflexão dos conteúdos teóricos é uma tarefa do percurso que permitirá melhor compreensão das abordagens, isto é, a análise dos clássicos da dramaturgia: A Jornada do Escritor, de Christopher Vogler; A Jornada do Herói, de Joseph Campbell; A Morfologia do Conto Maravilhoso, de Vladimir Propp; além de considerações sobre George Polti e As Trinta e Seis Situações Dramáticas e Etienne Souriau em As Duzentas Mil Situações Dramáticas. Se o participante já tiver lido Manual de Roteiro e Quatro Roteiros, de Syd Field, e o manual de roteiro de Doc Comparato, um caminho já estará pavimentado para melhor captar os conteúdos trabalhados.

Detalhe importante: a leitura dos conteúdos mencionados não é para estabelecer uma camisa de força que enrijecerá a criatividade dos participantes ao desenvolver os seus personagens. A intenção é fornecer uma base para quem deseja conhecer, se aprofundar e, posteriormente, subverter. Ler esse painel de obras selecionadas também é uma estratégia para ilustrar como um bom padrão se delineia na indústria e logo adiante, o cinema o copia exaustivamente, como é o caso das personagens de Angelina Jolie, Sandra Bullock e Sigourney Weaver em O Colecionador de Ossos, Cálculo Mortal e Copycat – A Vida Imita a Morte, narrativas policiais que seguem o mesmo esquema dramático de O Silêncio dos Inocentes para a composição de seus conflitos e curvas dramáticas, alguns interessantes e outros muito abaixo da média.

Diante da considerável introdução, vamos ao ponto nevrálgico da oficina. A construção e condução de Clarice Starling dos romances de Thomas Harris para os filmes de Jonathan Demme e Ridley Scott. O primeiro passo depois da exibição do programa do encontro é a exibição do filme. Logo adiante, cada um dos participantes precisa desenvolver um mapa mental e responder:

Quem é Clarice Starling?

Criada numa pequena cidade interiorana dos Estados Unidos, Clarice perdeu o pai quando tinha dez anos de idade. Ela foi morar com o tio numa região com ranchos e após se sentir apavorada pelo abate dos cordeiros, animais que produziam sons agonizantes que a atormentaram, Clarice decidiu salvar uma das criaturas, mas foi pega em sua trajetória perdida e teve que ir para uma instituição onde cresceu e se formou. O trauma do luto e a busca por salvar um dos cordeiros como forma de promover a libertação de todo o rebanho se tornou a alegoria de sua vida. É o combustível que a faz tentar salvar a vida de Catherine, filha da senadora Ruth Martin, uma espécie de missão que não pouparia apenas a história de mais uma possível vítima, mas seria parte de seu tratamento terapêutico, desencadeado no quid pro quo com o Dr. Hannibal Lecter enquanto trocam informações para que a jovem estagiária alcance Buffalo Bill e dê um basta em sua jornada macabra de transformação que via no corpo feminino algo totêmico a ser exterminado.

Assim, ao ter sido enviada para a instituição luterana, Clarice cresceu, formou-se em Psicologia e Criminologia na Universidade da Virginia, passou dois anos como conselheira num centro de saúde mental e num determinado seminário ministrado por Jack Crawford, tirou 9,5 como pontuação e se tornou um destaque, uma das motivações para ser escalada sabiamente pelo superior hierárquico que sabia exatamente o que fazia quando a enviou para a penitenciária gerenciada pelo Dr. Chilton, local de aprisionamento do Dr. Lecter. Esse é um momento decisivo em sua vida, ponto de virada que ajudará na resolução de traumas que a acompanham ao longo de sua jornada, mas ao mesmo tempo, uma armadilha para a sua continuidade no ambiente misógino da polícia, em especial, o ressentimento de Paul Krendler, pouco desenvolvido em O Silêncio dos Inocentes e destacado como antagonista da agente dez anos depois em Hannibal. Ao descobrir o paradeiro do Dr. Lecter em Florença, após a sua fuga no desfecho do filme anterior, Clarice precisa lidar com a vingança do pedófilo Mason Verger, uma das vítimas do canibal no passado, além de ter que batalhar contra a força da corrupção policial que atrapalha a sua jornada pessoal e profissional.

Após enfrentar o polêmico jantar com Hannibal e Paul Krendler, ela continua a sua tentativa de aprisionar o psiquiatra que lhe serviu de mentor no primeiro filme, proposta cinematográfica que felizmente modificou os rumos do romance de Thomas Harris, narrativa que terminava com a agente sendo levada, drogada constantemente, por Dr. Lecter, para um lugar remoto na América do Sul. Ele a faz acreditar que é a encarnação de Mischa, a sua irmã, apresentada no errôneo A Origem do Mal, sequência prévia lançada quase paralelamente em livro e filme. No âmbito procedural da televisão, Clarice Starling tem a sua jornada em 14 episódios apresentada logo após os acontecimentos no porão de Buffalo Bill. A série retrata os seus traumas, o passado nebuloso com o seu pai, retratado de maneira diferente que as incursões anteriores, com novas respostas que mudam bastante o que sabíamos sobre a personagem, escolha que acredito ser corajosa, mas também desnecessária para uma figura ficcional com mitologia tão bem desenvolvida. Transferida do Laboratório de Ciência Comportamental para o Programa de Apreensão de Criminosos Violentos do FBI, Clarice tem que ser obstinada para trabalhar cotidianamente com Paul Krendler, lidar com o contato constante da senadora Ruth Martin e sua filha traumatizada, além do olhar masculino do espaço profissional e sua aparente solidão, mesmo que a dimensão de Adelia, sua amiga/companheira esteja mais delineada que antes. Ah, e desta vez, os crimes continuam mais desafiadores e parece haver um envolvimento quase corporativo para a polícia desvendar.

Compêndio Dramatúrgico: Clarice Starling em Perspectivas Múltiplas

Para mapear a oficina que serve de base para a produção deste artigo, utilizo sempre o breve, mas elucidativo Manual Descomplicado de Roteiro, publicado pelo professor e pesquisador Roberto Lyrio Duarte. É por meio deste livro que as ideias e autores clássicos citados por aqui foram mapeados para a realização das análises que subsidiarão as reflexões dos envolvidos acerca do potencial dramático de Clarice Starling como uma das maiores heroínas do cinema moderno. Como destaca o autor, um personagem é uma “entidade” com desejos e necessidades, parte de um núcleo dramático, isto é, o conjunto de personagens unidas entre si pela mesma ação dramática que se organiza no desenvolvimento de um plot (sequência a sequência da ideia básica para um filme). No capítulo dedicado ao estudo de personagens e suas funções dramatúrgicas, Duarte faz um panorama dos autores citados no tópico seguinte e afirma que a Jornada do Herói, de Christopher Vogler, foi aplicada como principio na dramaturgia hollywoodiana ao longo de parte do século XX ao cinema contemporâneo. No também clássico A Jornada do Escritor, Joseph Campbell retoma os seus princípios e diz que quase todas as histórias possuem elementos estruturais comuns. Como isso nos norteia? Simples: temos a repetição da mesma base para a maioria das narrativas contadas ao longo da história da humanidade, com algumas variações pontuais.

Essa ideia de enredo síntese e repetição estrutural foi trabalhada anteriormente em Morfologia do Conto Maravilhoso, do estruturalista russo Vladimir Propp. Em sua teoria, o autor afirmou que as funções se repetem em diversos contos de fadas. Mudamos os personagens, mas as suas tarefas dramáticas continuam semelhantes. Aqui, o que conceituamos como “função” é a ação de uma personagem dentro da intriga e seu significado. Para Propp, quatro pontos precisam ser ressaltados: as funções das personagens são permanentes nos contos, o número de funções é limitado, a sucessão das funções é idêntica, todos os contos maravilhosos pertencem ao mesmo tipo no que diz respeito aos elementos estruturais das narrativas. Ao trazer os conceitos para o cinema e a televisão, em linhas gerais, podemos observar que apesar das mudanças entre um ponto e outro, os personagens estão sempre diante de conflitos e situações para estabelecimento do nó e desenlace aristotélico, molas propulsoras do drama. As Trinta e Seis Situações Dramáticas, de George Polti é outro livro que dialoga com a abordagem, questionado posteriormente por Etienne Souriau no interessante As Duzentas Mil Situações Dramáticas, autor que contesta o material de Polti e utiliza símbolos da astrologia para compor a sua teoria.

Observe o esquema.

Ao trazer para o desenvolvimento de personagens e associar com a jornada de Clarice Starling, como poderíamos estudar a estrutura dramática de O Silêncio dos Inocentes, Hannibal e a série Clarice? Nas três narrativas, a agente do FBI aparentemente ocupa o lugar do Leão. Ela é a força temática. O Sol e o bem cobiçado é a caçada ao psicopata e, assim, dar conta de silenciar os cordeiros que alegorizam as vítimas de Buffalo Bill e os traumas de Clarice Starling. Em Hannibal, a ideia de fazer a justiça e calar os seus infortúnios continua como o Sol. Este é um momento de abstração, pois o bem pode não ser material, mas uma vontade/desejo, como a salvação de Catherine Martin. Marte ou o Oponente? Seria Buffalo Bill no filme de Jonathan Demme? Mason Verger no filme de Ridley Scott? Sim, noutras narrativas, pode ser uma força da natureza. Importante lembrar que há narrativas que trazem personagens com funções sobrepostas. Hannibal, por exemplo, pode ser Árbitro, Lua e nalguns casos, por que não Marte?

Agora, observe o esquema. Essa é a proposta de Christopher Vogler em A Jornada do Escritor.

Clarice Starling continua como heroína. Ela tem o seu propósito dramático estabelecido na história para que possamos acompanhar os desdobramentos de sua jornada. Mentores: Jack Crawford é o seu, oficialmente, mas Hannibal Lecter também cumpriu essa função, indiretamente. O que nos leva a pensar isso é a função do mentor de treinar a heroína e transferir habilidades, capacidades e virtudes. Nos filmes e na série, esse papel se desloca, mas Hannibal está presente como força propulsora de suas atitudes pessoais e profissionais. O Sombra, em O Silêncio dos Inocentes, pode ser pensado na figura de Buffalo Bill. Já em Hannibal e na adaptação televisiva, Paul Krendler é um forte candidato ao arquétipo, em especial, no filme de Ridley Scott, pois ele é o misógino cafajeste que de maneira corrupta, tenta solapar a carreira da agente do FBI. Na série, ele inicialmente apresenta ressentimento, mas depois suaviza a sua postura. O Arauto, responsável por desencadeamento da aventura, está na concepção dos personagens, mas também em suas ações. O Camaleão é o mutante, nos filmes, estampado na figura de Hannibal Lecter, um autêntico mutante, personagem dúbio que se coloca como desafio a sua decifração. Será que o canibal cumprirá mesmo a sua promessa de não ir atrás de Clarice? Ademais, Hannibal também pode ser um pícaro, alívio cômico para diminuição da tensão emocional? Para refletirmos.

Para o nosso desfecho, observe o Modelo Actancial dos Estruturalistas.

Esse é um modelo que tenta reduzir as funções dos personagens de modo que possamos compreender como eles participam de qualquer ação dramática. É quase como uma planta baixa. Para quem analisa personagens, é uma estratégia de compreendê-lo quase próximo ao que fazemos na criação de um mapa mental. O sujeito pode ser um protagonista ou grupo. O objeto pode ser o desejo, abstrato ou material. O conflito gravita em torno dele, como em O Silêncio dos Inocentes, filme que apresenta a busca de Clarice pelo silenciar alegórico dos cordeiros. Os adjuvantes e oponentes são as forças que ajudam ou atrapalham os desafios da protagonista. O destinador é tudo aquilo que faz o sujeito agir e porque esse sujeito age. O destinatário é para quê ou para quem o sujeito age. Mais uma vez, para encerrarmos: o autor e quem vos escreve, enquanto docente que ministra a oficina, reforçam que as funções apresentadas funcionam como apoio, mas não estão nesta proposta como uma camisa de força. A ideia aqui é ser variável, da mesma maneira que os seres humanos são, algumas vezes programados dentro de um agendamento fixo, ou então, aleatórios. Clarice Starling, merecidamente, faz parte deste encontro semestral que contempla o desenvolvimento de personagens icônicos do cinema e nos permite a discussão sobre pontos fortes e vulnerabilidades desta grandiosa figura ficcional.

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