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Entenda Melhor | Grand Guignol: Antecedente do Slasher

Os desdobramentos da teatralidade do Grand Guignol no cinema moderno.

por Leonardo Campos
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Desde os tempos mais antigos, a violência fascina a humanidade. Os espetáculos romanos envolvendo os gladiadores, a queima das mulheres taxadas como bruxas no período medieval, os horrores da diáspora e colonização de povos, situação acompanhada de sádicos estupros e torturas, dentre outras circunstâncias de flagelo do corpo humano, delineados em famosas pinturas da história da arte, demonstram o quão a violência é conteúdo garantido na apreciação artística em nossa longeva memória cultural. Recentemente, enquanto revisava alguns documentários retrospectivos sobre o profícuo subgênero slasher, percebi que alguns cineastas, dentre eles, John Carpenter, Wes Craven e Tobe Hooper, comentava em seus depoimentos a questão da violência na sociedade, citando alguns dos exemplos mencionados anteriormente, tendo em vista conectar o sucesso dos filmes deste segmento com o magnetismo que a violência possui diante dos olhos humanos curiosos, atormentados, temerosos diante destes espetáculos, mas também fascinados por este lado sombrio da nossa existência.

Ao longo destes depoimentos, surgiam constantes referências ao Grand Guignol, uma palavra-chave que aparecia nos depoimentos como antecedente do slasher. Já conhecia brevemente a curiosa história deste teatro, também denominação para um jeito de se representar a morte e a dor na arte, mas decidi aprofundar um pouco mais para compreender as relações entre esta modalidade teatral e a visualidade nos filmes slashers, subgênero que ganhou força na década de 1970 e se firmou no sistema de produção cinematográfica na década seguinte, se transformando para as gerações vindouras e ainda muito em voga na contemporaneidade. O Grand Guignol, tratado como estilo, na verdade era um teatro parisiense, conhecido por seus espetáculos preambulares por volta de 1896, com representações que se desdobraram ao longo dos séculos seguintes, com ecos, por exemplo, no cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, além de suas ressonâncias nos trabalhos da Cia de Teatro Vigor Mortis.

Neste edifício focado na montagem de espetáculos considerados naturalistas, o público ia para contemplar uma variada opção de apresentações. Tinham dois direcionamentos: as “maneiras populares” e os “fait divers”. No primeiro, eram apresentadas cenas minúsculas sem conflitos dramáticos em destaque, com referências aos casos peculiares da realidade que acometia as classes mais baixas da sociedade. No segundo, ilustrações cênicas de notícias veiculadas nos jornais da época, tendo como complemento uma variedade de peças curtas, momento de intercalação de farsas e histórias de horror. E, nestas demonstrações do “horrível”, os atores manipulavam os numerosos efeitos especiais para fazer a plateia suar frio. Havia até um médico residente contratado para ficar de plantão, caso alguém passasse mal, uma jogada de marketing adotada, posteriormente, no lançamento de alguns filmes clássicos que incomodavam a tranquilidade das plateias que iam para as salas de cinema se apavorar no conforto de suas poltronas. Sangue em profusão, membros decepados, cortes e ferimentos: eis o Grand Guignol.

Situado numa região da capital francesa tomada pela prostituição e pobreza, relatos dizem que o teatro em questão foi instalado na capela de um antigo convento, algo que amplia a sua perspectiva misteriosa, com um ingrediente religioso associado ao macabro. Nesta rua escura e condenada por ser um lugar onde estava acoplada a podridão da sociedade, o Grand Guignol conseguiu estabelecer a sua atmosfera de clandestinidade, com doses generosas de perigo, o clima perfeito para reforçar o tom dos espetáculos apresentados. Em seu interior, a arquitetura não permitia amplitude, por isso, o palco era bastante próximo da plateia, situação que também aumentava a sensação de claustrofobia do lugar. Os seus primeiros anos causaram polêmica e, independentemente das críticas, se transformou: foi comprado em 1898 por Max Maurey, o empresário que percebeu o potencial dos espetáculos de horror e direcionou o empreendimento para este segmento, tornando as noites de apresentação exclusivamente focadas na violência.

Como herança, os espetáculos do Grand Guignol emulavam traços das correntes naturalistas e do melodrama. Do primeiro, tínhamos a focalização na brutalidade dos eventos. Quem leu O Cortiço, do brasileiro Aluísio de Azevedo, deve se recordar do sensacionalismo e da violência na morte de Bertoleza, uma ilustração local da morte e do sangue em nossa história literária. Do segundo, os espetáculos em questão extraíram a carga de emoções extremadas dos personagens, além da presença sombria de elementos desconhecidos e misteriosos. Neste palco, como já mencionado, de tamanho reduzido e bastante próximo do público, a cenografia investia em prisões, quartos e salas angustiantes, salas macabras de cirurgias e hospícios aterrorizantes. Eram ambientações obscuras que tinham como foco, criar o clima de perigo destas apresentações, mas que também se aproveitavam desta estrutura de luzes baixas para esconder as imperfeições técnicas, afinal, qualquer falha poderia contrariar as instâncias de verossimilhança dos espetáculos.

Dentre as histórias apresentadas neste espaço, alguns registros destacam a peça sobre uma babá que estrangulou crianças sob seus cuidados, o caso de duas bruxas em um manicômio, responsáveis por cegar uma bela jovem munidas de uma tesoura, a trajetória de um médico que encontra o amante de sua esposa na mesa de cirurgia, uma mulher que visita um homem atormentado pelo desejo de vingança, pois no passado, ela teria sido a responsável por desfigurar o seu rosto, dentre outras apresentações repletas de insanidade e violência. Maquiagem cuidadosamente focada em ferimentos e sangue derramado, bem como jogos de espelhos, membros de borracha, facas e outras armas brancas com efeitos, além do uso de fumaça, em linhas gerais, elementos da linguagem destes espetáculos que tal como todo gênero dentro de um contexto, passa pelo ápice, entra em decadência e nalguns casos, se transforma.

No que concerne às amoralidades dos entretenimentos de horror do Grand Guignol, o seu fechamento em 1962 se deu por causa do esgotamento de ideias numa sociedade que tinha contemplado na realidade, os temores e a violência física de duas grandes guerras, na esteira disto tudo, os horrores do Holocausto. O que era ficcional se mostrou tão aterrorizante também na realidade. O Grand Guignol abria seis noites por semana e no domingo, pela tarde. Um cuidadoso design sonoro investia em gemidos, gritos e efeitos para estabelecimento da sensação de medo e pavor. Crimes, mortes violentas, clima de instabilidade psicológica, torturas, cirurgias e experiências de médicos loucos: salvaguardadas as devidas proporções, tudo aquilo que contemplamos em filmes pontuais das diversas fases do slasher, tais como Sexta-Feira 13 e Feliz Aniversário Para Mim (crimes, mortes e instabilidade psicológica da antagonista) ou os exemplares das franquias O Massacre da Serra Elétrica e Jogos Mortais (torturas, e, por que não, “médicos loucos e similares”, afinal, como podemos definir exatamente Jigsaw?). Ademais, tal como no slasher, o Grand Guignol estabeleceu um império de violência e morte, representadas por meio de cenas com muito sangue e suplício, dando ao flagelo do corpo o destaque, numa era tomada pelo horror associado quase que exclusivamente ao sobrenatural, por isso, os seus espetáculos permitem uma associação entre estilos, não apenas por suas características visuais e dramáticas, mas também pela similaridade dos respectivos contextos históricos.

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