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Entenda Melhor | Horror Oriental em Versões Ocidentais

por Leonardo Campos
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Uma menina jogada em um poço se transforma numa maldição que é transmitida por fitas VHS. Logo mais, em sua atualização, o fantasma vingativo adentra nas malhas da cibercultura a amedronta todos os usuários de aplicativos e redes sociais que tiveram acesso ao seu vídeo amaldiçoado. Noutra história, um homem tomado por sentimentos inesperados mata violentamente a sua esposa e filho, além de afogar o gato da criança. Por ser uma história do folclore japonês, os mortos não conseguem encontrar a paz em suas respectivas “passagens” e neste cenário de tormento, transformam-se em entidades que selam o destino de qualquer um que tenha contato com as suas respectivas trajetórias. Há também a história da garota subjugada por um rapaz, alvo de sua paixão. Para afastá-la, ele pede que dois amigos ajudem numa chantagem, mas as coisas saem do controle e uma alma sem descanso é contabilizada.

Há também a trágica história de duas irmãs siamesas que vivem harmoniosamente, até o dia em que a separação pode modificar os sentimentos internos entre as jovens, premissa básica que se desdobra numa macabra maldição. Desenvolvidas no âmbito familiar, essas histórias se parecem uma com as outras pelo fato de se agruparem no bojo do folclore oriental, em especial, no Japão, China e Coréia do Sul. Depois que foram trazidas para o eixo de produção hollywoodiano, esses contos macabros ganharam mais projeção do que já tinha e transformaram-se num subgênero do horror contemporâneo, desenvolvidos em sua “Era de Ouro”, na década de 2000, período que demarcou a sua ascensão e decadência, refletidas nos featurettes selecionados para a discussão empreendida neste texto que passeia brevemente por Água Negra, O Chamado, Imagens do Além, O Grito e O Olho do Mal. Vamos nessa?

Samara: A Criação de Um Mito

Em A Origem do Terror, o produtor Walter Parkes e Patrick Polk, Ph.D em Folclore e Mitologia na UCLA, dentre outros depoentes dos bastidores de O Chamado debatem o poder de disseminação das lendas urbanas numa sociedade que vive em constante medo de todas as coisas. Com o advento da popularização da internet, essas inseguranças ganharam outras dimensões, mais abrangentes do que já era com a cultura do rádio e da televisão. Ao longo dos depoimentos da equipe de produção, somos informados que o horror oriental trabalha com a dualidade entre medo e empatia, elementos básicos neste segmento cultural, além dos olhos, uma das predileções dos japoneses diante do interesse em transmitir a sensação de horror em seus filmes.

Para a criação de Samara, os maquiadores produziram uma versão mais decrépita que a oriental, dando enfoque nos pés e nas mãos, captados pela fotografia que teve como uma de suas estratégias, modificar a velocidade da câmera em alguns trechos, tendo em vista apresentar ao público movimentos estranhos e incomuns, dignos do tom sobrenatural da história. A peruca de cabelos humanos também ajudou no estabelecimento dos traços visuais desejados pelos realizadores. E como toda boa história de bastidores, em A Assombração de O Chamado 2, somos informados da ida de um representante xintoísta para benzer o set de filmagens, pois certo dia, o ambiente sofreu uma inundação inexplicada. Maldição ou apenas coincidência?

A Fúria Poderosa: Os Bastidores de O Grito

Exibido na televisão e integrado nas edições especiais quando o filme foi lançado no mercado de DVD, A Fúria Poderosa: Os Bastidores de O Grito é um eficiente documentário metalinguístico, meticuloso na abordagem genética da refilmagem de Ju-On – O Grito, produzida por Sam Raimi e dirigida por Takashi Shimizu, o idealizador da versão “original”. Ao longo dos depoimentos, acompanhamos detalhes da produção, divididos em cinco partes: O Nascimento de O Grito, O Mito de Ju-On, Choque Cultural: Um Elenco Americano no Japão, Projetando a Casa de O Grito e Uma Nova Direção: Compreendendo Takashi Shimizu. As informações expostas vão além da mera curiosidade de bastidores para expor análises mais densas do processo de realização e contato com a cultura alheia, neste caso, o elo entre anseios estadunidenses e adequações com os costumes nipônicos.

Em O Nascimento de O Grito, Sam Raimi versa sobre a subjetividade da direção e o desinteresse das plateias estadunidenses por legendas e filmes de culturas diferentes, motivação para recontar a história dentro do formato atrativo para o público. Com mudanças sutis no roteiro de Shimizu, Stephen Susco foi o responsável pelo texto da refilmagem. A produção dividiu opiniões, pois não conseguiu ser tão magnética quanto O Chamado, trama que em seu processo adaptativo, ganhou uma identidade mais própria. Sarah Michelle Gellar, intérprete da protagonista, comenta em seus depoimentos que acredita no potencial do filme e de sua não-linearidade, algo que permite o acompanhamento do público, mais ativo que o habitual. Sem ter que explicar detalhadamente tudo, a produção ousa um pouco mais que as refilmagens que foram realizadas posteriormente, nada sutis e bem didáticas, reflexo da audiência cada vez mais preguiçosa intelectualmente.

No desenvolvimento das ideias de O Mito de Ju-On, os realizadores contam sobre o potencial dramático do folclore japonês, dando enfoque para os papeis desenvolvidos pelas mulheres nessa sociedade que tal como os ocidentais, oprimem a figura feminina, representada em sua ira nos fantasmas vingativos dos filmes de horror, narrativas inspiradas no vasto folclore não apenas japonês, mas do eixo cultura oriental de maneira geral. Curiosa diante dos elementos históricos que permeiam os japoneses, Sarah Michelle Gellar alega que buscou conversar bastante com Takashi Shimizu, além de ser observadora dos comportamentos nos bastidores, tendo em vista aprender e expressar o que trouxe para si no desenvolvimento de sua personagem. O mito versa sobre algo ser superior ao amaldiçoado, diferente dos filmes americanos que geralmente apresentam soluções, com manuais e talismãs para a expulsão das entidades.

Na ótica estadunidense, há a dualidade do crime e castigo, um pouco diferente dos orientais, pois em O Grito, você não precisa necessariamente ter feito algo contra aquelas entidades vingativas. Basta acessar o local onde a maldição se estabeleceu para purgar até o doloroso fim de sua vida. São filmes que abordam medos superiores, sem preocupar-se tanto com os efeitos especiais e visuais. Adiante, em Choque Cultural: Um Elenco Americano no Japão, somos apresentados aos atores e membros da equipe técnica por Tóquio, uma cidade que segundo os depoimentos, é diferente de tudo que já tinham visto. Os envolvidos também tiveram acesso aos rituais japoneses, focados em suas crenças. Sarah Michelle Gellar, aparentemente bem respeitosa, comenta sobre tirar os sapatos para caminhar pelo set de filmagens e também critica os americanos nos momentos de trocas linguísticas. Ela diz que os japoneses sempre trazem palavras enriquecedoras ou uteis para o vocabulário, enquanto os americanos brincam com gírias e expressões vulgares em prol do humor, em suma, vocábulos de certa forma inúteis.

Ademais, em Projetando a Casa de O Grito, Iwao Saitô revela que as casas japonesas são mais compactas. Para não causar estranhamento no público voltado para o acompanhamento da refilmagem, a sua equipe projetou uma casa maior, com cenas em locações e em estúdio, com o sótão da casa numa versão ainda maior para que algumas passagens fossem filmadas com maior liberdade da direção de fotografia. A preocupação com a casa era um dos primeiros tópicos nas reuniões, pois a maldição se alastra num ambiente físico, neste caso, um lar, espaço que precisava passar para o público os interesses estéticos dos realizadores. Por fim, no featurette chamado Uma Nova Direção: Compreendendo Takashi Shimizu, produtores, membros da equipe técnica e elenco falam sobre como os seus personagens foram trabalhados pelo diretor, além de observações que versam sobre a subjetividade da proposta narrativa japonesa e detalhes adicionais sobre “a maldição que se alastra num momento de ódio”.

O Som do Terror: Os Bastidores de Água Negra

Lançado em 2005, Água Negra foi uma das refilmagens que aproveitaram o interesse dos ocidentais pelo clima fantasmagórico oriental. Dirigida por Walter Salles, a narrativa abordou o sufocante divórcio de uma mãe que precisa lutar para manter a guarda da filha enquanto enfrenta as suas dificuldades de ordem psicológica e social. No âmbito pessoal, sente o desfecho nada saudável da relação com o ex-marido. A sensação de impotência fica ainda mais forte quando o apartamento alugado para passar os momentos de resolução das questões começa a transformar a vida da protagonista e da filha num pesadelo sem precedentes, uma amarga trilha que caminha para um epílogo nada feliz.

Para a jornada, um dos elementos mais bem trabalhados pela equipe é o design de som, assinado por Scott Millan, principal depoente do featurette intitulado O Som do Terror. Ele alega que os sons da trama estão em transições de cenas e que não houve interesse algum dos realizadores em focar no jumpscare (ele não usa o termo, algo mais atual, mas faz ilações que permitem a associação). Para a representação da enxaqueca constante da protagonista, os envolvidos utilizaram os sons captados de um exame de ultrassom, algo em ritmo bem constante, tendo em vista expor a agonia interna da personagem e seus demônios pessoais. A questão do silêncio também ganha dimensão neste drama com toques sobrenaturais, pois conforme os realizadores, desinteressados em sons eletrônicos, numa posta por abordagens mais orgânicas, as cenas silenciosas possuem muita carga dramática numa trama como Água Negra.

Imagens do Além: a releitura de Espíritos – A Morte Está ao Seu Lado

Lançado em 2008, Imagens do Além reinterpretou ao modo ocidental a narrativa tailandesa sobre o fantasma vingativo de uma mulher subjugada em vida. A transformação da jornada do protagonista é uma evolução para a inexistência da paz diante do tormento perpetrado após os seus atos indevidos durante a vida do espírito em questão. Nos depoimentos do featurette intitulado Um Fantasma na Lente, questões comparativas entre os “demônios” orientais e ocidentais são traçadas, numa exposição sobre o conceito de reikon, ou seja, a alma, transformada ou não em yurei, um fantasma que não encontrou a paz por conta do rancor guardado ainda em vida.

Em determinado momento de muita lucidez, o roteirista Luke Dawson toma o roteiro da refilmagem em mãos e de maneira humorada, expõe questões do texto, mas diz que o material não é dele, numa irônica afirmação do caráter de muitas refilmagens que não traduzem o conceito, mas apenas copiam a fórmula e adaptam em outro contexto. Tratados de maneira mais efêmera no ocidente, os espíritos orientais são apontados como mais físicos em locais como o Japão, por exemplo, local que situa os desdobramentos narrativos de Imagens do Além.

A fotografia acusada de ter espíritos como parte do enquadramento não é uma novidade, mas algo debatido desde os primeiros trabalhos obtidos nos primórdios desta prática artística. Em Faça a Sua Própria Foto de Fantasma, os depoimentos refletem a prática da manipulação da imagem na era digital. Há uma abordagem histórica do assunto, com destaque para o processo histórico das imagens sensacionalistas que dividiam o público entre o sobrenatural, com destaque para a presença de fantasmas, e o ceticismo, voltado para a crença em problemas técnicos na má formação de fotografias apontadas como assombradas.

Nas reflexões de Uma Divisão Cultural: A Filmagem no Japão, a equipe parece encantada com o cotidiano dos japoneses, tratados como pessoas de comportamento cortês e ponderado, altamente profissionais e dedicados ao trabalho que se propõe. Os espectadores, tal como podemos observar ao assistir Imagens do Além, acompanham a jornada de horror através da perspectiva da noiva do protagonista, a primeira a perceber que algo de errado ocorre nas fotos registradas por seu companheiro. É com ela que a investigação se estabelece, personagem que nos faz enxergar a cidade diante de seu ponto de vista, muito parecido com a protagonista de O Grito, isto é, uma mulher que desconhece a cultura na qual acaba de imergir. O diretor, Masayuki Ochiai, também oriental, alega ter modificado pouca coisa, pois respeita muito o ponto de partida coreano. O resultado, como observado na época, não foi dos melhores, pois apesar de ter alguns pontos intrigantes a refilmagem perde impacto ao ser relativamente explicativa demais ao longo do meio para o desfecho da história.

O Olho do Mal: O Nascimento do Homem das Sombras

Em O Olho do Mal, refilmagem de The Eye – A Herança, acompanhamos a ofegante trajetória da de uma mulher que precisa lidar com o dom da falecida doadora, mulher que costumava ter premonições em relação às mortes que aconteceriam ao redor de sua vida. Tal como a figura da morte da cultura ocidental, na produção, temos O Homem das Sombras, uma entidade responsável por guiar os mortos de suas existências físicas para o além. No desenvolvimento do featurette sobre a criação do Homem das Sombras, contemplamos o ator em contato com o estúdio de tela verde, base para a aplicação dos efeitos visuais produzidos por Marc Varisco e sua equipe. Considerado como o elo de ligação entre o nosso mundo e o além, a entidade é um borrão na vida da protagonista vivida por Jessica Alba.

Pálido, andrógino, “mancha” que se desloca para guiar os mortos rumo ao seu lugar no além, é uma presença assustadora, mas que não funciona como uma maldição, ao estilo Samara Kayako, pois da mesma maneira que a morte na franquia Premonição, ele aparece no momento de sua missão, isto é, ser o elo de ligação entre os vivos e os mortos e seus respectivos lugar de circulação. Já em O Mundo das Sombras: Vendo os Mortos, especialistas em estudos sobre memória celular falam sobre a polêmica discussão acerca da transferência de lembranças e comportamentos de uma pessoa para outra no processo de transplante de órgãos, algo até mais assustador e surpreendente que os sustos pouco convincentes da refilmagem.

O Terror Completa o Ciclo e Ressuscitando os Mortos: Trazendo Samara de Volta

A última aparição de Samara Morgan no cinema tinha um desafio hercúleo de promover o interesse do público e da crítica diante da revitalização do mito para os avanços tecnológicos da contemporaneidade, mas O Chamado 3 não conseguiu. Em O Terror Completa do Círculo, acompanhamos elenco e equipe técnica bastante envolvido no processo, mas há algo entre a concepção e a exibição que deu errado. As intenções naufragaram vertiginosamente no produto final. Bonnie Morgan, interprete da antagonista na versão em questão comenta dos símbolos do primeiro filme, dentre eles, a escada e a cadeira, oriundos do tal vídeo amaldiçoado.

São exposições que demonstram o legado próprio de O Chamado, um filme que diferente da maioria das refilmagens de sua época, não se tornou exclusivamente dependente do ponto de partida japonês. O elenco conta das brincadeiras que realizavam na época, com os amigos ligando uns para os outros, tendo em vista pregar peças, numa comprovação cabal do impacto de Samara na cultura do entretenimento. Alegórico para os perigos da relação entre os seres humanos e a virtualidade, O Chamado 3 sai da fita de vídeo e adentra pelo pantanoso terreno da atualidade, com vírus, pen drivers, HD externos, celulares, aplicativos e a presença da maldição da menina do poço, emaranhada agora na internet.

A questão do que se torna viral e a necessidade de ter seus “seguidores” para sobreviver é a base da narrativa que não vingou por conta do protagonismo frágil, do roteiro bom apenas em seu argumento e do excesso de efeitos em prol da fragilidade da história. Já no featurette intitulado Ressuscitando os Mortos: Trazendo Samara de Volta, somos apresentados ao extenso processo de maquiagem de Bonnie Morgan, atriz que é contorcionista e interpretou Samara na continuação, em especifico, na cena do poço próximo ao desfecho da trama. É um material mais breve, mas não menos importante, pois a franquia O Chamado depende bastante da visualidade de seu “monstro” para funcionar enquanto narrativa de horror inspirada pelo folclore nipônico.

E o ciclo se renova: Sam Raimi produz, mais uma vez, outra versão para O Grito

Com produção de uma série sobre o universo da maldição que se alastra num local onde a tragédia e a morte se alastraram num determinado momento de ódio, o universo cinematográfico da franquia O Grito ganhou versão atualizada em 2020, assinada pelo mesmo produtor que importou a história de Takashi Shimizu em 2004. Basta saber se essa retomada vai render novos filmes ou se o resgate da história foi apenas uma tentativa de atualizar o mito para as novas plateias, e, render, obviamente, cifras consideráveis para os envolvidos. Com direção de Nicolas Pesce, o filme trata de dramas familiares e elementos do destino que impedem a evolução dos personagens mergulhados na maldição “Ju-On”. Sem visão unânime pelos críticos e espectadores, O Grito demonstrou que ainda consegue ecoar, numa comprovação do legado das narrativas que se encaixam dentro da divisão cultural em questão, isto é, traumas orientais em versões ocidentais. Já há algumas propostas para um reboot de O Chamado. Será mesmo necessário? Você, caro leitor, o que acha?

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