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Entenda Melhor | Literatura e Pintura: Ulisses, a Odisseia e o Canto das Sereias

Mitologia como mote para análise de artes visuais e alegorias reflexivas contemporâneas.

por Leonardo Campos
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Navegando ao longo das numerosas tradições que acompanham a história da humanidade desde a Antiguidade, com ecos no contemporâneo, a expressão “canto das sereias” saiu da mitologia e ganhou ressonâncias na fala coloquial cotidiana, algo que significa, basicamente, as nossas tentações testadas diante de uma situação perigosa. Vejamos o caso da comédia romântica Os Delírios de Consumo de Becky Bloom. A protagonista viciada em compras passa por um processo evolutivo e torna-se consciente, a musa da educação financeira num mundo de Publicidade e Propaganda perversa, para o bem do capitalismo, mas definitivamente opressor para as pessoas com pouca segurança diante das mencionadas tentações. No desfecho da narrativa, enquanto passeia pela frente de uma loja de marca poderosa, ela ignora o “canto das sereias” e segue o seu caminho sem os estresses diante do consumo desenfreado. É uma alegoria breve, mas potencialmente assertiva para iniciarmos uma reflexão sobre a presença destes seres mitológicos e suas representações na tessitura cultural atual.

Resistir ao canto das sereias, em linhas gerais, é compreender as nossas fraquezas na velha celeuma da racionalidade diante dos dilemas da natureza. Astutos, precisamos lidar com aquilo que pode nos colocar numa posição comprometedora, algo que um forte personagem lido e relido constantemente na cultura faz, nas passagens da Odisseia, poema homérico que narra a trajetória de Ulisses (também conhecido como Odisseu) voltando da Guerra de Troia para Ítaca, tendo em vista retomar seu reino, reencontrar a sua esposa Penélope e seu filho Telêmaco. Audacioso, o personagem acaba cometendo uma ação que irrita Poseidon, sendo colocado numa travessia de obstáculos diversos pelo deus dos mares, desde a chegada ao ambiente de Circe, ao “cárcere” na ilha de Calipso, a terra do Ciclope e a passagem pelo território das sereias, criaturas híbridas conhecidas pelo canto sedutor capaz de atrair homens incautos e leva-los ao encontro com a morte. A regra era simples: ao passar pelo ambiente em questão, os homens que ainda restavam no navio deveriam colocar cera nos ouvidos, para evitar a “atração”.

Todos eles, orientados por Ulisses, cumprem a missão, mas o personagem, ao perceber que não há material para a sua proteção, pede aos companheiros que o amarrem fortemente no mastro do navio, para que não caísse nas armadilhas das figuras mitológicas. É um processo ardiloso, intenso, mas o astuto personagem consegue sair ileso, mesmo que acometido por muito sofrimento. Tal passagem, caro leitor, encontra-se presente no bojo da cultura, seja em outras obras literárias, filmes que traduzem o poema ou tomam pequenos traços emprestados, além de músicas, games, séries televisivas e pinturas, arte que é o foco da nossa reflexão por aqui: compreender a história deste momento mitológico e analisar as suas representações em imagens consideras hoje como clássicas, visualmente deslumbrantes ao traçarem olhares peculiares para uma das camadas da Odisseia mais espalhas em nossa cultura, um rizoma de potencialidades filosóficas numerosas vezes interpretado. Recentemente, num debate com um grupo de jornalismo, refletíamos sobre o enganoso canto das sereias na era da desinformação, isto é, das Fake News, as sereias do nosso tempo.

Antes, no entanto, de delinear um pouco mais o mito, creio ser necessário explanar para o leitor algumas estratégias assertivas para análise de uma pintura. No cinema, analisamos contexto, roteiro, fotografia, desempenhos dramáticos e afins. Na música, letras, vocais, instrumentos e arranjos. No teatro, as atuações, a qualidade do texto, a cenografia, as rubricas, dentre outros pormenores. Com os textos literários, o desenvolvimento dos personagens, o estilo da escrita do autor e outras peculiaridades da malha textual, quando romance, conto e crônica, sendo o poema analisado por outras vias, como a versificação e sua temática. Mas, e na pintura, como podemos proceder para uma análise que não precisa necessariamente ser acadêmica, mas que seja básica para responder uma questão de concurso, de vestibular, do ENEM, do ENADE ou qualquer outro momento de interpretação? É o que será apresentado, panoramicamente, no tópico seguinte, combinado? Voltamos logo adiante com o canto das sereias e Ulisses na pintura.

Estratégias para Interpretação de Pinturas

As pinturas não são parte exclusiva dos museus ou livros de História e Literatura. As suas releituras no campo da Publicidade e da Propaganda, bem como do Jornalismo, do Cinema e de outras áreas midiáticas da sociedade permitem a maior circulação destas obras, peças que numa determinada época se encontrava com acesso exclusivo para as elites econômicas, geralmente produzidas por encomenda. Como o mundo está sempre em transformação, noutra época, as pinturas foram impactadas pelas revoluções tecnológicas nas eras das dinâmicas industriais, algo no que os estudos de comunicação chamamos de era da reprodutibilidade técnica, termo cunhado pelo filosofo alemão Walter Benjamin. Sendo assim, já que estamos numa jornada de leitura e interpretação não apenas verbal, mas de significações do mundo, nossa tarefa será a análise de uma pintura. Inicialmente, nos detemos ao conteúdo, caminho mais natural e de fato o correto. Pare e pense: do que trata a obra em questão? É um recorte de um momento específico da história? É a representação de um nobre ou de um rito religioso? Uma passagem literária?

Para melhor guiar a nossa jornada, apresentarei algumas sugestões de Andrea Dressler, professora de História da Arte. A profissional aponta que há três mecanismos que podem ajudar na análise: a objetiva, a subjetiva e a formal. A objetiva é a análise imediata, momento que descrevemos a obra, sem especulações, tendo em vista o que superficialmente nos é mostrado. Na análise subjetiva, também chamada de simbólica, o analisador descreve o que sente ao visualizá-la. No âmbito da formal (ou estética), por sua vez, a observação precisa dar conta da sintaxe visual, do tema, do contexto histórico que envolve a obra, o que requer investigação e apuração do material encontrado. Dressler também traz uma lista de “funções” presentes na obra analisada que podem ajudar em sua tarefa interpretativa. Lembre-se que elas podem coexistir numa obra e que não há apenas uma maneira de analisar algo, combinado?

A relação entre recepção e autor também conta bastante, por isso, retome aquela ideia sobre “o que o autor quis dizer” e a troque por, “de acordo com o estilo do pintor X, podemos inferir que…”. É muito mais coerente analisar assim. Na lista proposta por Dressler temos as seguintes funções: artística, pragmática, religiosa, ambiental, individual, histórica e política. Ela deixa bem definido que há outras possibilidades, e caso haja interesse em aprofundar além deste esquema, o leitor pode procurar um manual de História da Arte, algo mais adequado para ir além e avançar diante dos impasses decorrentes das limitações deste espaço, um texto que buscou ser bastante panorâmico, mas evitou não destacar pormenores básicos para análise de uma pintura. Em linhas gerais, estas são as funções na análise proposta pela especialista:

Função artística: através da organização dos elementos que compõe a sintaxe artística, o autor cria composições que atraem a atenção do espectador.

Função pragmática: apresenta um caráter educacional, pois visa transmitir conhecimentos de todas as ordens: científicos, espirituais, políticos e culturais através de uma obra artística.

Função religiosa: possui o objetivo de divulgar preceitos, dogmas e eventos de uma determinada religião, referenciando-a.

Função ambiental: pretende exaltar, denunciar, expor aspectos relacionados com o meio ambiente, através da sua beleza, preservação e exploração.

Função individual: através da composição artística, o compositor, motivado pelos fatos que o rodeiam, expressa seus sentimentos.

Função histórica: registra e retrata fatos relacionados com uma determinada época relevantes para uma civilização.

Função política: tem o objetivo social de representar eventos da ação política de uma comunidade e, um povo ou uma nação.

Com esses dados disponíveis você pode direcionar a sua análise, que geralmente, deve continuar com a leitura da legenda. Busque o nome do autor, ano de produção, o suporte em que foi realizada e as suas dimensões. Sobre o artista é importante também que tome nota do ano de nascimento e morte (mas não se prenda a isso), posicionamento social, além da relação da obra analisada com outras produções do autor. É uma boa maneira de compreender questões contextuais. Ademais, reconheça a cena representada. É uma cena religiosa, mitológica, um retratou ou uma paisagem? Observe o conteúdo da pintura: o que é representado, os lugares, como a cena é enquadrada, quem são os personagens ou objetos e como agem dentro dos limites da obra. Aqui, podemos perceber pontos de vista diferenciados, mas observações similares sobre a passagem de Ulisses com as Sereias, presente no canto XII da Odisseia.

A análise plástica requer deter-se a conhecimentos mais profundos, que se complementam agora que você já fez análise de fotografias e filmes. No que tange aos elementos da composição, é preciso observar as linhas que organizam o quadro, a geometria das figuras, os eixos, se são ou não marcados, bem como a movimentação interna: é estática ou dinâmica? As cores precisam ser analisadas cuidadosamente. São quentes ou frias? Fundamentais ou complementares? Tópicos como planificação, matizes, contraste, gradações e saturação também fazem adentra o campo analítico, seguido da natureza da cor: é realista, naturalista, simbólica ou local? Observe: de onde vem à luz? Qual o seu efeito? É luz concreta (sol, lâmpada) ou surge do próprio objeto/figura? Qual a técnica da pintura? É mancha larga, pontilhada, linear, esfumado ou modelado? E o suporte: papel, tela, madeira, vidro ou muro? Se possível, observe o material: acrílico, colagem, misto, cera ou gravura?

Por fim, pense na análise histórica da pintura. O contexto de produção e a ressonância de outros artistas.  Como apontou Rudolph Arheim, especialista alemão em História da Arte, “toda obra deve expressar algo”. Por isso, toda vez que observar uma pintura, seja em um livro didático de Literatura ou História, numa cena de um filme ou videoclipe, na capa da sua revista semanal predileta ou em alguma campanha publicitária, reflita. Leia. Observe. Analise. Aguce cada vez mais o seu senso crítico. Vai ser muito bom para a sua evolução intelectual. Nesta experiência de pintura, descrita em forma de texto, mas originada de ações educacionais no Ensino Médio e no Ensino Superior, contemplamos os desdobramentos do canto das sereias na cultura, tendo como ponto de partida a análise da pintura As Sereias e Ulisses, de William Etty, de 1837. Ele não é o único artista a ter retratado a passagem, mas por questões de recorte, foi o escolhido para ser parte desta jornada de ensino, aprendizagem e momentos de entretenimento, afinal, contemplar uma pintura clássica, salvaguardadas as devidas proporções, é como estar diante de uma narrativa cinematográfica ou seriada televisiva. Há um texto dentro de um contexto para ser visualidade, sentido e interpretado, com pretensões mais reflexivas ou apenas passageiras.

Ulisses, O Canto das Sereias e a Pintura de William Wetty

Com as mãos para levantadas a tocar lira, as sereias aparecem nesta pintura em suas respectivas posições voluptuosas. Com influência de Thomas Myers, um advogado amigo de William Wetty, conhecedor avançado de mitologia, o pintor produziu a sua tela com três sereias a cantarolar, enquanto Ulisses, ao fundo, é visto amarrado no mastro, num ambiente com nuvens escuras assombrosas, num clima lúgubre que representa medo e perigo. Nesta cena, como já mencionado, o astuto herói grego resiste aos encantamentos das tenebrosas sereias, quando o navio é atacado e eles precisam se proteger do canto para evitar a morte. O pintor, numa manobra artística suntuosa, entrega a sua interpretação visual para esta passagem da Odisseia, numa tela de 442,5 x 297, hoje situada na Manchester Art Gallery, obra grandiosa que na época encontrou dificuldades por causa de suas técnicas, restaurada em 2003, mantida com toda a proteção, para ser registro de um monumental processo de expressão artística, merecedor de todos os cuidados, tendo em vista a importância de ser contemplado por longas eras.

Em sua pintura, William Etty retrata as mulheres nuas, sensualmente expostas numa ilha de visual contrastante, com cadáveres em decomposição, um retrato ousado que dividiu a opinião dos críticos e apreciadores da época. Com ressonâncias de Rubens e Titian em sua técnica, o autor de As Sereias e Ulisses ficou famoso por abordar temas envolvendo nudez, passagens em ambientes bíblicos, literários e mitológicos, postura que o definiu como indecente por alguns e revolucionário para outros, paradoxo de percepção que sempre transformou a história da arte, levantando debates e promovendo reflexões. Conta-se que a pintura foi adquirida por um rico comerciante de algodão na época, figura que levou para casa uma tela com sereias em poses dramáticas, com destaque para Ulisses, personagem que mesmo ao fundo, se impõe como alguém de maior imponência em relação aos demais marinheiros da navegação que atravessa um momento de grandes desafios. Com aparência humana, já que estão fora do mar, as sereias se colocam na cena numa perspectiva adotada por outros pintores posteriores, provavelmente influenciados pela realização de William Etty.

Esta passagem, já alertada por Circe em pontos cruciais do canto XII da Odisseia, de Homero, tem um numeroso feixe de interpretações sobre as suas origens. Em sala de aula, preferencialmente, me dedico a analisar o trecho repleto de alegorias com a versão que relaciona o canto das sereias com som dos ventos que batiam nas pedras escarpadas das ilhas do Mar Mediterrâneo. De acordo com este ponto de vista, o encontro desta corrente de ar com as rochas criava um som agudo e suave, confundido pelos ouvintes como a voz de mulheres. Na época, como sabemos, os agentes de navegação dependiam da força bruta, haja vista a ausência de determinadas tecnologias que hoje apresentam possibilidades avançadas para funcionar, isto é, levar embarcações ao mar. Distantes do lar por muito tempo, estes indivíduos passavam pelo processo de carência afetiva e sexual, tendo neste som suave um poderoso gatilho para potencializar as suas instabilidades emocionais e psicológicas, numa época que não se debatia questões do tipo pelo viés científico, mas na perspectiva do mito. Acometidos por fortes miragens, estes homens se atiravam ao mar, lançados contra as pedras, no fatídico encontro com a morte.

Diante do exposto, a imaginação humana criou a formatação ideal para o processo de invenção deste poderoso mito. Nascia o canto das sereias, alegoria que hoje possui desdobramentos bem mais amplos que apenas a presença destas criaturas com corpo de mulher e calda de peixe, dotadas de poderes mágicos. Safo, como demonstrado na pintura de William Etty, Ulisses demonstra a sua astúcia e se salva, postura que o permite vencer os desafios de Poseidon e chegar ao seu reino. Mas não foi uma tarefa fácil, assim como não é para nós, na contemporaneidade, pois muitas vezes, não conseguimos ser Ulisses e, neste processo, acabamos adentrando em posturas destrutivas prejudiciais, em detrimento da nossa integridade. Diante da ilusão, pagamos o preço caro diante da fuga da racionalidade. Ulisses, por sua vez, diferente dos heróis modernos privilegiados com seus poderes especiais, utilizou apenas a inteligência para reconhecer a sua fragilidade enquanto mortal, preso aos seus objetivos de vida, afinal, ele não era o Super-Homem, como refletido por Nietzsche num de seus textos mais conhecidos. Diante desta breve, mas acredito que elucidativa reflexão, parte do livro O Canto das Sereias no Cinema e na Literatura, questões objetivas, discursivas, debates e outros recursos pedagógicos foram desenvolvidos para pensar o canto das sereias e suas ressonâncias na contemporaneidade. O ponto de partida? Uma pintura. A de William Wetty, uma jornada de análise das artes visuais que abriu precedentes para uma sequência incrível de aprendizagem.

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