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Entenda Melhor | O Cinema de John Carpenter

Um passeio panorâmico pela singular cinematografia de John Carpenter.

por Leonardo Campos
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Cinema e singularidade. Esta pode ser uma das palavras-chave para compreendermos o fluxo de produção do cineasta John Carpenter, um realizador conhecido por seu estilo minimalista, emprego de direção de fotografia peculiar e de estética apurada, influenciador das gerações vindouras de diretores autorais, mesmo os inseridos dentro do esquema pausterizador de conteúdos que é o sistema hollywoodiano. A dinâmica narrativa objetiva e a dissociação de perspectivas pernósticas dominam as suas tramas, histórias que versam sobre personagens excluídos de nossa sociedade, com inserção de traços de violência apenas quando tal recurso se faz extremamente necessário para a condução dramática em suas abordagens. Conhecido por inquietar, mesmo em seus filmes estruturalmente mais irregulares, John Carpenter é conhecido por resgatar e revitalizar elementos clássicos de suas bases, o cinema hollywoodiano, numa postura transgressora das regras que entrega algo “original” mesmo quando já existe um ponto de partida anterior para o argumento manipulado para inquietar os espectadores.

Observado panoramicamente, seus filmes mesclam ressonâncias de uma extensa tradição de leitura, numa demonstração assertiva do uso de todo repertório cultural adquirido durante a vida para elevar o potencial de suas narrativas. HQS, as ficções científicas da década de 1950 e 1960, os clássicos de John Ford e Howard Hawks, dentre outras referências que estabeleceram duas linhas marcantes em seu estilo revolucionário: um grupo de pessoas situadas no bojo de adversidades, acossadas e unificadas em prol da sobrevivência diante de uma ameaça, bem como a relação com o “outro”, tópico temático recorrente para os Estudos Culturais. John Carpenter é filho de um renomado professor de música e adquiriu postura engajada no campo das artes ao ser um espectador fiel do Western e da já mencionada ficção científica clássica, potencialmente em vigor nas discussões das décadas posteriores ao advento da Segunda Guerra Mundial, uma era de muitas inseguranças sociais, levadas para reflexão no cinema.

Seu pai, presidente do Departamento de Música da Universidade do Oeste de Kentuchy, tinha um nome privilegiado na instituição, a primeira passagem acadêmica do cineasta que logo se transferiu para a Escola de Artes Cinematográficas, situada na Universidade do Sul da Califórnia, local onde se graduou em 1971 e começou a realizar os seus primeiros trabalhos. Dark Star e Assalto a 13ª DP foram os seus exercícios ficcionais preambulares. No primeiro, embaralhou gêneros do cinema e dialogou com a ficção científica numa ainda incipiente proposta estética limitada pelo baixo orçamento, com uma trama sobre bombas, alienígenas e conflitos entre humanos e forças externas, estrutura reflexiva também levada para o segundo, uma espécie de releitura de Onde Começa o Inferno, de Howard Hawks, o diretor que mais influenciou a sua jornada no campo das artes. Em 1979, ganhou elogios pela cinebiografia Elvis, protagonizado por Kurt Russell, na primeira interação de uma parceria longa, em muitos outros filmes.

O astro do rock e figura mitológica da cultura pop ganhou uma leitura interessante de sua jornada na mídia, com escolhas narrativas que veríamos elaboradas com mais afinco adiante. Um ano antes, no entanto, o cineasta se popularizou com duas narrativas com temáticas semelhantes, Alguém Me Vigia e Halloween: A Noite do Terror, sendo o slasher com Michael Myers responsável por eclipsar o primeiro, produzido para a televisão e praticamente apagado diante do sucesso do misterioso ataque do antagonista mascarado na noite do Dia das Bruxas na versão fictícia de Haddonfield, captada com esmero nas ruas de South Pasadena, em média 8 km do centro de Los Angeles e trama conhecida pela inserção de trilha sonora minimalista que se tornou um dos maiores clássicos do cinema de terror. Em ambas as propostas, encontramos uma mulher em risco, diante da ameaça de uma figura psicótica perigosa, com consideráveis traços de paranoia, vertigem e clima de perseguição, tributários do que Dario Argento e Alfred Hitchcock vinham produzindo nos anos anteriores, salvaguardadas as devidas proporções.

Sem excesso de jumpscare e com estrutura narrativa simples, Halloween: A Noite do Terror talvez seja o maior marco na carreira de John Carpenter, um filme que funciona como vitrine para o seu estilo. Considerada pela crítica como o precursor do profícuo subgênero slasher, a produção capricha no uso do steadicam na direção de fotografia, desenvolve clima de suspense sem recorrer exclusivamente ao banho de sangue e leva para a calmaria dos subúrbios, longe do recorrente clichê gótico das mansões assombradas em zonas distantes, a insegurança social que tomava conta do momento político estadunidense, uma nação desgovernada em sua instável política externa e ameaçada pelo conservadorismo constante. Ao emular traços de Noite do Terror, O Massacre da Serra Elétrica e outros clássicos retratados pela crítica como ilustrações do proto-slasher, o filme de 1978 estabeleceu Michael Myers na cultura pop e alavancou o surgimento de uma franquia cheia de altos e baixos, mais recentemente renovada diante da trilogia dirigida por David Gordon Green, tendo Carpenter como consultor criativo e compositor das três trilhas sonoras, juntamente com Cody Carpenter e Daniel Davies, trio que assinou as texturas percussivas de Halloween (2018), Halloween Kills e Halloween Ends.

O diretor, no entanto, não é apenas um elaborador desta quintessência do slasher, mas também um ótimo idealizador de outras propostas esteticamente poderosas, também firmes dramaticamente, como é o caso de A Bruma Assassina, de 1980, terror bastante sombrio e com envolvente atmosfera que nos mostra a sanha vingativa de piratas dizimados no passado, de volta para o estabelecimento de uma perigosa retaliação, proposta narrativa que envolve momentos de silêncio com intensidade, numa possível referência ao retorno do conservadorismo direitista nas relações sociais da época. Mais adiante, concebeu Fuga de Nova York, um de seus maiores clássicos, tendo como protagonista o anti-herói de Snake Plissken, interpretado por Kurt Russell, figura ficcional violenta e com passado tomado por mistério, acionado por poderosos para resgatar os sobreviventes de um avião presidencial, infiltrando-se na bandidagem de uma prisão de segurança máxima nova-iorquina para salvar a vida uma autoridade da nação.

Na década de 1990, o cineasta assumiu a continuação, tratada pela crítica como uma espécie de retomada paródica do antecessor, intitulada Fuga de Los Angeles, novamente com Kurt Russel no protagonismo, envolto numa empreitada que apresenta ao público uma instabilidade geográfica física que divide território estadunidense, numa cidade punida pelos seus abundantes pecados. Aqui, o diretor critica sistemas de produção, a suspensão de direitos civis e, por meio de um visual icônico, estabelece o costumeiro vigor narrativo para propor aos espectadores entretenimento e reflexão, numa divertida e ácida análise do tecido social vigente em 1998, época de comemoração dos vinte anos de Halloween: A Noite do Terror, retomado com proeminência no ótimo Halloween H20: Vinte Anos Depois, retorno da final girl Laurie Strode, interpretada por Jamie Lee Curtis, inicialmente programado para ter colaborações do diretor, figura que preferiu sair da jornada por diferenças criativas com os envolvidos na produção.

De volta aos anos 1980, podemos destacar O Enigma do Outro Mundo como uma de suas principais realizações do período, sucesso crítico e de bilheteria, com destaque para a condução fotográfica e estabelecimento de uma atmosfera de desconfiança entre os personagens, potencializada pelo design de produção que cria uma geografia misteriosa para a estação onde as aparições peculiares de um monstro que coloca em risco todos os trabalhadores situados numa claustrofóbica paisagem gélida, local de uma missão científica que se revela palco para mortes e perseguições vertiginosas. As iniciativas posteriores do realizador durante a década dividiram opiniões, mas ainda assim, demonstram apuro estético e momentos dramáticos acima do razoável. Em Christine: O Carro Assassino, contemplamos a maldição que envolve o modelo Plymounth Fury 1958, guiado pela presença de uma entidade demoníaca que destroça qualquer um que ameace seu domínio diante do dono, adaptação de uma novela do irregular Stephen King, tradução cinematográfica detestada pelo escritor.

Entre 1984 e 1986, John Carpenter assumiu Starman: O Homem das Estrelas e Os Aventureiros do Bairro Proibido, o primeiro com um extraterrestre nada convencional, interpretado por Jeff Bridges, figura que vem em missão ao nosso planeta para investigar o comportamento dos terráqueos e logo se apaixona por uma viúva que o instiga, conflito de relacionamento que desagua no segundo, outra parceria com Kurt Russell, valentão que precisa lidar com o enigmático Lo Pan (James Kong), feiticeiro poderoso que o coloca numa jornada de aventuras e incertezas, fracasso de bilheteria que desanimou o cineasta, já entediado com os problemas de bastidores da produção, um tormento entre suas ideias fora dos padrões em guerra contra os clichês e demandas dos produtores. Assim, John Carpenter retorna apenas em 1987, com O Príncipe das Sombras, trama sobre um professor convocado para investigar o aparecimento de um misterioso líquido verde numa igreja abandonada, material que transforma em zumbis todos aqueles que entram em contato com a substância que é um alerta para a chegada de uma entidade demoníaca.

Mais uma vez, o realizador demonstra a sua habilidade em dirigir histórias sobre pessoas encurraladas numa situação desafiadora, com tensão potencializada nos momentos certos e debate entre ciência e religião, num filme acima da média e bastante atmosférico, antecipação de outro grande momento de sua carreira, Eles Vivem, de 1988, narrativa que acompanha os caminhos pavimentados por um homem desempregado que encontra um par de óculos bastante curioso, objeto que lhe permite enxergar alienígenas invasores em nosso planeta, interessados em controlar a humanidade através do consumismo. Aqui, a leitura alegórica traz o diretor em um de seus momentos mais criativos e esteticamente formidáveis, numa crítica social aos ditames da administração de Ronald Reagan, imperialista, frágil em sua economia do gotejamento que valorizava as elites e suprimia direitos mais básicos aos demais cidadãos, numa sufocante lógica de controle mercadológico. Depois deste clássico moderno, o cineasta retornou, para seu arrependimento, ao sistema de estúdios, com o questionável Memórias de Um Homem Invisível, um ponto fraco de sua trajetória, fracasso atribuído aos conflitos entre as suas ideias mais criativas e diferenciadas, contrastadas com os interesses dos produtores, “donos do dinheiro”.

A realidade estilhaçada é delineada em 1994, com o interessante À Beira da Loucura, suspense com toques sobrenaturais sobre um investigador chamado para encontrar um escritor de histórias de terror, desaparecido depois de ter publicado o seu último livro. O protagonista, mergulhado num clima de fanatismo e religiosidade, nos permite vivenciar as loucuras que gravitam em torno de sua passagem por uma investigação que modificará para sempre a forma como encara a própria vida. No ano seguinte, o polivalente John Carpenter retorna para mais uma refilmagem, desta vez, do clássico A Aldeia dos Amaldiçoados, pérola dos anos 1950, intitulada A Cidade dos Amaldiçoados. Quem vos escreve abraçou, na época, e ainda continua achando o filme muito dinâmico e interessante, mesmo que a crítica em geral tenha recebido o filme com descaso. Na trama, o diretor discute conflitos sociais de uma convivência dividida em nichos que podem ser ameaçadores para a coletividade, numa reflexão sobre os perigos do poder diante do interesse de aniquilação do “outro” quando os interesses de um grupo são colocados em xeque.

Como nos clássicos do terror sobre crianças malditas, aqui o realizador trata a infância como instância do mal em teor absoluto, temática considerada por especialistas como uma recriação perversa e muito sombria do Mito do Nascimento do Herói, de Otto Rank, renomado discípulo da psicanalise freudiana. Mais adiante, em 1998, o cineasta entregou uma modernização da mitologia vampiresca com o dinâmico Vampiros, trama que emula traços do Western e coloca as criaturas das trevas num embate com uma força tarefa da Igreja Católica, focada na dizimação destes monstros que, desta vez, não possuem sensibilidade aos raios solares e precisam lidar com humanos igualmente maléficos e caóticos. 2001 foi o ano de retomada do diretor ao processo de emulação do Western em Fantasmas de Marte, resgate também de elementos comuns ao seu estilo, com o estabelecimento de um mal ancestral, personagens díspares unificados para garantir a sobrevivência diante de uma ameaça e anti-heróis cerceados por forças antagônicas e misteriosas. Amaldiçoado nas bilheterias, o filme se tornou um pequeno clássico na carreira deste profícuo diretor que também voltou a experimentar a linguagem dos telefilmes em Pro-Life e entregou ao seu público, em 2005, Aterrorizada e Pesadelo Mortal, tramas sobre paranoias, discursos teológicos e presença de forças do mal. De lá pra cá, as inserções de John Carpenter no ramo cultural tem sido em debates e consultorias sobre o legado e impacto cultural de seu cinema, além das empreitadas no campo da trilha sonora.

Até então, acredito que o diretor já tenha dado a sua efetiva contribuição ao campo das artes, não precisando comprovar mais nada para ninguém. E você, caro leitor, o que acha?

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