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Entenda Melhor | O Cinema de Spike Lee

por Leonardo Campos
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Uma carreira cheia de altos e baixos. Essa é a linha fina que podemos utilizar, de maneira breve, para interpretar uma das possibilidades de compreensão acerca da presença de Spike Lee no bojo da produção cinematográfica estadunidense desde os anos finais da década de 1980 até o nosso momento contemporâneo. São “eras” mergulhadas na penumbra do fascismo, não apenas por conta dos representantes políticos e seguidores que se aproximam de ideologias xenófobas excludentes, mas por conta das transformações sociais que constantemente nos mostram como nós, seres humanos, ainda estamos distantes da resolução de nossas próprias contradições. Ganhador de prêmios honorários, tais como o César, em 2003, e o Oscar, em 2016, sua presença constante como realizador que assume os próprios roteiros lhe concedeu a privilegiada posição de cineasta autoral. O prêmio por Melhor Roteiro veio em 2018, por Infiltrado na Klan.

Nascido em março de 1957, em sua infância, o cineasta foi testemunha ocular dos movimentos que sacudiram a sociedade na década de 1960, material que forjou não apenas a sua biografia como cineasta, mas também lhe forneceu subsídio para os questionamentos levantados em seus filmes. Isso tudo, entretanto, não implica em definir Spike Lee como um cineasta exclusivamente “temático”, isto é, o cara que entende apenas de debates raciais. Consciente dos mecanismos que engendram o cinema clássico hollywoodiano, foi através da sua formação cinéfila que ele percebeu a ausência de representação positiva da população negra em tramas clássicas, tais como a saga de Scarllet O’Hara e o clássico inovador da montagem O Nascimento de Uma Nação, estupendo em sua forma, mas nocivo no que tange as suas abordagens contextuais.

Spike Lee no começo e na atualidade: cenas de Lute Pela Coisa Certa e Ela Quer Tudo (anos 1980) e nos badalados eventos sociais de cinema (em 2018): Cannes e no Oscar

Em Malcolm X, por exemplo, o cineasta orientou o seu diretor de fotografia durante captação e movimentação de determinados trechos que emulam Lawrence da Arábia, um monumento da cinematografia clássica hollywoodiana, restaurado e reexibido nos Estados Unidos e conferido por Spike Lee antes do mergulho na produção da cinebiografia de um dos mais polêmicos líderes do Movimento Negro, épico que marcou para sempre a sua carreira. Pelas histórias narradas em entrevistas e demais relatos biográficos, a sua infância flerta um pouco com os dramas desenvolvidos em Croclyn – Uma Família de Pernas pro Ar. Foi no Brooklyn que adquiriu a sua consciência social e força para o engajamento em suas produções.

O pai, um músico de jazz, ofertou ao pequeno Spike as maravilhas do mundo da música. A sua mãe, professora de Literatura e Artes, apresentou ao filho a visualidade e as narrativas que lhe permitiram adentrar com maior propriedade no mundo do cinema. Formado em Comunicação pela Morehouse College, Spike Lee teve como uma de suas experiências a função de organizador do acervo de uma distribuidora de filmes. Ele limpava e enviava as produções marcadas para distribuição. Dentre os seus primeiros passos maiores, temos Ela Quer Tudo, narrativa sobre a jovem Nola Darling, garota de bem com a vida que possui três namorados, cada um com qualidades distintas. Um é protetor, gentil, educado e cheio de boas-intenções. O outro é rico, vaidoso, mas arrogante, o que não a impede de ficar inclinada por conta de seu charme. O terceiro é um bem-humorado, mas imaturo assistente de um escritório. Nenhum deles é capaz de deixa-la completamente satisfeita. Em meio aos conflitos, Spike Lee insere questões pontuais sobre relacionamentos, preconceitos, dentre outros tópicos comuns em sua cinematografia.

Spike Lee em Febre na Selva e Faça a Coisa Certa: questões raciais, políticas e sociais em perspectiva

Na Morehouse School, produziu Lute Pela Coisa Certa, musical bem-humorado situado numa universidade exclusiva para estudantes negros no sul dos Estados Unidos. É neste espaço que o dedicado estudante Vaughn Dunlap se torna-se um ativista político do campus, em paralelo ao seu primo, jovem que se interessa apenas em ingressar na fraternidade de cunho popular da faculdade. Entre uma piada e outra, a trama flerta com preconceitos sociais, opressão, jogos de poder e outros temas afins, num ensaio para o explosivo Faça a Coisa Certa, responsável por colocar Spike Lee de vez no mapa dos interesses cinematográficos estadunidenses. Lançada em 1989, a produção retratou as relações maniqueístas entre latinos, asiáticos, negros e outros grupos sociais marginalizados pela política estadunidense.

O cineasta, cansado das representações pífias de Hollywood, uma poderosa máquina de reprodução de estereótipos, resolveu investir nas temáticas raciais, sem deixar de lado o apuro estético que faz parte da linguagem cinematográfica. A música, em seus filmes, sempre ocupou um lugar de protagonismo, não como mero acompanhamento das imagens, mas como elemento que faz parte de seu discurso militante. Mais e Melhores Blues foi o filme seguinte, chocante não do ponto de vista da polêmica, mas por conta da suavidade no tratamento dos temas. O público, como sempre viciado, queria que o artista se mantivesse exclusivamente no campo da polêmica, por isso, não compreendeu muito bem o mergulho nas reflexões musicais da trama. Importante ressaltar que Mais e Melhores Blues não é “incendiário” como Faça a Coisa Certa, mas trabalha com diversas questões raciais em seu tecido narrativo.

Spike Lee em perspectiva: parcerias com Denzel Washigton em Mais e Melhores Blues e Malcolm x

O posicionamento crítico mais contundente retornou em Febre na Selva, produção que antecipa toda a polêmica em torno da cinebiografia de Malcolm X, interpretada por Denzel Washington. No primeiro caso, o cineasta aborda os pesados conflitos entre um casal interracial que atravessa um verdadeiro calvário diante dos preconceitos sociais e de suas próprias contradições. Plano de carreira e salário para pessoas negras, tratadas de maneira diferenciada em relação aos brancos que trabalham e circulam no mesmo espaço fazem parte da agenda ativista do filme, realização que antecedeu o épico Malcolm X, produção que radiografa a trajetória do ativista contemporâneo à Martin Luther King Jr., mas que era dono de uma retórica mais incisiva e extremista. O filme acompanha a sua trajetória da juventude ao amadurecimento, com foco nas questões que formularam a sua identidade ao longo de décadas estruturadas por contextos sociais sufocantes.

Entre 1995 e 1996, Spike Lee produziu bastante coisa, mas são materiais pouco conhecidos em território brasileiro. Garota 6 retrata uma jovem com aspirações artísticas, interessada em adentrar o fabuloso mundo do cinema. Praticamente engolida por Nova Iorque, a jovem é desafiada diariamente e depois de tentar várias vezes, não consegue o emprego desejado, mas uma vaga para trabalhar como atendente de um serviço de sexo por telefone. O que ela não esperava era estabelecer uma relação mais intima com um dos clientes, algo que desagua nas caudalosas correntes da confusão. O filme também é conhecido como a produção de Spike Lee que traz uma breve participação da polêmica Madonna.

Spike Lee em perspectiva: cenas de Todos a Bordo e da releitura dos irmãos Lumière

Ainda neste período, houve a inserção em dois projetos de relevância para a sua carreira: Todos a Bordo e Lumière e Companhia. O primeiro é um relato ficcional sobre um grupo de homens que troca experiências por meio de debates num ônibus que segue rumo ao marcante evento contra o racismo, intitulado Marcha de Um Milhão de Homens em Washington. Na linha road-movie, Spike Lee deflagra diversas questões raciais, de maneira mais amena que as produções anteriores, o que acabou por causar estranhamento diante dos espectadores que buscavam algo mais incendiário. Na antologia sobre a dupla de irmãos que conforme os registros históricos, foram um dos primeiros marcos do cinema, Spike Lee teve o desafio de produzir um curta que seguisse as regras estabelecidas pelo projeto: utilizar no máximo três tomadas, atingir duração de até 52 segundos e produzir sem a possibilidade de som sincronizado. A ideia era criar uma releitura dos irmãos Lumière por meio do uso do cinematógrafo, as bases da captação de imagens que no contemporâneo, evoluiu vertiginosamente.

Além das realizações ficcionais, Spike Lee também pavimentou um caminho respeitável no campo dos documentários. 4 Little Girls dialoga de maneira emocionante com o bombardeio da Igreja de Birmingham em 1963, um ato racista que ceifou a vida de quatro jovens negras que frequentavam o espaço. Ao longo dos 255 minutos de Quando os Diques Rompem, o cineasta apresenta uma narrativa dividida em quatro atos para que nós, espectadores, contemplemos as críticas socioeconômicas, as celeumas do partidarismo político e a devastadora passagem do Furacão Katrina em New Orleans. Outro documentário de destaque é Jim Brown All American, lançado em 2002, produção que investiga o passado e os projetos futuros do membro da NFL, com destaque para sua carreira atlética e postura ativista.

Spike Lee em perspectiva:

No desenvolvimento de Elas Me Odeiam, Mas Me Querem, o sarcasmo mais uma vez é o ponto nevrálgico da trajetória do protagonista. Jackie (Anthony Mackie) é um executivo do ramo farmacêutico que é demitido depois que denuncia situações escusas em seu ambiente de trabalho. Dentro de sua condição estressante, ele ainda precisa lidar com a sua antiga namorada que deseja o seu esperma para a concepção de um filho com a namorada lésbica. Aparentemente, a trama parece confusa, ou absurda. E, de fato, é. Lee dialoga com as questões raciais com ironia, aplica algumas doses de nonsense e transforma a vida do protagonista num caos absoluto, tal como o cotidiano das pessoas negras no bojo da pós-modernidade.

Com apoio da UNICEF, Crianças Invisíveis teve como proposta a junção de várias histórias individuais, mas que dialogavam com uma temática maior: o abandono de crianças em diversos pontos do planeta, todas em situação de miséria social. O trecho de Spike Lee trata de uma menina que descobre ter nascido HIV positiva. Fruto de um lar desequilibrado, haja vista as drogas pesadas utilizadas pelos pais, a personagem precisa lidar com o preconceito social e outras situações conflitantes, numa trajetória de perda da infância muito mais cedo do que o esperado. Alguns anos depois, em O Milagre de Sant’Anna, o diretor comandou outro filme sobre uma criança em apuros, mas desta vez, no bojo da Segunda Grande Guerra Mundial.

Spike Lee em perspectiva: frames de O Plano Perfeito e O Milagre em Sant’Anna

Na trama, quatro soldados caem numa armadilha preparadas por nazistas. Um deles acaba se separando quando decide salvar a vida de uma criança perdida. Assim, baseado no romance homônimo de James McBride, o filme flerta com diversos tópicos dos relacionamentos humanos, além de tratar da segregação racial que existia entre negros e brancos nas tropas militares. Com enredo baseado no Massacre de Sant’Anna, ocorrido em 12 de agosto de 1944, a produção aborda com “fúria contida”, o contexto social, político e econômico que move um conflito bélico, sem deixar de radiografar os absurdos de situações como o massacre em questão, evento que ceifou 560 pessoas, em sua maioria, mulheres, crianças e idosos.

Mesmo quando sai da temática exclusivamente racial, coincidência ou não, Spike Lee promove o espetáculo da ironia. Ele jurou não saber que o avô de George W. Bush tinha sido diretor de uma empresa financiada por colaboradores do regime de Hitler. Em O Plano Perfeito, um dos personagens possui um passado escuso, cheio de segredos pesadíssimos O público logo fez a associação, mas o cineasta alegou que sequer conhecia essa história. No entanto, não deixou de observar: “se houve associação ao clã Bush, ótimo”. Na trama, assaltantes trajados com uniformes de pintor invadem um banco movimentado e fazem diversos reféns. A polícia chega, não consegue conter a equipe preparada e as coisas mudam de rumo quando uma enigmática jogadora de pôquer pede ao líder dos criminosos um momento para diálogo.

Spike Lee em perspectiva: entre Verão em Red Hook e Oldyboy – Dias de Vingança

No desenvolvimento de Verão em Red Hook, acompanhamos o olhar de um jovem para o microcosmo do seu avô, o complexo habitacional Red Hook, em Atlanta, espécie de versão teatral e mais organizada do espaço cênico caótico de Faça a Coisa Certa. Com sua breve experiência como membro da classe média, o local onde passará o verão é um território exótico, com pessoas que o observam como se ele fosse um alienígena. O seu olhar também é exterior, pois o radicalismo religioso de seu avô e os hábitos culturais dos jovens de mesma faixa etária que a sua são extremos que entram em contato, numa mudança para todos os envolvidos. Com participação importante no filme, Spike Lee é o Sr. Mookie, elo dramático entre Flick (Jules Brown) e Enoch (Clarke Peters), neto e avô, inseridos no contexto de Faça a Coisa Certa.

Em Oldboy – Dias de Vingança, Spike Lee colecionou mais uma legião de haters. Muita gente ficou incomodada por causa da falta de sutileza e do esquema de inteligência do filme ponto de partida, a produção sul-coreana de Park-Chan Wook. Há considerações sobre as influências dos produtores dos estúdios, mas uma coisa é certa: na refilmagem, o moralismo comum ao cinema estadunidense se estabelece fortemente. É, mais uma vez, a lógica do “crime e castigo” como estratégia narrativa para agradar ao máximo de pessoas possíveis. Sangrento e com atmosfera pesada, Oldboy – Dias de Vingança é a história sobre um homem que passa duas décadas aprisionado, parte de um plano maléfico que envolve uma “série de absurdos”. Tal como a noiva vingativa de Tarantino, o personagem da releitura de Spike Lee segue um trajeto de ódio, acompanhado pela expressão popular “com sangue nos olhos”.

Spike Lee e o protagonismo feminino polêmico em Chi-raq

Depois da experiência com a adaptação coreana para o contexto estadunidense, Spike Lee mergulhou na trama de Chi-raq, filme que tal como a maioria de suas produções, adentrou um fértil terreno adubado por muitas polêmicas. Inspirada na peça teatral Lisistrata, de Aristófanes, a história retrata um grupo de mulheres que toma uma decisão arriscada: enquanto os homens não desistirem de suas armas, haverá greve de sexo sem interrupções. Obviamente, os homens exalam as suas masculinidades tóxicas em repúdio ao ato feminino, pois não pensam em abandonar a ideia assim tão facilmente. No contexto, Chicago é um local de manifestação constante da violência urbana e o ponto máximo para tal atitude feminina é a morte de uma criança inocente após ser atingida por uma bala perdida. As feministas, como já era de se esperar, não gostaram da presença feminina em tom de objetificação, afinal, elas só conseguem protestar politicamente por meio de seus corpos?

Os figurinos apresentam as mulheres sempre adornadas por correntes, algo que também causou impacto, mesmo que Spike Lee não tenha intencionado abordá-las como personagens acorrentadas. Talvez tenha usado da ironia, recurso de linguagem sempre presente em seus discursos jocosos. Mas, no contexto que nos encontramos, era de má interpretação da ironia e da inflamação dos discursos em redes sociais e demais espaços de manifestação da opinião humana, colocar-se à crítica alheia é sempre um risco. Spike Lee, sem preocupações, gosta de correr por tais trilhas perigosas, afinal, para quem está no terreno da arte, complicado agradar em tom de unanimidade, não é mesmo?

Spike Lee em perspectiva: frames e bastidores de Infiltrado na Klan

Infiltrado na Klan foi o seu maior momento cinematográfico no bojo das produções mais recentes. Talvez um dos picos mais altos alcançados depois de Faça a Coisa Certa e Malcolm X. Ao longo dos 135 minutos do filme, um detetive negro combate cotidianamente o preconceito em seu posto de trabalho como policial, até que se envolve numa investigação sobre a presença de um movimento da Klu Klux Klan em plena década de 1970, era posterior aos impactos dos Movimentos pelos Direitos Civis. Com referências aos maiores ícones do Movimento Negro, dentre eles, Angela Davis, Martin Luther King Jr., os membros dos Panteras Negras, e, obviamente, ao militante Malcolm X, Spike Lee acerta em cheio com os seus diálogos afiados, estética apurada, trilha sonora imersiva e discurso crítico impiedoso.

As mulheres, finalmente, ganharam um espaço menos estereotipado em sua cinematografia, mesmo que ainda estejam em posições coadjuvantes. É um avanço no contexto de produção do cineasta que ainda não se aposentou e promete continuar no ramo da realização cinematográfica, constantemente preocupado com as celeumas das questões raciais que cotidianamente, nos surpreende. Dentre os próximos projetos, Spike Lee pretende realizar uma versão hip-hop do clássico Romeu e Julieta, de William Shakespeare. É aguardar para conferir e torcer para que o cineasta tenha vida longa e força para continuar promovendo revoluções cinematográficas com seus filmes que atacam piedosamente os imperiosos racistas da sociedade civil e os engravatados que assumem o poder e gerenciam as nossas nações.

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