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Entenda Melhor | O Impacto da Trilha Sonora Cinematográfica de Lost

por Davi Lima
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  • Leia, aqui, as críticas de todo nosso material do Universo Lost.

A famosa série Lost, televisionada pelo canal ABC de 2004 até 2010, é conhecida pela perseverança de discussões no auge da democratização virtual, pelo índice de audiência elevado e intentos “vanguardistas” dentro do mundo da TV americana. Dentro desses intentos, há o prosseguimento do olhar cinematográfico para o audiovisual televisivo que a série Twin Peaks havia levantado com o diretor e showrunner David Lynch e seu parceiro Mark Frost dentro do mesmo cenário, o canal ABC, nos anos 90, que junto ao trato da imagem para transpor o mistério e o drama do roteiro da TV aberta, a trilha sonora não apenas acompanhava e submetia os tons narrativos como orquestrava emoções que se popularizaram em concertos musicais fora da TV.

Se Angelo Badalamenti, compositor da trilha sonora de Twin Peaks, alcançou o prêmio do Grammy em 1990 pelo tema da série nomeado pela performance de sua trilha sonora para a TV aberta, mostrava como na televisão a composição sonora original poderia alcançar teores cinematográficos de emoção e engajamento público. Lost segue o mesmo caminho com o compositor e orquestrante Michael Giacchino, tornando qualquer teor de drama, suspense, aventura e de caracterização de personagens, incluindo a imagem da ilha, entre temas e motifs, não apenas algo preciso para a continuidade de episódios e temporadas, como também extrapolando roteiros televisivos e energizando season finales com refinamento e variedade de uma trilha autoral, como no cinema e em concertos musicais poderiam ser apreciadas.
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Um breve panorama histórico sobre trilhas sonoras no audiovisual.

Dentro da história do cinema o som nunca foi ausente, mesmo na criação nomeadamente instituída do audiovisual popular pelos irmãos Lumiére no final do século XIX, ou no cinema mudo, havia sempre a orquestração sonora de sons ambientes dentro dos cinemas, ou a composição de trilhas sonoras especialmente para filmes, como o famoso diretor W. Griffith encomendou para o polêmico filme Nascimento de Uma Nação. Além disso, a ausência de som dentro do audiovisual é um som narrativo. Essas perspectivas da história musical foram trazidas para a TV, em que desde 1950 nos EUA singles e temas televisivos demarcavam a identidade de shows e séries com introduções musicais.

As aberturas de programas televisivos eram a vinheta para chamar o público e criavam uma conexão íntima com quem assistia em sua casa. Além disso, a trilha sonora na TV servia muito para identificação dos gêneros de séries, seja novela, comédia (sitcom) ou aventura e faroeste, em que não havia muito diferenciação estilística que valesse tanto a pena ouvir fora do contexto serial, tendo em vista que as músicas eram talhadas para preservar o público confortável com tons muito parecidos. O objetivo era compor tecnicamente o material audiovisual televisivo, sem desnivelar os diálogos e os cortes de cenas, pois eram os detalhes mais importantes para o público acompanhar a história. Não havia desafios sonoros em grande escala, até mesmo pelo orçamento que uma orquestra demanda para que estúdios dividissem seus espaços nos sets de filmagem.

No entanto, a mudança progressiva da TV americana se aproximar de Hollywood no final dos anos 50 refletia tanto a queda do fator da transmissão ao vivo e o modelo teatral das emissoras programarem suas grades, dando mais voz às histórias de gênero, ficções. Então o aspecto monotonal dentro dos episódios ou ausência de trilha começou a ser questionada por temas mais desafiadores de algumas séries que contratavam mestres musicais, de orquestra, conhecidos de composições complexas como John Williams e Bernard Herrmann. Já no final da década de 60, The Twilight Zone lança um tema misterioso, com notas orquestradas ao ponto de propor não mais uma vinheta emblemática, mas uma proposta narrativa sobre o que a série antológica poderia trazer. Jerry Goldsmith também contribuiu para a série, e anos antes, em 1965, John Williams trazia o tema empolgante e recheado de trompetes para Lost in Space, mais uma trilha sonora dando o tom à série, sem artifícios colantes na cabeça, sem ser um jingle ou uma vinheta, havia uma dramaticidade que acompanhava também os créditos ao final dos episódios.

A abertura de The Twilight Zone.

Embora durante os episódios não houvesse uma presença forte da trilha, a diferenciação estilística de dois autores – que posteriormente comporiam trilhas de Taxi Driver e Star Wars – traziam o caráter cinematográfico para a TV pelo som. Muitas séries de sucesso como Hill Street Blues (1981) e Dallas (1978) sempre foram elogiadas pelos seus cliffhangers e dramas contínuos elaborados, algo que o cinema já experimentava, mas só com Twin Peaks e especialmente com Lost, uma série amplamente mainstream e popularizada pela internet, que todos os elogios narrativos agora poderiam ser integrados e premiados com o som. O tema agora é dos personagens, e a falta de trilha dá lugar a prestar mais atenção aos diálogos, em que a inversão, o mudo, assim como havia no cinema, também começa a ter mais efeito na imagem televisiva. Mas fora os aspectos orquestrais e de repertório mais rico e extenso para durações de séries longas, as quais tinham mais orçamento, o sucesso e a cinematografia qualitativa de uma trilha, especialmente a de Lost, pertence muito à capacidade heterogênea de persistência de composições de um autor para muitas situações e muitos personagens com dramas diferenciados. Esse foi o trabalho árduo de Michael Giacchino.
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Conhecendo o compositor.

O famoso compositor de trilhas sonoras para filmes, ganhador de Grammys pela música de Os Incríveis em 2005, foi quem deu voz cinematográfica a Lost. Sua carreira começou a ter mais evidência por indicação de Steven Spielberg, muito conhecido pela colaboração em filmes com o  já citado John Williams, para compor a música de um jogo de Jurassic Park, e após isso foi chamado para o mundo dos games com Medal of Honor e Call of Duty. O criador da série Lost, J.J. Abrams, influenciado pela visão cinematográfica de Spielberg que começou na TV na década de 70, trouxe Giacchino para compor trilha de Alias, série que ele produzia como showrunner antes de Lost. Giacchino descreve em entrevistas que J. J. fazia episódios pilotos e enxergava séries televisivas como produções cinematográficas. Assim, o compositor que estudou cinema na faculdade e se especializou na Julliard em composição musical trouxe não apenas a orquestra para os jogos de videogame, como também para as séries. Giacchino comenta num vídeo podcast produzido pelo canal ABC como era raro orquestras para séries de TV pelo orçamento limitado, por isso o exemplo de Twin Peaks na década de 90 com a trilha de Angelo chamou tanta atenção.

Assim, Michael trouxe com Lost ao menos três aspectos que tornavam sua trilha cinematográfica, complexa e impactante. O primeiro é sua capacidade como estudante de cinema de compreender storytelling, tornando suas trilhas não apenas compostas nas cenas, como ingressantes de uma ideia que as eleva, aumentando a extensão de discos musicais além de temas, créditos. É realmente trabalhar episódio por episódio, cena a cena.  O segundo aspecto é sua formação orquestral, inspirado demais por trilhas de Maurice Jarre, como a de Lawrence da Arábia que Giacchino cita sempre em entrevistas. Se John Williams e Bernard Herrmann haviam trazido a orquestra refinada com themes e de influências de músicas clássicas bem fortes, Giacchino continua esse progresso ao extrapolar melodicamente o sistema sonoro na televisão, em que sua característica de trabalhar com vários instrumentos em harmonia valorizava tanto esse conhecimento sensível em possibilidade do espectador captar violoncelos, harpa e percussão em pedaço de avião, quanto da abrangência emocional da série, com themes para suspense, revelações, personagens (leitmotifs), além da mistura de composições cruzadas de motif para memória afetiva ao longo do percurso da série, como indicação dramática e conclusões de respostas para os mistérios.

Entrevista com Michael Giacchino citando Lawrence da Árabia.

Seria aí o valor da partitura, a leitura de Giacchino tem para si mesmo, como disse em uma entrevista para o canal Film.Music.Media no quadro All Acess, que busca imaginar o que tal cena representa para ele, não o que a cena precisa.  E o terceiro aspecto seria a parceria de Giacchino com cineastas como J. J. Abrams, Matt Reeves (Planeta dos Macacos: A Guerra e The Batman) e Brad Bird (Missão Impossível 4 e Os Incríveis 2). Essa colaboração com diretores é o que ao longo dos 6 anos de Lost foi fomentando sua orquestra, e o que fez com que os showrunners Damon Lindelof e Carlton Cuse fundamentassem cenas com base no apoio musical de Giacchino. O compositor descreve a sua trilha da série como uma “contínua ópera estranha e psicótica” na palestra que junto de J.J Abrams deu para a Hammer Museum em 2011, em que vários episódios, como o exemplo de Maternity Leave, 15º episódio da segunda temporada, Michael traz tons de suspense e terror como ele gosta, pensando na trilha e edição de cenas que causa sustos e intensidade no episódio. Essa liberdade, até mesmo de não ler os roteiros de Lost, apenas compondo com base nas cenas, segundo ele no podcast já citado, é com base na confiança dos showrunners numa espécie de colaboração muito persistente no cinema que pouco se via na TV americana antes de 2004.

Podcast entrevista com Michael Giacchino sobre Lost.
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Uma produção televisiva fora dos padrões.

Como foi reportado, a série da TV aberta tomou proporções de grandes números de audiência, com muitas teorias e fãs. Dentro desse contexto midiático televisivo, a trilha sonora de Lost alcançou o patamar de ter seus próprios concertos musicais em Los Angeles, Dublin, assim como grandes trilhas que conseguem compor obras na TV ou no cinema, mas por si só transpassam a barreira subserviente na qual a composição sonora é formada. Embora muito se deva à qualidade orquestral de Michael Giacchino e aos trombones emblemáticos em cada intervalo na TV, é preciso compreender tanto o sistema privilegiado e que Giacchino gravou sua trilha em que pode sustentar. A dimensão da telinha para a grande tela do cinema reserva também produções distintas e padrões para um funcionamento, e no caso de Lost, a criatividade artística dos showrunners e toda a estrutura narrativa da série proporcionaram que Giacchino tivesse liberdade para criar as histórias musicais que deram vida à ilha e aos personagens da série.

O orçamento já foi citado como algo limitador para pagar orquestras para compor trilhas de série, algo que o sucesso de Alias, série de que Giacchino participava também com J. J. Abrams, deu confiança aos produtores de investirem numa série que grava em locação. Mas o que com certeza contribuiu fortemente para que as trilhas fossem mais relevantes foram os roteiros que clamavam pela trilha sonora em seus rascunhos, como já disse Lindelof num concerto, e a escrita que fugia das formas teleplay, feita para o audiovisual televisivo, dando mais valor à criação de cenas dos diretores na ilha do Havaí, e a criatividade dos showrunners em desenvolver uma série contínua com tramas focadas nos personagens como ponte misteriosa e dramática para os outros episódios. Essa estrutura narrativa mais cinematográfica junto ao apoio incondicional dos showrunners a Michael Giacchino para firmar dramaticamente cenas da série, uma harmonia estilística, sem corte por parte dos produtores, diferenciava todo o aspecto de produção da trilha. Mesmo que Giacchino compondo para servir à história da série, agora a trilha que antes guiava o público empurrava a série para ele.

Live Orquestra de Lost – Los Angeles

A noção que se pode ter é que a trilha sonora de Lost era cinematográfica também porque essa série não comprimida, de TV aberta, transmitida pela ABC, tinha uma visão inicial de se estruturar com ares específicos da arte audiovisual. Nos discos lançados após cada temporada lançada na TV, as notas dos showrunners enfatizavam como Giacchino era o objeto especial para o sucesso emocional da história. Quando o corte do piloto de Lost foi aprovado não havia trilha sonora original, e a música temporária eram rastejos de inspiração no já citado Bernard Herrmann, Hans Zimmer e Ennio Morricone feito por outros compositores. Segundo essa nota no disco da primeira temporada, Giacchino destacou tudo e tomou a responsabilidade de fazer uma nova trilha, que segundo eles deu a voz aos personagens segundo as cenas, não mais uma ideia impressa, mas viva para cada personagem em seus themes e leitmotifs.

O produtor executivo das trilhas, Robert Townson, cita numa nota sobre o disco da quarta temporada como Lost conseguia transportar o público à ilha misteriosa da série, a exemplo especial da terceira temporada em que o theme Mistery Island é colocado mais alto, o que poderia ser reflexo da visita do compositor à ilha antes de produzir o terceiro disco, algo que ele escreve nas notas da produção da trilha da segunda temporada. Essa imersão também não pode ser reduzida ao diferencial de Giacchino ou da produção da série, pois pensando na operística trilha de Lost e os temas sci-fi, aventura, drama, suspense e romance que Lost trata, o alcance cinematográfico da trilha precisava se mostrar à altura na sua forma a partir de gêneros tão diversos que Lindelof e Carlton trabalharam na mitologia religiosa de Lost.

Mistery Island – Cena do episódio 3×16 – One of Us
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Arranjo musical e narrativa na trilha sonora.

Dentro do mundo da orquestra e partitura, alguns termos como theme, motif e leitmotif são muito recorrentes. Dentro da cultura pop, o filme Star Wars foi um ponto insurgente para se popularizar tais nomes das academias de música, e John Williams com sua trilha fez o público identificar os temas (themes) de Obi-wan, que depois seriam ressignificados como Tema da Força da mitologia da Saga, associar o tema do Império como um leitmotif, já que pela imagem soava como uma música também para o Darth Vader, tornando uma ideia musical perseverante para identificar a maleficência de Anakin Skywalker. Enquanto os motif modificaram um tema da Princesa Leia para um tom romântico com Han Solo.

Essa três categorias de ideias musicais que se diluem narrativamente na imagem, exatamente como o compositor Michael Giacchino vai se incluir fortemente em como apreciar a série em experiência musical, com os diversos leitmotif de personagens que acabam por se tornar temas de aventura e suspense, e vários motif ao longo de toda a série, reforçando a memória dramática carregada ao longo dos episódios e misturando temas, leitmotifs e motifs para alcançar apoteoses cinematográficas que a série tem de potencial. Com a série sendo gravada em locação, a trilha junto da fotografia captando a ilha torna o ambiente transformado duplamente em ambiguidade, pela câmera e pela edição de som. Na primeira temporada, a trilha nomeada Hollywood and Vines traz o Hiking Theme, ou “Tema da Caminhada” ao som de violoncelos. Dentro da série, existe um espírito de aventura, seja para desvendar a ilha com o personagem John Locke, uma espécie de Indiana Jones de Lost, seja para criar formas de sair dela. Giacchino utiliza motifs para criar climas de tensão antes das caminhadas começarem, embora o tema seja reconhecido.

Hollywood and Vines – Hiking Theme

Na terceira temporada, no último episódio conhecido como Through the Looking Glass, a caminhada por esperança de realmente sair da ilha dá lugar a tons perigosos pelo som de um piano do “Tema da Ilha” fundido na trilha sonora. Narrativamente, mesmo quem não assiste à série compreende pelo contexto produtivo (terceira temporada, último episódio) o que Giacchino implementa, criando tensão e insegurança na base da emoção, mesmo com a lógica racional que de algo daria errado na caminhada dos heróis. Outro fato importante é que tal tema não toma heróis para elevar caminhadas, em que na sexta temporada o grande vilão caminha, fundamentando uma das ideias que Giacchino também comenta em como a série é sobre seres humanos que podem melhorar, num aspecto cinzento em que a ilha coloca os personagens. Não à toa que o suspense da série é épico (não passivo de não notar), surgindo com um motif pelo som de uma nota sustentado por violoncelo, bem representada no final da segunda temporada, Live Together, Die Alone com Jack e Michael tendo um momento ambíguo de tensão e descoberta. Mas sem dúvida até quem não conhece a série já ouviu o Tema da Ilha, muito explícito e de teores mágicos pelo uso do instrumento flapamba, pela performace de Emil Richards, principalmente na última cena do grande episódio cinematográfico de Lost chamado Exodus.

Lost – Mistery Theme

Outro gênero da série que na verdade a categoriza como um todo é o drama. No episódio White Rabbit, o quinto da primeira temporada, um motif que toma conta de uma cena com uma boneca na água vai se repetindo ao longo da série, o som do piano de Mark Gasbarro até não oficialmente pode ser considerado um Tema quase que representativo para qualquer espectador de Lost. O episódio em que o som do piano aparece trata sobre o tema da morte do pai do protagonista Jack, e no ressoar novamente em mais uma morte na história da série a peça Life and Death, encontrada no disco de trilha sonora da primeira temporada, vai tomando como ideal o simbolismo que a série representa. No já citado Through the Looking Glass, episódio final da terceira temporada, a vida e a morte são temas em que a composição vai se especificando, misturando-se com leitmotifs de personagens, ao ponto de Giacchino na mistura ao longo das temporadas encontrar sua ópera de vida e morte na trilha The Incident na quinta temporada, e com a trilha Moving On de finalização como auge emocional da série em 2010.

Looking Glass Half Full – 3×23 –Through the Looking Glass – Lost

Algo a que é preciso atentar é a ficção científica presente na série muito misturada com aspectos religiosos de destino e escolha, que poucos identificam na trilha sonora de Michael Giacchino o sci-fi detalhado, porque ele está muito presente no acompanhar de um personagem cômico, mas como a trilha sempre apontava se tornaria muito importante. O personagem em questão se chama Hurley, interpretado pelo ator Jorge Garcia, em que no episódio Tricia Tanaka is Dead – décimo episódio da terceira temporada – sons semelhantes a de Arquivo X podem ser captados na peça musical Fetch Your Arm. Giacchino diz que era o leitmotif com que ele mais se divertia, em que ia misturando harpa, flapamba, além do piano, que vai humorizando Hurley, porém tornando-o importante. Na primeira temporada, a apresentação de Hurley entrando no avião tem o som semelhante a uma lambada com flauta, sempre colocando-o em evidência desde o começo da série. Nos “pum pum pum” a trilha de Hurley junto a ele vai salvando personagens com sua van, colocando em dúvida a realidade da ilha quanto a sorte e azar, e principalmente relacionando a números que se misturam com o tema Mistery Island.

Fetch Your Arm – 3×10 – Tricia Tanaka is Dead – Lost

Ele se torna tão importante e tão querido por Giacchino que o compositor faz uma trilha reversa para o personagem no artifício de flashsideways na última temporada da série. E juntamente com a definição sonora de Hurley na terceira temporada, Giacchino com ainda mais liberdade para experimentar os temas, motifs e leitmotifs foi criando mais material na terceira parte da série, sendo o segundo maior disco, dividido em duas partes, e delineando os personagens Juliet, Ben Linus e Desmond, famoso pelo episódio The Constant da quarta temporada, quando os elementos de viagem no tempo foram dramatizados pela trilha, e a composição para esse episódio foi indicada ao Emmy em 2008.  Mas além de aventura, suspense e sci-fi, Lost com sua heterogeneidade de temáticas nos personagens e decomposição sonora cinematográfica acaba também por trazer a ação, centrada em uma personagem.

Na história da personagem Kate, várias vezes seus flashbacks continham aspectos narrativos de filmes de ação policial e investigação, em vista da personagem ser uma fora da lei. Assim, no famoso episódio da personagem na primeira temporada, Born to Run, Giacchino emula a peça Temptation do mais de uma vez citado Bernard Herrmann, da trilha de Psicose, filme de Alfred Hitchcock, pelo ambiente do hotel, uso de peruca loira e o banho que Kate se contextualiza no começo do episódio. Seu letimotif modificado para a ação pode ser ouvido mais intensamente na quarta temporada, quarto episódio na trilha Backgammon Gambit, numa cena de fuga da personagem com outro chamado Miles. Esse é seu leitmotif, sempre confrontador pois é como a personagem é tratada em todo os episódios, confrontando especialmente o protagonista Jack. No entanto, a transformação da personagem vai tornando sua trilha romântica, como na peça musical Romancing the Cage no sexto episódio da terceira temporada, tornando-a mais familiar, tanto para o espectador quanto no sentido de ajuntamento familiar entre os personagens, na base da confiança com ela.

Romancing the Cage – 3×6 – I Do – Lost

Por isso a trilha de Lost é tão cinematográfica para os parâmetros da TV, em que a musicalidade é muito alinhada com a variedade de gêneros e alcances dramáticos que os episódios podem tomar ao longo das seis temporadas. É com motifs de revelação de dois acordes que Lost faz  a abertura do plano da tela televisiva ser mais cinematográfico com um movimento de câmera chamado dolly, que se afasta dos personagens para mostrá-los olhando para o horizonte, a revelação no plano seguinte, ou com a Trilha da Saída, ouvida primeira em Parting Worlds na primeira temporada em que Michael Giacchino vai tornando mais encantadora e dramática a cada temporada que aparece, na segunda, na terceira e especialmente na finalização da peça orquestral já citada, Moving On, que encerra a série espiritualmente.

Moving On – Lost
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A trilha sonora “apagada” pelo final da série?

Apesar de toda essa composição árdua e específica demais para uma série de TV aberta, o final que muito se contesta desde a época do lançamento acabou por tirar Lost de uma representatividade de grandes trilhas sonoras que impactaram o mundo das séries americanas. Porém, pelo alto índice de audiência a série trouxe sensibilidade na transmissão de TV aberta para que séries posteriores tivessem o mesmo teor criativo em suas trilhas sonoras. Mesmo na época que a série 24 fosse reconhecida no Emmy por suas trilhas, elas permearam muito por uma variação do Main Title da série, seguindo uma certa fórmula serializada que consistia também com a proposta da história de Jack Bauer, e sem dúvida o trabalho de Sean Callery, que anos depois faria o Tema de Jessica Jones para a Netflix, sobressaiu em qualidade. Lost trouxe dimensões do cinema, seja em produção de roteiro, direção e significativamente na sua trilha sonora, para a ABC, assim como Twin Peaks havia trazido, mas com o diferencial da internet.

Pensando em impactos mais factuais, excetuando aí a terceira temporada de Twin Peaks que reviveu a trilha sonora, Michael Giacchino provou para os showrunners e supervisores de som de séries da TV aberta que era possível desafiar o público com a música, como outrora Temas e introduções já faziam. Ainda assim, o legado cinematográfico da orquestração sinfônica de Lost em parte parece uma ilha no tempo, tendo em vista que streamings e séries comprimidas normalizaram a composição sonora original refinada, séries como Fargo, Sherlock e a própria The Leftovers do showrunner Lindelof se acomodam em estruturas narrativas de antologia, telefilmes ou HBO. Muito do monotonal serializado permanece na composição sonora que sustenta a atenção do espectador, não o engata em imersão.

Por fim, existem três clichês bem problemáticos quando se fala de trilhas sonoras do cinema: 1. A melhor trilha sonora de cinema é aquela que não é notada; 2. As trilhas sonoras dos filmes não funcionam fora deles; 3. Uma boa trilha sonora pode amenizar “defeitos” de um filme, e uma trilha sonora “defeituosa” pode desmoronar a qualidade de um filme. Como série, Lost desbanca esses clichês, Michael Giacchino compôs uma trilha muito presente para ser ignorada na narrativa, a trilha é revivida fora do contexto televisivo em concertos, e se a produção da série não fundasse a confiança no compositor, ela não alcançaria seu poder dramático e emotivo.

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