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Entenda Melhor | Plot Twist e Outras Estratégias Narrativas

por Leonardo Campos
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Apesar de não ser um recurso propriamente cinematográfico, tampouco oriundo da contemporaneidade[1], as reviravoltas nos roteiros hollywoodianos dos anos 1990[2] reacenderam de alguma maneira, os interesses por tal estratégia no bojo das narrativas, como uma forma de fugir dos padrões mais industrializados e propor desfechos que possibilitassem aos espectadores uma imersão psicológica mais profunda e menos comum em suas interações com os filmes.

Como não se arrepiar com as revelações feitas pelos empregados para a personagem de Nicole Kidman em Os Outros, de Alejandro Amenábar? É possível um espectador cinéfilo ficar indiferente com as descobertas do personagem de Bruce Willis em O Sexto Sentido, de M. Night Shyamalan? Em Os Suspeitos, de Brian Singer, Kevin Spacey interpreta um homem maquiavélico que faz a plateia vibrar diante dos arremates finais da narrativa. David Fincher, em Clube da Luta, orquestra um dos finais mais sensacionais da época, tal como Christopher Nolan com a angustiante história desenvolvida em Amnésia.

Mestre dos desfechos trágicos, Nelson Rodrigues teve Gêmeas, um de seus contos da coletânea A Vida Como Ela É, adaptados para o cinema através da mescla de estética noir com os elementos mais bem sucedidos dos filmes de Alfred Hitchcock, com direito a uma reviravolta no final que hoje pode parecer comum, mas que já foi bastante surpreendente em outro momento histórico.

As reviravoltas surpreendentes em Os Suspeitos, Amnésia e Os Outros.

Por falar no mestre do suspense, temos também a famosa reviravolta narrativa na primeira metade de um famoso suspense que se passa num hotel na beira da estrada, trama que nos surpreende ao expor a morte da provável protagonista em pleno banho, numa das cenas mais emuladas/copiadas/homenageadas da história do cinema. Em Psicose, Marion Crane[3] desmonta os padrões narrativos tradicionais ao morrer e deixar o público à deriva, sem saber como a história continuaria, além de ter um desfecho que também traz uma reviravolta impactante.

Diante do exposto, nos meandros dos estudos dramatúrgicos e nas discussões empreendidas pelo campo da crítica de cinema, denominou-se intitular tal recurso narrativo como plot twist, isto é, uma mudança radical nos rumos esperados pelo que a trama havia proposto em seus primeiros momentos. Recurso presente em peças teatrais, séries de TV e obras literárias, o plot twist também encontrou ressonâncias no cinema.

Utilizado para minar as expectativas do público, o recurso geralmente é pensado para o desfecho de filmes, mas há muitas produções que quebram estas regras e o ajustam às vezes no meio do processo, mudando o formato de acordo com a necessidade do roteiro. Identidade, de James Mangold, foi o filme selecionado para uma análise mais detalhada no último tópico deste artigo, o que não impede que antes, façamos um passeio panorâmico pelas estratégias e possibilidades do plot twist em outras narrativas bastante famosas.

Arma de Tchekhov presente em Aracnofobia, o trem desgovernado em Batman Begins e a Power Loader em Aliens, O Resgate.

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1 – Panorama de estratégias narrativas

A implementação da surpresa é uma postura que requer conhecimento dos elementos que podem compor tal recurso narrativo. Antes do panorama de reviravoltas famosas, torna-se relevante delinear tais recursos responsáveis por tornar alguns desfechos de filmes e séries um exercício narrativo inteligente e diferencial[4]. Neste percurso, vamos perfazer um caminho que tratará da anagnórise (descoberta), dos flashbacks e dos flashfowards, da justiça poética, do narrador não confiável, da peripeteia, da solução deus ex machina, do red herring, do in media res (no meio das coisas), da narrativa não linear, da cronologia inversa e da Chekhov’s Gun.

Definido como o reconhecimento súbito do protagonista diante de algo que envolve a sua própria natureza/identidade, a anagnórise é um recurso muito utilizado na história da dramaturgia. Em Édipo Rei, tragédia de Sófocles, um rei descobre que matou o pai e desposou a sua mãe. As revelações levam todos ao desfecho repleto de situações desoladoras. Na epopeia Odisseia, de Homero, Ulisses revela o seu retorno para Ítaca em camadas, pois muitos acreditavam que o herói havia morrido na guerra de Troia.

As idas e vindas pelo tempo da narrativa podem estabelecer revelações que culminam nas reviravoltas em questão. O flashback e o flashfoward são dois recursos bastante comuns. No primeiro caso, temos a interrupção da sequencia cronológica para eventos ocorridos anteriormente, o que culmina na exposição de informações previamente desconhecidas que respondem a determinados tópicos da narrativa, possibilitando a compreensão dos conflitos apresentados. No segundo caso, a interrupção da sequência cronológica expõe eventos ocorridos no futuro, numa estratégia de mudança temporal que explica determinados acontecimentos do presente com base em ações ocorridas no futuro.

Reviravoltas em presente em Ilha do Medo, O Gabinete do Dr. Caligari e em Os Infiltrados: desfechos surpreendentes.

As reviravoltas geralmente são mais “poderosas” quando a narrativa segue uma linearidade (até mesmo de trás para frente), pois mergulha todos num jogo de substituição das expectativas e estabelecimento da “surpresa absoluta”, ou então, “desconfiada” ao passo que a narrativa avança cheia de mistérios. Mas há também outros formatos narrativos que permitem a utilização de um plot twist. No recurso In media res[5] (no meio das coisas, em latim), a história começa pelo meio e os conflitos são introduzidos por intermédio de várias técnicas. A cronologia inversa[6] possui a função de revelar o enredo em ordem inversa, isto é, a partir de um momento do final da história para retornar ao começo. Na narrativa não linear[7], temos o mecanismo narrativo que revela a trama e os conflitos dos personagens numa ordem não cronológica, o que pede do espectador o exercício da junção de pedaços para a composição e compreensão da história.

A peripeteia é uma mudança brusca nas características do protagonista, direcionando as suas ações para o bem ou para o mal, o que transforma subitamente a história. O narrador não confiável[8] é o responsável por distorcer o final e nos revelar que a história havia sido manipulada, nos fazendo modificar de ponto de vista e desconstruir todo o trajeto até então. Em algumas narrativas moralistas, temos a justiça poética, pois a virtude do personagem é recompensada e o vício é punido. Geralmente neste tipo de enredo o vilão cai nas armadilhas dos próprios defeitos. Há também o recurso milenar deus ex machina[9], uma solução inesperada, propositalmente artificial ou improvável, criada para resolver um problema narrativo aparentemente insuperável.

Muito comum na literatura e no teatro, o Chekhov’s Gun[10] (Arma de Tchekhov) é um recurso bastante interessante e muito utilizado em filmes e séries. É a apresentação de algo aparentemente passageiro, mas que vai ganhar relevância ao passo que a narrativa avança. O recurso não precisa estar atrelado diretamente a uma arma, mas a qualquer coisa que ganha uma função maior dentro da narrativa. Em Batman Begins, de Christopher Nolan, o trem construído pelo pai de Bruce Wayne (Christian Bale) transforma-se na “arma” que o antagonista utilizará para destruir Gotham City.

Reviravoltas igualmente fascinantes em Star Wars – Episódio V, Planeta dos Macacos (1968) e Jogos Mortais.

Em Aliens – O Resgate, de James Cameron, uma máquina intitulada Power Leader é utilizada para realizar um carregamento. Adiante, ganha importância ao ser um dos recursos utilizados pela personagem de Sigourney Weaver para defender-se de uma das criaturas na perseguição final. Na aventura Aracnofobia, os carpinteiros utilizam uma nail gun (arma de pregos) para construir uma adega na casa do protagonista. O recurso, por sua vez, ganha importância no desfecho, quando todos estão na disputa contra a infestação de aranhas na cidade interiorana.

Temos ainda o uso de red herrring, uma estratégia que trata da distração do espectador através de respostas imediatas, algo que posteriormente se mostra como informações sem a devida sustentação, o que promove a justaposição de situações como peças para a formação de um quebra-cabeça. Praticamente todos os filmes e séries com reviravoltas utilizam tal recurso em prol do desenvolvimento da narrativa.

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2 – O plot twist como exercício da inteligência

De acordo com os manuais de roteiro[11], a função do roteirista é criar uma ligação do público com o filme através de uma construção emocional eficaz, com personagens cativantes e situações que promovam conflitos no tecido narrativo afim de que a trama se desenvolva. A cena, espaço em potencial para a ação dos personagens, vai guiando o público e gerando as expectativas.

O Sexto Sentido, A Vila e Corpo Fechado. O plot twist em M. Night Shyamalan: muleta narrativa?

Quando o roteiro tem em seu conteúdo uma brecha entre o que se espera e os resultados oferecidos, o espectador depara-se com a tal situação surpresa. Cineastas como M. Night Shyamalan construíram as suas carreiras com base neste procedimento narrativo: jogar o espectador num poço de surpresas, aumentar gradativamente a curiosidade, mudar a visão da história e guiar a trama para uma direção inesperada.

Se for ao final, encerra a narrativa e abre espaço para o que Roberto Lyrio Duarte Guimarães[12], embasado nas considerações da Poética, de Aristóteles, chama de “cena obrigatória”, isto é, trecho emblemático que deixa as interpretações em aberto, o que nos ajuda na promoção de debates sobre o filme, mantendo a narrativa “viva” posterior ao momento de exibição. Se for próximo ao meio, serve para desencadear um feixe de novos conflitos que apontam diretrizes múltiplas para a trama a ser contada.

Em Ilha do Medo, de Martin Scorsese, Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) acha que é um agente que investiga os mistérios da clínica Shutter Island Ashecliffe, local para internação de pessoas com instabilidade mental.  Ele descobre, entretanto, que tudo não passa de imaginação, pois na verdade é um paciente da instituição, algo semelhante ao que ocorre em Os Outros. No desfecho, Grace (Nicole Kidman) descobre que já está morta. Num surto psicológico, ela matou os filhos e se se suicidou, pois seu marido havia ido para o combate e morrido em plena Segunda Guerra Mundial.

Fala-se muito do recurso na contemporaneidade, mas no expressionista O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wine, lançado em 1920, todo o conflito narrativo estava apenas na “cabeça” do protagonista Francis (Friedrich Feher), paciente de um manicômio. Os filmes da estética noir, predominante entre os anos 1940 e 1950 utilizaram bastante a reviravolta para o desfecho de suas tramas, mas foi Alfred Hitchcock um dos cineastas responsáveis pela popularização do recurso.

Os personagens envolvidos na redoma de mistérios no suspense Identidade: desfecho surpreendente e bem amarrado.

Em Os Suspeitos, de Bryan Singer, uma terrível explosão num cais envolve testemunhas que passam a depor e levantar dúvidas por parte dos espectadores. Descobrimos, mais adiante, que o paraplégico da narrativa na verdade não possui problema algum e que ele na verdade não é quem diz ser. Em Clube da Luta, o “Narrador” (Edward Norton) é um homem com uma vida levada na mediocridade. Com crises constantes de insônia, ele encontra o “seu lugar” em um grupo de autoajuda, pois ao testemunhar a miséria alheia, vê a possibilidade de se sentir melhor. Conhece Maria Singer (Helena Boham Carter) e em paralelo, estabelece amizade com Tyler Dunder (Brad Pitt). Quando tudo aparentemente está melhorando, ele descobre que o novo amigo na verdade é outra faceta de sua personalidade[13].

Em Amnésia, de Christopher Nolan, o protagonista Leonard Selby (Guy Pearce) é deixado à beira da morte numa loja destroçada por um assalto. A sua esposa não tem a mesma sorte, pois morre, o que o deixa traumatizado. Cada vez que ele adormece, a sua memória recente se apaga, o que dificulta o processo de compreensão das coisas à sua volta. Contada de trás para frente, a narrativa nos tira do conforto ao revelar que foi o próprio personagem que matou a esposa ao aplicar uma dose inadequada de insulina, parte do tratamento para diabetes.

O mesmo cineasta assinou outra grande reviravolta anos depois, em O Grande Truque, trama sobre a competição entre dois amigos que atuam como mágicos e tornam-se rivais ao passo que alcançam o sucesso. Robert (Hugh Jackman) e Alfred (Christian Bale) enfrentam-se num roteiro que mescla irmãos gêmeos e planos mirabolantes. No contexto da trama, uma máquina de produzir clones é o epicentro para o desenvolvimento das reviravoltas: para se livrar do rival, Alfred aparentemente mata Robert.

Quando todos achavam que o rival estava morto, descobrimos que na verdade, quem havia partido era apenas a sua “cópia”, pois ele teve acesso á máquina e providenciado o seu clone. Julgado, Alfred aparentemente morre executado após a sentença, mas na verdade ele tinha um irmão gêmeo, morto em seu lugar. No roteiro, Nolan desenvolve uma série de reviravoltas ao passo que o final se aproxima, minando mais de uma vez o esperado pelo público.

Em Os Infiltrados, Martin Scorsese não opera uma “virada” neste estilo, mas cria um feixe de expectativas que desmoronam quando todos os personagens principais morrem. George Lucas também já teve o seu momento em Star Wars V – O Império Contra Ataca: no desenvolvimento da aventura, o antagonista Darth Vader revela ser o pai de Luke Skywalker, algo que desconstrói tudo que havia sido erguido enquanto “verdade narrativa” até o dado momento.

Uma reviravolta marcante também encontra o seu lugar em O Planeta dos Macacos, de 1968. No desfecho, descobrimos que o planeta alienígena habitado por macacos na realidade é o planeta terra no futuro. O protagonista havia hibernado por séculos, por isso não havia se dado conta das mudanças. Mudanças ou revelações radicais também fazem parte de Cidadão Kane[14], de Orson Welles; Old Boy[15], de Park Chan-Wook; do suspense de tribunal As Duas Faces de Um Crime[16], de George Hoblit; do denso drama empreendido em Traídos Pelo Desejo[17], de Neil Jordan; do horror policialesco em Jogos Mortais[18], de James Wan, bem como de uma numerosa lista de filmes que não cabem na proposta deste panorama.

Marca registrada de M. Night Shyamalan, o plot twist em O Sexto Sentido revela-se quando um psicanalista (Bruce Willis) descobre que na verdade já está morto. O formato, considerado por alguns como uma maldição na vida profissional do cineasta, haja vista a “camisa de força” do desfecho surpreendente em todos os seus filmes, tornou-se sinônimo de “autoria”, uma espécie de estilo do realizador, algo que os seus espectadores sempre esperam de seus filmes. O modelo se repete em outros filmes assinados pelo cineasta, geralmente com pessoas comuns a viver situações excepcionais, tais como Corpo Fechado, A Vila, A Visita, Fragmentado, etc.

Algumas dicas de leitura

COMPARATO, Doc. Da Criação ao roteiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

GUIMARÃES, Roberto Lyrio Duarte. Primeiro traço: manual descomplicado de roteiro. Salvador: EDUFBA, 2009.

MCKEE, Robert. Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro. Curitiba, PR: Arte & Letra, 2006.

[1] Édipo Rei, de Sófocles, tragédia grega por excelência, já possuía o recurso como “estratégia narrativa”.

[2] Os Suspeitos, O Sexto Sentido e Clube da Luta são alguns filmes que fazem parte deste contexto.

[3] Cabe ressaltar, entretanto, que a reviravolta já estava no romance homônimo de Robert Bloch.

[4] O que não significa que todo filme com reviravolta seja interessante, pois há alguns cineastas e roteiristas que não sabem utilizar o recurso em prol de suas respectivas narrativas.

[5] O Advogado do Diabo (Taylor Hackford), A Paixão de Cristo (Mel Gibson) e Os Bons Companheiros (Martin Scorsese) são filmes que utilizam o recurso.

[6] Irreversível, de Gaspar Noé é um filme que representa bem a cronologia inversa no cinema.

[7] Pulp Fiction – Tempos de Violência (Quentin Tarantino), O Ano Passado em Marienbad (Alain Resnais) e Rashomon (Akira Kurosawa) são exemplos de narrativas não lineares.

[8] Os Suspeitos, Clube da Luta, Rashomon, Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas e Amnésia são alguns exemplos de narradores não confiáveis.

[9] Termo que no teatro grego designa “deus vindo da máquina”. Woody Allen utiliza no filme Poderosa Afrodite.

[10] O nome é uma referência ao dramaturgo russo Anton Checkov. Ele dizia que se uma arma vai aparecer no cenário em algum momento da história, qual a sua função se não ser disparada depois?

[11] Neste caso, em especial, refiro-me às considerações de Doc Comparato.

[12] Guimarães (2009)

[13] O mesmo ocorre com o personagem de Christian Bale em O Operário, de Brad Anderson.

[14] Os jornalistas passam o filme tentando descobrir o sentido da última palavra dita pelo magnata Charles Foster em seu leito de morte: “Rosebud”, na verdade uma revelação simples, pois se trata de um brinquedo que marcou a infância do personagem, homem que na narrativa é construído como alguém infeliz e avarento.

[15] Um homem descobre que foi colocado para se relacionar com a própria filha.

[16] Richard Gere interpreta um homem arrogante que descobre.

[17] A amante do amigo é na verdade uma travesti, o que muda a concepção de um homem que fica responsável por resguardá-la, mas apaixona-se antes da revelação.

[18] O corpo estirado na cena principal do filme na verdade era do psicopata que conduz o jogo mortal.

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