Home Colunas Entenda Melhor | Salto-Alto: Uma Simbologia no Cinema

Entenda Melhor | Salto-Alto: Uma Simbologia no Cinema

O salto-alto como emancipação feminina e símbolo da mulher fatal cinematográfica.

por Leonardo Campos
1,2K views

Saltos-altos. Definição? É um tipo de calçado, estruturalmente sofisticado, que deixa o calcanhar do usuário significativamente mais elevado que os seus dedos, dando a impressão para quem o usa que as pernas estão mais longas e finas. Para os especialistas na área, em especial, os ditadores da moda Jimmy Choo e Gucci, um sapato de salto-alto precisa ser maior que 8,5 centímetros. Ao longo de sua história, os saltos-altos foram utilizados como elementos de fetiche, poder e sinalização social. Para começarmos, deixo duas perguntas norteadoras sobre o seu significado: qual o sentido prático e objetivo de um sapato do tipo? Quando ele deixa de ser prático e se torna um recurso carregado de simbologias? Muito além de dispor proteção aos pés de seus usuários, os saltos-altos carregam em si uma alta carga de poder e sedução, indo mais adiante que a básica função de aumentar a estatura da pessoa que se dedica ao seu uso. Olhado estilisticamente, o salto-alto proporciona uma postura diferenciada, algo que pede ao corpo que se reposicione. É por isso que em muitos momentos, as mulheres fatais do cinema, as belas e perigosas interpretadas por Gleen Close, Sharon Stone, Ali Larter, Madonna, Halle Barrey, Demi Moore, dentre tantas outras, utilizaram esse recurso do vestuário para causa impacto e empreender os seus planos de manipulação e vingança.

Esse, por sinal, é o foco do nosso texto. Algo que, no entanto, não nos impede de fazer um panorama por sua história, antes de promover o recorte com o contemporâneo.

Uma Breve Viagem ao Passado: O Salto-Alto “Ontem e Hoje”

O seu percurso histórico é riquíssimo, curioso e bastante interessante. As ideias expostas ao pavimentar esse breve caminhar pelo passado dos saltos se encontra no elucidativo livro de Valerie Steele, intitulado Fetiche: Moda, Sexo e Poder, traduzido para uma edição brasileira em 1997. Conta-se que integrantes da cavalaria persa utilizavam sapatos do tipo para garantir que os seus se mantivessem nos estribos. Nos tempos da Roma e da Grécia Antiga, sapatos com solas de madeira alta eram populares particularmente no teatro por atores que representavam personagens de classes sociais distintas, ou então, com maior importância dramática dentro do que era representado. Os estudos destacados também apontam que as prostitutas utilizam saltos para melhor identificação de seus clientes. Na Corte Francesa dos séculos XVII e XVIII, tais elementos dos vestuários eram uma febre entre os membros da aristocracia, inclusive os homens, pois salto era sinônimo de poder e distinção. Rapidamente de volta ao contexto grego, na época mencionada, as prostitutas utilizam tachas incrustradas na sola de seus sapatos, conteúdo impresso com a expressão “siga-me” no chão das ruas por onde passavam. Salvaguardas as devidas proporções, eram ótimas opções de “vendas” para os seus serviços.

Nem sempre, ao longo de sua história, os saltos foram utilizados para transmitir a ideia de poder ao discurso feminino. O sapato chinês Lótus, terrivelmente deformadores dos pés, por exemplos, eram utilizados por muitas bailarinas da corte imperial. Elas tinham mutilação precoce, pois o uso de tais sapatos impediam que seus pés crescessem. Eram utilizados até para dormir e a forma como o calcanhar e parte dos pés eram ajustados causavam danos aos ossos e se criava uma fenda nos pés. A ideia era que o dedão funcionasse como substituto fálico e a tal fenda como pseudovagina, ou seja, em algumas culturas da região, a mulher estimulava o homem tocando o pênis dele com o pé, enquanto ele punha o outro pé inteiro na boca. São atos específicos de uma época e que precisam ser compreendidos dentro de seus contextos culturais. Trouxe-os aqui apenas como ilustração para outras funcionalidades do salto-alto, condição tangencial sexualmente, mas diferente daquilo que estamos acostumados a observar na cena contemporânea no que concerne ao poder do feminino em perspectiva.

A avassaladora cena do interrogatório em Instinto Selvagem

Diferente do sentido de fetiche aplicado para designar a adoração aos ídolos na Antiguidade, aqui ficaremos com a conceituação de Marx para o termo, em especial, a sua análise sobre a relação dos seres humanos com o capitalismo, numa condição que ele chamou de “fetiche da mercadoria”, isto é, outorgar valores secretos aos produtos, como se estes fossem hieróglifos sociais para codificação. Alfred Binet também tem a sua contribuição histórico na compreensão do fetiche, inicialmente, como algo ligado aos chamados desvios sexuais, algo que logo adiante, por causa da pluralidade de definições que foram surgindo, passou de ter significação exclusivamente sexual e ganhou desdobramentos ao se referir ao poder e a recepção. Em linhas gerais, o discurso em torno do salto-alto é algo institucionalizado, com regras estabelecidas e socialmente acatadas por todos. Numa relação com o que foi dito pelas reflexões marxistas, o salto-alto é limitador, pois tem valor agregado pelo fato de ser utilizado por pessoas com a condição social adequada para adquiri-los, afinal, são recursos de valor mais alto que os calçados tradicionalmente mais básicos, além de pedir deslocamento por parte de alguém que tenha a condição adequada para circular com eles em seus pés.

Diante do exposto, os saltos-altos vão sempre significar algo, a depender de seus respectivos contextos. Trazidos para o universo das mulheres fatais do cinema contemporâneo, recorte que contempla Atração Fatal, Instinto Selvagem e seus respectivos legados, o salto-alto tem como enunciado, designar poder e força ao discurso feminino presente nestes filmes e assim, tornar a mulher mais fálica e agressiva, expor o seu desejo de emancipação em um mundo bastante competitivo e em muitas ocasiões, misógino. Eficientes ao representar adequadamente feminilidade e poder, os saltos-altos intencionam a sedução, a diferenciação, altivez e sensualidade, mesclada com altas doses de sexualidade. Ao afetar o andar das usuárias, o calçado permite que os quadris e as nádegas oscilem de um lado para o outro em movimentos socialmente associados ao que é dito como feminino e desejável para a mulher que pretende se conectar com a sua sexualidade e instâncias de poder. Os sons emitidos pelos saltos na superfície por onde passam também são carregados de simbologia, pois dão maior significação para uma passagem que poderia ser opaca de sentidos, praticamente despercebida, sem intencionar a independência, liberdade e autoridade de seus discursos legitimados socialmente.

Amanda Seyfried sobe no salto para destruir reputações em O Preço da Traição

Vários historiadores, dentre eles, Camila Morton, no também elucidativo Como Andar de Salto Alto, publicado no Brasil pela editora Matrix em 2008, contam que o desenho de salto que conhecemos hoje foi desenhado pelo italiano Salvatore Ferragamo, um imigrante que veio para os Estados Unidos em 1914. Ao ter estudado a anatomia humana na Universidade da Califórnia e incrementado os conteúdos com os seus conhecimentos sobre sapataria, o seu projeto mesclou experiências científicas e artísticas para deixar a mulher mais bonita e elegante. E assim, tais ideias, levadas para o campo da simbologia e da psicologia, permitiram que estudiosos interpretassem o esquema de produção e uso como uma busca por expressividade de sentimentos. Quem vos escreve, por exemplo, nunca fez uso de salto-alto, mas se interessou pelo assunto por testemunhar uma situação não cinematográfica, mas extraída da vida real. Numa determinada ocasião, uma experiente professora de biologia de um curso preparatório para vestibular, única numa equipe de homens, alguns misóginos, comentou para uma aluna que estava próxima a mim, o seu uso diário de saltos altíssimos. Para ela, o calçado era uma forma de se impor diante não apenas dos colegas que eram maioria masculina, mas também de alunos, parte de instituição repleta de estudantes homens, focados em Medicina, arrogantes por causa de seu poder aquisitivo e questionadores de sua capacidade em ensinar um componente curricular tão importante para o preparo diante de um curso tão concorrido.

As preocupações da mencionada professora não se diferenciam tanto dos interesses sociais gerais do uso de salto-alto, principalmente das mulheres fatais cinematográficas, analisadas no próximo tópico.

Saltos-altos, Atrações Fatais e Instintos Selvagens

Michael Douglas, como sabemos, protagonizou filmes que trouxeram mulheres ambivalentes e bastante perigosas. Atração Fatal, Instinto Selvagem e Assédio Sexual, conjunto que geralmente intitulo de “Trilogia de Michael Douglas e das Mulheres Fatais”, lançadas em 1987, 1992 e 1995, respectivamente, mostram como essas personagens são construídas por figurinos que permitem delinear os seus traços corporais e permitir que a sagacidade e inteligência ganhem mais projeção com a definição pontual dos principais elementos físicos que compõem as dimensões sociais destas figuras belas na superfície, mas sádicas e monstruosas por dentro. Importante ressaltar que tais narrativas permitem estudos mais complexos sobre presença feminina alegórica em cena, construção misógina da mulher diante do homem acossado, dentre outras interpretações que fogem do escopo deste artigo. Aqui, o nosso foco é a construção visual da mulher fatal por meio de seus figurinos, em especial, o uso de salto-alto, elemento de distinção que reforçam o poder e o perigo provenientes destas personagens em cena.

O destaque para Atração Fatal e Instinto Selvagem, cabe ressaltar, surge por causa do legado destes filmes na atual cultura cinematográfica. Mulheres fatais e perigosas existem desde sempre na cultura ocidental, dos mitos greco-romanos aos filmes do cinema noir. O que se delineia por aqui é que após os filmes protagonizados por Gleen Close e Sharon Stone, um arquétipo foi estabelecido e desde então, entre uma mudança e outra no roteiro e na condução visual das tramas, muitos filmes utilizaram desta forma para conceber as suas histórias. No geral, ou temos uma mulher que tem um caso com um homem casado e depois é tratada de maneira descartável, tornando-se uma obcecada perigosa, ou então, uma figura feminina declaradamente ambiciosa, consciente de seu poder de sedução e com instintos sádicos de manipulação que a faz flertar com homens que não conseguem resistir ao seu magnetismo e acabam envolvidos em tramas perigosas, onde o masculino é apenas uma peça para um jogo mais complexo que qualquer envolvimento sexual utilizado apenas como isca para as manobras com intenções mais profundas que os esquemas apresentados na superfície.

Sharon Stone e seus saltos altíssimos em Instinto Selvagem 2

E, neste processo de sedução, os saltos-altos se fazem presentes. Nos dois filmes do universo Instinto Selvagem, Sharon Stone foi trajada pelos figurinos de Ellen Mirojnick (1992) e Beatriz Aruna Pastor (2006), profissionais que investirem em decotes profundos, cores fortes e devidamente estudadas para o tom de pele e os cabelos da personagem, além dos saltos-altos utilizados por Catherine Tramell, a escritora conhecida por descrever assassinatos em seus romances que parecem extraídos da vida real. Se no primeiro filme, Michael Douglas pareceu ter conseguido superar os desafios e a sugestão de Paul Verhoeven deixou o final aberto para interpretações, no segundo, no ponto mais alto de seus calçados, ela consegue mexer com a cabeça do personagem de David Morrissey e torna-lo um homem perdido no espiral de crimes e loucuras perpetrados pela personagem manipuladora e sádica. Em ambos os filmes, os saltos permitem que Sharon Stone fique com a sua postura corporal ligeiramente inclinada, com o quadril mais empinado e assim, ter os seios mais acentuados pela curvatura desta postura gerada pelo uso de tais calçados. Em cena, ela é pura potência, selvagemente erótica. A direção de fotografia de Jan de Bont e a sensual trilha sonora de Jerry Goldsmith, do primeiro filme, colaboram bastante para ampliar as significações aqui destacadas.

Proteger os pés? Não necessariamente. O sapato de salto-alto na cena cultural do século XX, desde o seu surgimento, foi criado com outras finalidades, inclusive ampliar a carga de sensualidade de suas usuárias. Ao menos essa é a intenção de Lisa Sheridan (Ali Larter), antagonista em Obsessiva, uma secretária com passado obscuro, ambiciosa ao tentar surrupiar o marido de Sharon Charles (Beyoncé), interpretado por Idris Elba. Pelos escritórios da empresa, ela o observa e com o seu canto enigmático, tal como uma sereia, ela pretende leva-lo para si numa perigosa aventura sexual. Há ecos óbvios de Atração Fatal no desenvolvimento do texto, mas aqui, diferente da saga de Michael Douglas e seu personagem infiel, temos um homem inocente, perseguido por uma mulher afetada psicologicamente e disposta até mesmo a ceifar vidas que aparecerem em seu caminho, caso sejam identificadas como obstáculos para o seu projeto de conquista do homem para o qual ela emitiu os seus desejos mais profundos: o empresário Derek Charles. Os figurinos de Maya Lieberman, captados pela sinuosa direção de fotografia de Ken Seng, colaboram para reforçar a forte carga sexual desta sereia urbana sensual e decidida, com planos nada sutis para levar adiante os seus desejos insaciáveis.

No já citado livro de Valerie Steele, a autora comenta o que analisamos até agora, isto é, o salto como significação de poder, tendo como destaque em sua pesquisa, a associação com a mitologia, ao relacionar os saltos com Hermes, o deus mensageiro que utilizava as sandálias aladas, além das fábulas de Cinderela e O Mágico de Oz, histórias que tinham no calçado, uma relação mágica, extrínseca aos seus usos práticos. Ao emular um estudo de Ramachandran, Fantasmas do Cérebro, a pesquisadora destaca que existe uma explicação possível sobre a proximidade entre os circuitos neurais e as áreas cerebrais que estão associadas aos órgãos genitais e aos pés, muito próximas entre si, algo que poderia ajudar a explicação da relação fetichista entre os pés e a sensualidade. Trazido para o contexto em questão, ajudaria a complementar a compreensão do jogo psicológico e erótico realizado por Madonna no terrível Corpo em Evidência, pela Barbie psicótica de Katherine Heigl em Paixão Obsessiva, além de Amanda Seyfried, Patrícia Arquette e Hilary Swank em O Preço de Traição, Misteriosa Paixão e Fatale, respectivamente, alguns dos tantos filmes com mulheres sedutoras e fatais.

Quando em sua dissertação de mestrado, intitulada Design, emoção e o calçado feminino, a pesquisadora Mariana Toledo Seferin reforça que a mulher não calça um sapato apenas para ela, mas para todos que gravitam em torno de si enquanto trajada para ser notada, o item escolhido vai variar conforme o seu interesse de representação e a situação em que ela estará envolvida. É assim que Rowena (Halle Barrey) faz em suas idas ao escritório de Harrison (Bruce Willis), pois em sua meta durante a trajetória dramática do irregular A Estranha Perfeita, ela precisa seduzir o empresário que exala virilidade e esconde segredos obscuros, num filme cheio de manobras que nos mostram o quão ambivalentes são todos os seus personagens. Por isso, os desenhos da figurinista Renee Kalfus são assertivos ao trajar a protagonista com fendas, vestidos justos e curtos, além de saltos-altos que valorizam a sensualidade da personagem, tal como Anna Ahrens, Natalie Ward e Michael Kaplan fizeram com a presença feminina em Mulher Solteira Procura, Fora de Rumo e Diabolique, respectivamente, bem como tantas outras figurinistas e equipe de realizadores elaboraram com as mulheres fatais do cinema.

O salto-alto é a arma do crime em Mulher Solteira Procura

O salto-alto, como já delineado nos tópicos anteriores desta reflexão, são fortes símbolos capazes de dotar uma mulher de poder e elegância, além da sensualidade exacerbada e necessária para que tais figuras, no auge de seus interesses por conquistar o olhar masculino para sedução e envolvimento, consigam dar conta de seus planos ao colocar os homens, mesmo que momentaneamente, aos seus pés. Na dinâmica do subgênero “mulheres fatais no cinema”, narrativas que mesclam traços do noir com suspense e drama, em alguns casos, o “terror mais clean”, o salto-alto é quase obrigatório para a concepção dos figurinos destas personagens interpretadas constantemente por atrizes do mainstream e algumas vezes, por figuras pouco conhecidas. Eles podem ser do tipo cone, Sabrina, prisma, cubano, carretel, agulha, Anabela, dentre outros. O que importa é elevar a imagem da usuária e permitir que os seus anseios sociais e psicológicos sejam devidamente expostos na cena ficcional dos filmes aqui ilustrados e, numa ultrapassagem de limiar, na vida real que tanto se inspira no universo cinematográfico.

E ao leitor, um aviso importante: provavelmente muitos filmes do tipo que vocês conhecem ficaram de fora desta análise que não pretende esgotar o tema, mas apenas lançar um olhar para este tema que é parte do senso-comum em relação aos vestuários que definem as características dos personagens de tantos filmes, assunto que se torna mais interessante quando investimos numa perspectiva história e investigativa para compreender essas escolhas tomadas por sentimentos e simbologias. Se você conhece outro filme que dá destaque ao tema, deixe os seus comentários, combinado?

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais