Preparando-me para viajar para Los Angeles mais uma vez, desta vez por um período alongado por circunstâncias fora de meu controle, pesquisei o que poderia ver na cidade, deparando-me com o show de stand-up de Ricky Gervais no Hollywood Bowl, a visita do “caminhão armário” da Criterion, diversos filmes clássicos nos cinemas que mais gosto da cidade e… estranhamente… uma maratona de Arcane, a série animada de duas temporadas baseada no MOBA League of Legends que meu colega Kevin Rick criticou semanalmente, na medida em que as trincas de episódios foram lançados no Netflix, em 2021 e 2024. Apesar de não ser fã de comédia stand-up, resolvi experimentar um show ao vivo do gênero por gostar de Gervais, adquiri diversos ingressos para filmes variados, descartei de imediato o programa da Criterion por ele envolver ficar em filas, algo que me recuso a fazer para o que quer que seja, e, finalmente, fiquei na dúvida sobre Arcane, cujo evento foi oficialmente batizado de Arcane Again.
Minha dúvida se deu em razão de (1) eu não ter visto a série até aquele momento e só saber muito por alto do que se tratava; (2) nunca ter jogado League of Legends ou, para dizer a verdade, qualquer outro jogo online; e (3) eu fazer todo o esforço possível para não maratonar séries, hábito que considero um desserviço às obras. Por outro lado, meu citado colega Kevin Rick havia deixado claro, por meio de suas críticas (que, confesso, não havia lido para evitar spoilers caso eu um dia decidisse assistir Arcane) que ele a tinha adorado. Consultando-o brevemente se realmente era isso tudo e recebendo uma resposta positiva, decidi comprar o ingresso para a série completa – havia a possibilidade de comprar separadamente para cada temporada, mas isso é para os fracos – que passaria no The Vista Theater, um cinema centenário de Los Angeles que Quentin Tarantino comprou para evitar que fosse demolido ou se transformasse em uma igreja ou farmácia, a segunda vez que ele faz isso aliás (o outro é o menor The New Beverly).

A entrada com a mesa de brindes e o lobby com cartazes e vitrine temática.
Apesar de o cinema (que tem também uma cafeteria, a Pam’s Coffy, e um clube de vídeo, o Video Archives Cinema Club) só passar filmes em película, com a rara capacidade de projetar em 70mm (o New Beverly só consegue projetar até 35mm), o espaço todo foi “alugado” para a Riot Games que projetou Arcane digitalmente, com um projetor instalado lá especial e unicamente para esse evento que aconteceria ao longo de dois dias seguidos (28 e 29 de maio de 2025). Com um excelente espaço entre fileiras de cadeira, uma decoração original supostamente egípcia que é comicamente brega até não poder mais e que foi restaurada a seu “esplendor” quando a propriedade foi comprada e uma boa quantidade de vagas pagas e gratuitas nas imediações, o Vista Theater é um dos melhores cinemas sem ser de rede que já tive o prazer de ir.
Seja como for, mesmo com o ingresso na mão, eu só decidi que ia de verdade na véspera e mesmo assim com a certeza de que, se eu não gostasse da primeira trinca de episódios, eu simplesmente me levantaria e iria embora, até porque o ingresso para os dois dias não foi caro, apenas 33 dólares com direito a pipoca e refrigerante em cada um dos dias, além de um brinde surpresa que acabou sendo um álbum de vinil da trilha sonora da segunda temporada da série. O programa era assim:
Dia 1 – Arcane: 1ª Temporada
Quarta-feira, 28 de maio
5:00 PM – Abertura das portas (sem lugar marcado)
5:40 PM – Temporada 1, Ato I (127 min.)
7:40 PM – Intervalo de 10 min.
7:50 PM – Temporada 1, Act II (122 min.)
9:50 PM – Intervalo de 10 min.
10:00 PM – Temporada 1, Act III (121 min.)
Meia-noite – Fim
Dia 2 – Arcane: 2ª Temporada
Quinta-feira, 29 de maio
9:30 AM – Abertura das portas (sem lugar marcado)
10:00 AM – Temporada 2, Ato I (119 min.)
12:00 PM – Intervalo para almoço de 60 min. (almoço não incluído)
1:00 PM – Temporada 2, Ato II (120 min.)
3:00 PM – Intervalo de 10 min.
3:10 PM – Temporada 2, Ato III (131 min.)
5:21 PM – Painel com Convidados Especiais (45 min.)
6:06 PM – Conclusão do Evento
Programando-me para chegar lá de forma que meu tempo de fila fosse reduzido a menos de dois dígitos, deparei-me, no primeiro dia, com um pequeno exército de gente jovem e entusiasmada com a maratona, muitos fazendo cosplay e com um rapaz atrás de mim fuzilando uma rapariga que acabara de conhecer com perguntas do tipo “qual é seu personagem favorito?” e “qual é sua música favorita (mas não vale dizer Enemy)?”. Não tinha ideia o que era Enemy, logicamente, mas tudo o que consegui pensar naquela hora era se era assim que fãs de alguma coisa tentam iniciar conversas com quem talvez se interessem, ao mesmo tempo em que torcia para que eles não soltassem um spoiler gigantesco. Afinal, se eu tinha permanecido virgem de Arcane até aquele ponto, queria continuar assim nos últimos minutos e, para minha sorte, os dois só ficaram mesmo nessa brincadeira de favoritos. Com a porta aberta na hora prometida, não deram 10 minutos e eu já estava marcando minha cadeira com um casaco que havia trazido exclusivamente com esse objetivo e com a sacola com meu brinde para poder retornar ao lobby para dar uma olhada na decoração focada em Arcane, com cartazes nas paredes e uma vitrine inteira de produtos licenciados com base nos personagens da série.
Também na hora marcada, o show começou, com a abertura do primeiro episódio sendo recebida com gritos e aplausos e eu então notando o que afinal era Enemy. No começo do segundo episódio, minha rabugice usual falou mais alto, pois eu tinha certeza de que a Riot iria editar as trincas de maneira a passar a impressão de estarmos assistindo a diversos filmes compostos de três episódios cada. Mas não, deixaram tudo como foi originalmente concebido, com aberturas e créditos finais intactos em algo que eu apressadamente rotulei de preguiçoso, mas que logo vi estar enganado porque a cada nova abertura eis que a galera gritava e aplaudia tão efusivamente quanto da primeira vez. Uma experiência coletiva dessas não fica melhor que isso, até porque esse mesmo pessoal não dava um pio durante a projeção propriamente dita, a não ser para ocasionalmente aplaudir a entrada de um novo personagem que, claro, todos ali – menos eu – sabiam que seria importante mais para a frente. Resumo da ópera: ao final do Primeiro Ato, ou seja, da primeira trinca de episódios, já estava claro em minha cabeça que valia a pena continuar até o fim.

Interior e exterior do belo e brega cinema e meu brinde ali na bolsa branca.
E realmente valeu, pois a primeira temporada da série é quase que irretocável, com personagens muito bem construídos e concebidos e uma animação de primeira. Saí de lá pouco depois da meia-noite bastante feliz em ter decidido encarar a maratona, mesmo sabendo que teria que dirigir por meia hora e dormir pouco até ter que voltar no mesmo dia às 9:30 da manhã, o que significava que eu teria que sair do hotel no máximo até as 8:30 em razão do trânsito da hora do rush matinal de Los Angeles. Mas tudo deu certo. Meu despertador tocou, eu me joguei da cama, entrei debaixo de uma ducha e saí rapidamente sem tomar café da manhã já que isso significaria acordar ainda mais cedo e acordar cedo é um dos grandes problemas que sempre tive na vida. Cheguei na fila de entrada quase que exatamente na hora em que as portas se abriram e tudo começou novamente.
Apesar de ser veterano em maratona de filmes em cinemas, nunca havia participado de uma de série (perdi a chance de ver a primeira temporada de Twin Peaks em um cinema no Rio de Janeiro por um irritante conflito de agenda) e, não gostando delas em serviços de streaming, tinha certeza de que não gostaria também no cinema. Mas a grande verdade é que cinema é cinema e sofá de casa é sofá de casa. No lar, temos todas as distrações brigando por nossa atenção e, no cinema, isso não acontece e o ambiente – com um público respeitoso, obviamente, não aquele pessoal mal educado que usa o celular ou fala o tempo todo – torna-se propício para o binge watching de séries, especialmente uma série animada tão boa quanto Arcane projetada com toda a qualidade visual e sonora possível. Com isso, os nove episódios da segunda temporada, com direito a um intervalo para almoço que usei para tomar café da manhã, passaram voando, mesmo considerando que a qualidade do segundo ano de Arcane é inferior à do primeiro principalmente pela forma canhestra com que o lado puramente da magia é trabalhado e toda aquela necessidade de abrir caminhos para continuações e/ou spin-offs. No conjunto, porém, não tenho dúvida alguma em afirmar que Arcane é uma baita obra audiovisual que merece todo o destaque possível.

Os panelistas no painel sem graça.
Depois do final da segunda temporada, houve um painel de perguntas e respostas com Christian Linke (showrunner da série), Marc Merrill (cofundador da Riot Games) e Brandon Beck (cofundador da Riot Games) que, muito sinceramente, nada acrescentou à experiência. Foram 45 minutos com participação indireta do público – só algumas poucas perguntas enviadas com antecedência via aplicativo foram lidas e respondidas – e com todo o restante não passando de massagem de ego dos três. Faz parte, mas confesso que esperava mais do que bobagens genéricas vindo de uma trinca de pessoas que entregou uma série que é tudo menos boba e genérica. Como meu foco não era esse e sim a série, esse “epílogo” rasinho não atrapalhou a maratona e eu saí da experiência bastante satisfeito e, claro, com muita vontade de ver o que mais esse pessoal conseguirá colocar nas telinhas em futuro próximo.
Ah, e para quem se interessar, minha personagem favorita é a sensacionalmente inteligente e truculenta Ambessa Medarda (com Grayson correndo por fora somente porque a voz dela é da incrível Shohreh Aghdashloo) e minha canção favorita é a melódica e potente Heavy Is the Crown.
