Quando Homem com H (2025) entrou para o catálogo da Netflix, eu já estava preparado para alguma polêmica idiota. Ney Matogrosso sempre foi uma bomba ambulante, então achei que, de alguma forma, iriam surgir críticas morais sobre sua vida, gostos, escolhas, algo assim. Mas confesso que não imaginava que a galerinha da internet fosse sair do filme cancelando o Cazuza. Sim, o Cazuza. O cara que morreu em 1990. Aparentemente, assistir ao filme foi uma revelação chocante para alguns: descobriram que o poeta do rock brasileiro era… como posso dizer… um homem com vícios e que tinha comportamento babaca. Nossa! Que coisa de outro mundo, hein! Nunca antes na História desse país! É como ficar horrorizado porque Ozzy Osbourne cheirou pó ou porque Keith Richards nunca foi um modelo de sobriedade. Realmente chocante! Mas vamos com calma, porque essa história tem camadas sobre camadas de besteira: é o atoleiro completo.
A indignação começou com espectadores saindo do cinema choramingando sobre como o Cazuza era “problemático“, “tóxico“, “escroto” e “playboy mimado“. Tem até os que já estão constatando que, finalmente, entenderam por que nunca curtiram o poeta! Outros falam em “talvez separar a arte do artista“, como se tivessem descobrindo a pólvora. Gente, vocês sabem que o cara cantava drogado, né? Que fazia show bêbado? Que morreu de AIDS aos 32 anos numa época em que isso era praticamente uma sentença de morte anunciada? Estou começando a suspeitar que a geraçãozinha acha que os grandes artistas brotam de centros espirituais. Como se o Cazuza fosse… sei lá, o Padre Zezinho do rock. E tem uma coisa que me deixa particularmente irritado nessa história toda: Homem com H mostra uns 5 momentos da vida do cantor. Imaginem se julgássemos toda a personalidade das pessoas pelos piores 5 comportamentos de suas vidas na casa dos 20 anos. Ia sobrar alguém?
O que me mata é essa necessidade de transformar arte em produto sanitizado. Limpinho. Santo. Como se os discos viessem com selo do Inmetro: “Artista aprovado pelo comitê de ética. Livre de comportamentos tóxicos e vícios diversos.” Vocês querem que eu dê o real nome disso ou já se tocaram? Arte sempre foi território de gente esquisita e com atitudes condenáveis! Aliás, A VIDA é um território de gente esquisita e com atitudes condenáveis. Miles Davis era um infame que tratava os músicos da banda como lixo, era machista até os ossos, viciado em drogas e foi até cafetão. Isso torna Kind of Blue menos genial? Pablo Picasso deixou um rastro de mulheres abusadas por toda Paris. Guernica fica menos impactante por causa disso? E olhem só a ironia: o próprio Ney Matogrosso, que foi diretamente afetado pelo tal “comportamento tóxico” de Cazuza, nunca guardou rancor. Cuidou do cara até o fim, fez massagem nos pés quando ele estava morrendo e dirigiu o último show da vida dele. Se o próprio Ney conseguiu separar o zé droguinha do gênio musical, quem diabos somos nós pra ficar pagando de juízes morais?
Roland Barthes declarou a “morte do autor” em 1967: a obra deve ser julgada independente de quem a criou. Mas pelo visto, a internet de 2025 não recebeu a trend do TikTok avisando isso. O que me preocupa mesmo é perceber como essa gente perdeu a capacidade de lidar com nuances. É tudo muito binário: ou você é santo, ou é demônio. Não existe meio-termo, não existe a possibilidade de que alguém seja, simplesmente, humano. Complicado. Contraditório. Outro dia, estava relendo Susan Sontag e essa frase não me sai da cabeça: “interpretar é empobrecer“. É exatamente isso que está rolando aqui. Pegaram uma fatia da vida de Cazuza, passaram pelo liquidificador da moral contemporânea e saíram babando um veredicto patético, defendendo o fim de sua arte porque ele era um “cara chato“.
Biografias são sempre recortes. Sempre. Mesmo as mais honestas são feitas de escolhas: o que mostrar, o que omitir, de qual ângulo contar os fatos. O filme Cazuza – O Tempo Não Para, de 2004, praticamente apagou Ney Matogrosso da narrativa, tanto que ele ficou puto na época, dando entrevista reclamando que “a história não era essa“. Agora, Homem com H conta outra versão. São perspectivas diferentes de vidas complexas demais pra caberem numa tela. Mas aí fica o povo da moral de butique criando caso onde não há caso.
No final das contas, sabem o que importa? O Tempo Não Para ainda arrepia. Ideologia ainda é um soco no estômago. Codinome Beija-Flor continua sendo uma das declarações de amor mais lindas já escritas em português. E isso não muda porque descobrimos que o cara que escreveu tudo isso era, “surpreeeesaaaaa!“, um ser humano imperfeito. Walter Benjamin falava da “aura” das obras de arte, essa qualidade única e irrepetível que faz com que certas criações nos atravessem de um jeito que não conseguimos explicar direito. Pois a aura do Cazuza sempre incluiu a angústia, o excesso, a autodestruição. Querer separar isso da música dele é como querer uma feijoada sem feijão.
Quando terminarem de riscar da lista todos os artistas imperfeitos da História, que arte vão consumir? Hinos da Canção Nova? Playlist do Spotify Kids? Eu fico com o Cazuza mesmo: problemático, genial e inesquecível. Porque arte boa também vem de gente complicada e bizarra demais para caber em moralismos anacrônicos, sensibilidades afetadas, estereotipias eletivas, condenações à la carte e teatrinho de gente hipócrita que faz muito pior do que os artistas que escolhem para montar o seu Sínodo do Cadáver do mês. Vão caçar o que fazer!