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Fora de Plano #29 | Nem o Mel, Nem a Cabaça

por Luiz Santiago
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Os jovens na minha frente não tinham mais de 18 anos de idade. Era um grupo de cinco, dois dos quais, apesar do infernal calor no exterior do Shopping Recife — e o ar-condicionado do interior parecia dar apenas uma pequena sensação de dignidade ao corpo — estavam de touca, uma vermelha e outra preta, parecendo uma versão dos descendentes equatoriais de Nassau para o rapazinho da touca do Twenty One Pilots.

Eu estava distraído, esperando meus amigos voltarem da “banquinha do sorvete” e me peguei prestando atenção na conversa dos garotos, que em alto e bom som, discutiam sobre o como é importante para alguém do Brasil ver filmes dublados, porque… [wait for it…] estamos no Brasil e precisamos dar valor à nossa língua!  😯

Eu disfarcei uma sessão de gargalhadas e continuei ouvindo a conversa, espantado. Não era a primeira vez que eu presenciava alguém dizendo que a dublagem é a valorização da língua (???)  🙄 . O discurso do Twenty One Pilots pernambucano pareceu ter encontrado campo fértil nos outros garotos, resolutos em defender que brasileiro que honra a sua brasilidade deve ver filmes estrangeiros dublados em português!

__ Porque nós só valorizamos o trabalho dos artistas de fora e nada de valorizarmos o trabalho dos artistas brasileiros?

__ Se a gente fala português, por quê ver um filme em inglês?

__ É provado cientificamente que quem vê filmes com legendas perde 99% “dazimage“.

__ Só fresco (para quem não manja dos paranauês, em Pernambuco — e penso que isso também ocorra em outros Estados da região –, “fresco” é uma forma pejorativa de se referir a gays), vê filme em inglês.

Meus amigos chegaram com o meu sorvete da “banquinha” (aquele mesmo que você precisa vender um rim no mercado negro para comprar um potinho com 10 gramas) e começamos a falar sobre o quão animados estávamos para, enfim — antes tarde do que nunca! — vermos Rogue One. Mas a fala dos meninos de touca em pleno verão pernambucano ficaram como pulga atrás da minha orelha. E novamente: não era a primeira e nem a segunda vez que eu ouvia aquilo.

Neste spin-off da novela Dublado X Idiomas Originais, não pretendo mergulhar fundo nos motivos e implicações que rodeiam a questão, pois o Ritter já fez esse serviço sujo no nosso 10º Plano Polêmico: A Crescente Tirania da Dublagem. Também não vou me estender sobre escolhas e preferências. Todo mundo vê filmes e séries da forma como gosta e pronto. Mas defender que ver coisas dubladas é o caminho para valorizar a língua portuguesa ou que devemos ver dublado “porque estamos no Brasil” (???) é algo simplesmente estúpido. Por isso, nesta simpática crônica dominical, vai aqui uma ajuda a todos os que pensam assim, uma listinha básica com 10 caminhos eficientes para valorizar a língua portuguesa ao invés de ver coisa dublada. Vamos lá.

1 — Não coma o plural.

2 — Não deixe de conjugar os verbos.

3 —Pra mim fazê” não é exatamente uma forma de valorizar a língua portuguesa, ok?

4 — Já ouviu falar em uma coisa antiga, feita de papel, com umas folhas dentro chamada livro? Então, pegue uma porção desses e leia!

5 — Momento do Conhecimento com o Tio Lulu: você sabia que Brasil e Portugal não são os únicos países do mundo a falar português? Se sua preocupação é realmente valorizar essa língua, busque referências linguísticas desses outros países e adicione-as ao seu caderninho de futuras leituras!

6 — Seguindo o mesmo pensamento, vocês só consomem MPB, mesmo? Vocês dizem para os amigos que estão assistindo às séries Casa de Cartas? Laranja é o Novo Preto? Fuga da Prisão? Amigos? Liberando o Mal? Ou vocês preferem valorizar a língua portuguesa DE VERDADE, dizendo que a série A Química do Mal é muito boa?

7 — Já lhes ocorreu, ó grandes salvadores da última flor do Lácio, fazer uma análise de como vocês eram nas aulas de gramática, literatura e redação? Imagino que tamanho amor à língua não surge do nada, não é mesmo?

8 — Quantos poetas de língua portuguesa vocês conseguem se lembrar? Quais são as suas escolas literárias brasileiras favoritas? Na sua opinião, quais são os 10 melhores autores brasileiros? Penso que para pessoas que se importam TAAAAAAAAAAAAANTO com a língua portuguesa, deve ser um martírio ter que escolher apenas 10…

9 — Se a dublagem é uma forma de valorizar a língua e devemos ver dublado porque somos brasileiros, então deveríamos ter um mercado de covers oficiais para todas as músicas estrangeiras? Seu maior ídolo musical é, por acaso, o grande Latino?

10 — Você consegue interpretar o título de um dos maiores romances já escritos no Brasil, Grande Sertão: Veredas? Só o título mesmo. Por que ele é assim? Para alguém com tamanho amor pela língua, acho que dissertar a respeito seria bem fácil…

Me pego pensando se essas pessoas realmente acreditam nessas “justificativas”. O que me dói, é o fato de que são jovens, com uma vida inteira para viver em um mundo cada vez mais integrado, globalizado e que, por algum motivo, se recusam a ver produções artísticas na língua em que foram feitas (e pasme! Tem gente que acredita que “filme gringo” é tudo em inglês! Só inglês!).

Sim, é uma questão de gosto. E sim, todo mundo tem o direito de escolher o modo como quer assistir isto ou aquilo. Mas me parece que os que defendem o dublado como uma valorização da língua, não devem fazer muita ideia do que estão defendendo, pois o tal “objeto a ser valorizado” não recebe a mínima atenção fora da estúpida justificativa. E por que faço esse tipo de julgamento imediato? Simples: porque quem REALMENTE valoriza a língua portuguesa jamais endeusaria a dublagem como um modo válido de tal valorização.

Do outro lado, o que vejo são pessoas que se privam de passar algum tempo ouvindo diálogos em uma língua que não a sua materna, aprendendo um pouco, ouvindo as vozes reais dos atores na tela.

O #medo é que a tal “nobre justificativa” vem ganhando adeptos. Pessoas que, ao invés de assumirem uma escolha simplesmente “porque sim” ou “porque eu gosto assim“, adotam um lema hipócrita para cantar de galo em um poleiro onde nem português direito conseguem falar ou escrever, ao mesmo tempo que não se permitem ter contato com outras línguas através da forma mais gostosa de se ter contato com outras línguas: o entretenimento.

Triste fim.

É como diz um belo ditado (português!): para estes, nem o mel, nem a cabaça.

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