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Fora de Plano #39 | O Maior Game

por Anthonio Delbon
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O verdadeiro sábio é aquele que assim se dispõe que os acontecimentos exteriores o alterem minimamente. Para isso precisa couraçar-se cercando-se de realidades mais próximas de si do que os factos, e através das quais os factos, alterados para de acordo com elas, lhe chegam. (Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)

Aos idiotas da objetividade, como dizia Nelson Rodrigues, um breve aviso: não, eu não joguei todos os games do mundo para falar com propriedade qual é o maior. Nem vi todos os filmes clássicos, nem li toda a literatura canônica, nem sou especialista em Marvel e Dc como todo mundo atualmente. Algumas dessas quests eu ainda pretendo cumprir, mas sem pressa e com prazer. Aprecio a preguiça e a distração da minha main mission.

Se isso lhe incomoda, se acredita que isso transforma o seguinte texto automaticamente em lixo de primeira qualidade, ou se você espera números e argumentos técnicos que provem o meu ponto, faça um favor a si mesmo e se poupe. Para você, nada de bom sairá daqui, eu lhe garanto. Tão óbvia quanto a constatação que dá título ao texto é que se trata de uma constatação minha, ainda que não somente minha. É claro que quero universalidade para a minha brilhante e belíssima opinião – e nem precisam desculpar a imodéstia. Quem não quer? Mas querer, geralmente, é o extremo oposto de poder, vide a inexistência de Half-Life 3.

Feitos os devidos alertas, tentemos conversar sobre Shadow (assim, com maiúscula, como a Verdade de Platão, ideal, bonitona e mística, até porque tô sem paciência para escrever o nome inteiro do game a cada parágrafo). Conversar não, convenhamos. Isso aqui é um monólogo. E é melhor eu me apressar antes que você suma.

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Da permanência

Pedagogia do deserto: criar o vazio em torno de si, para encontra-lo em si. Não ouvir mais ninguém; não dizer mais nada; escutar seu silêncio… É preciso começar por se calar, para não mais mentir. O inverno é a primeira estação da alma.
Mas esse silêncio, a verdade nua desse silêncio, é suportável? Podemos permanecer nele por muito tempo? Não sei. (Tratado do Desespero e da Beatitude,
André Comte-Sponville)

Para quem permaneceu no texto: comecemos peneirando.

A velha pergunta sobre o que faz um game ser melhor do que outro provoca uma discussão que, confesso, já me cansou. Pouco me importa hoje os aspectos técnicos que elevam um jogo de patamar e jogam outros tantos num limbo, esquecidos ou ignorados. Peguem algumas críticas aqui do site e vejam o porquê.

Ora são os gráficos, ora as estórias, ora mecânicas de jogo, ora level design, ora personagens. Cada obra que aparece foca em alguma “novidade” em todos esses sentidos. A discussão flerta com a incoerência o tempo inteiro enquanto a única certeza de resposta repousar no gosto de cada um. E o homem é a medida de todas as respostas, Protágoras estava certo e a democracia é uma palhaçada para marqueteiros que vendem a “consciência política”.

Mas voltemos, senão vamos longe. O vício provocado pelo jogo – seja virtual ou em cartas (Magic, estou olhando para você, sumido) – também não me soa como um argumento convincente para eleger o maior. Neurocientistas e suas teorias “neutras” devem explica-lo. Dostoievski o descreve com perfeição. Contudo, como posso eu afirmar que Shadow é o maior de todos se os games que mais joguei na vida foram ou de futebol, ou “de tiro”, ou de game boy? Nunca fui viciado na obra de Fumito Ueda.

Essa falta de vício que Shadow gera é a primeira chave de compreensão que me chamou a atenção em um nível ainda inconsciente há alguns anos. Tudo o que faz deste jogo a maior obra dessa mídia – um indício de tese aqui – é exatamente o que está ausente nos games onde mais horas fiquei jogando.

A permanência de Shadow Of The Colossus se manifesta de forma única. Meu ponto de partida é: a durabilidade de um jogo está longe da quantidade de tempo em que ele é, de fato, usado.
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Das ondas

– O que você espera de homens bêbados? A gente vai e volta, no fim, só resta no cérebro uma imagem ou duas, nítidas como fotografias. (Nova História de Mouchette, Georges Bernanos)

O melhor game de todos os tempos da última semana é uma realidade mais do que palpável. Um game normal já exige uma dezena de horas de dedicação, mas em uma era onde blockbusters se atropelam sem o menor decoro, o sentimento que resta ao jogador é a da mais pura incapacidade.

O pior: uma incapacidade de fagocitar os lançamentos e de sentir a fugaz moda fervendo em podcasts. Uma incapacidade, em suma, boba, pois se corre atrás do inalcançável.

Jogos vêm e vão, definindo e redefinindo a amplidão de um game. Mario e a Nintendo fizeram e refizeram isso. FPSs revezam os postos de preferência daqueles ávidos por novidades. O mesmo ocorre entre FIFA e Winning Eleven (porque PES é demasiado gourmet). Fora desses cenários fáceis, sempre surgem elogiáveis franquias cinematográficas para nos deixar zonzos. God Of War, Uncharted, Metal Gear Solid, para não citar as genéricas que fazem o mesmo ou mais sucesso. E ainda há rpgs robustos, sandboxes que fazem o moleque gritar de entusiasmo pela liberdade que se tem no jogo – como se isso fosse bom…

Entra ano, sai ano, o molde da indústria pouco varia. E não venha achar que estou rebaixando os grandes nomes do ano à prateleira inferior. Veja bem, caro leitor, o problema é o seguinte… pensando bem…é, é exatamente isso que estou fazendo.

Sem tirar os méritos de belíssimas obras recentes – as quais aproveito ao máximo e recomendo, indies ou triple As – há um molde já dado que poucos games ousam fugir, em todos os aspectos citados lá em cima: personagens, ritmo, gameplay, mecânicas de jogo, roteiros e gráficos.

De Assassin’s Creed – o mal encarnado nos games – ao terceiro The Witcher – merecedor de todos os aplausos – a coisa não varia muito. Você pode achar isso uma generalização injusta – talvez seja, principalmente com os queridinhos games independentes. Há variedade em qualidade, cuidado e esmero na produção, o que deve ser muito bem ressaltado em qualquer crítica, pois não é pouca coisa. O molde geral de onda, todavia, insisto: permanece o mesmo. Talvez não haja nem como mudar.

Nick Suttner, autor de uma novelização reflexiva sobre Shadow que recomendo vividamente, resume esse sentimento comparando o game de Ueda com The Witcher 3:

Ironicamente, mesmo os pontos inexplorados em seu denso mapa são frequentemente anunciados com um gigante e apressado ponto de interrogação, minimizando oportunidades de pura descoberta. É pessimistamente frustrante perceber que os criadores presumem que os jogadores não terão atenção ou curiosidade para simplesmente explorar (…) Onde Witcher possui um arsenal de armas atualizáveis, Shadow possui duas (e o arco é mais um utensílio do que uma arma). Onde Witcher possui, literalmente, infinitos inimigos, de diferentes espécies, formas e tamanhos, Shadow possui dezesseis. Onde Witcher possui centenas de missões principais e secundárias, Shadow possui uma. Onde Witcher possui incontáveis páginas de conversação sobre a mitologia e história de seu mundo, Shadow possui poucas e breves dinâmicas entre entidades sem nome. Ainda assim, para um game que tem como protagonista uma espécie de detetive sobrenatural, o senso de mistério de The Witcher se enfraquece em comparação a poucos minutos de uma cavalgada nas regiões vazias de Shadow.

Para sintetizar, o problema de fundo é a abordagem.

O mesmo ocorreu com Skyrim uns anos atrás, mas o verdadeiro mestre em criar um fervor intrinsecamente passageiro em volta de si é o adolescente GTA. O êxtase da liberdade gritado aos ventos por gamers cheios de apetite por novidades no trailer e novidades técnicas e novidades nas personagens e novidades no modo online e novidades nos famigerados heists e novidades na catarse da diversão que GTA virou sinônimo.

Mas GTA sempre mingua – cada vez mais rápido – e tudo que soa como novidade em um mês vira lixo descartável no próximo. Paremos por aqui e deixemos para Pascal explicar esse pêndulo entre tédio e divertissement. Nem vou citar o besteirol dos e-sports

Se a lei do mercado é ir e vir, Shadow, em sua serenidade, marca com ferro quente uma espécie de tom sagrado capaz de nos entorpecer. É um vai e vem distinto, mais nublado, abstrato e, paradoxalmente, mais permanente do que as tantas ondas provocadas por outros jogos, ainda que tal permanência se dê em um par fotografias desfocadas e arranhadas que restam em nossa mente.
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Da conectividade

Nada é feito para sobreviver às melhorias em um mundo onde tudo está passando por constantes mudanças: a expectativa de vida de tudo, exceto dos seres humanos, segue em declínio. Piedades são fugazes, a lealdade evanescente e o rápido passo da vida nos alertam para o perigo de se apegar a qualquer coisa. Estamos dispostos a experimentar tudo pela primeira vez, independentemente das consequências. Uma atividade disputa com a outra o status de “estar na moda”: carros e televisões descartados têm sua contraparte em moral e crenças abandonadas: o olho está sempre atento aos novos modelos de produtos. (Ser Conservador, Michael Oakeshott)

Em face da histeria online e da praga do botão share, a tendência é o desastre. Imagine, por um segundo, a conectividade viva que um PS6 terá daqui dez anos. Agora imagine o sorriso no rosto de quem hoje tem cinco anos e será adolescente nessa época, quando descobrir que GTA VII permitirá a p**** toda e mais um pouco. E o desdém em olhar para trás (hoje) como se enxergasse um bando de neandertais se divertindo com um pedaço de pedra.

O mundo dos games será desse tipo de inteligentinho. É um desastre inevitável – sim, é o meu julgamento e você sempre pode olhar com lentes otimistas e achar que o bem-estar trazido pela Rockstar é uma graça divina. Há gente boba para tudo.

Exceções? Raios de luz nessa comunidade dopada? Claro que existem. Jenova Chen é uma. Fumito Ueda é a maior delas.

Fora de um discurso indie mais obscuro, a coisa já complica (salvo The Last Of Us). Ou apelamos para clássicos com alma, ainda que criados nos moldes de suas épocas – Chrono Trigger, Donkey Kong – ou procuramos com perseverança algum bálsamo na Steam.

Muita alma abstrata e pouco jogo concreto também de nada adianta. Mas vá dizer que prefere No Man’s Sky a qualquer jogo bonitão para sentir a ira nas deformadas faces dos histéricos e entusiastas gamers.

No Man’s Sky, Journey, Flower, Limbo, Chrono Trigger, Donkey Kong, The Last Of Us. Todos eles e alguns outros olham para um caminho silencioso, ainda que musical. Reflexivo, ainda que aventuresco. Eles flertam com a trilha que Shadow domina, pelos mais distintos motivos.

Proponho sondar essa trilha, e me parece que o melhor meio para fazer isso é começar com uma constatação: Shadow Of The Colossus é um game que não vocifera.
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Do vácuo

Grande parte dos educadores ainda pensa essa relação (educação/religião) pautada pelo inconsistente pressuposto de que a religião é (somente) um sintoma psicológico e social a ser exorcizado. Trata-se de submetê-la à razão democrática. Aliás, sobre essa ideia de “sintoma”, aceito a ideia de que religião seja sintoma, acrescentando apenas que desafio a inteligência arreligiosa a identificar algo “do humano” que não o seja. Isto é, que não transite pelos infinitos mecanismos de sofrimento humano, alimentando-se e reproduzindo-se a partir dele. Creio que este fato descreve uma certa condição ontológica disfuncional a priori do gênero humano. (Do Pensamento no Deserto, Luiz Felipe Pondé)

Na novelização de Shadow que citei acima, o autor aponta cirurgicamente que Shadow é definido pelo espaço entre suas linhas, o que permite que seus mais belos momentos cheguem ao jogador em um ritmo próprio, sutilmente orientando e mostrando em vez de falando. Coisa parecida me disse certa colega um dia, após uma de tantas aulas insossas na faculdade. Ao pergunta-la sobre o sentido de continuarmos a presenciar o mesmo marasmo de incontáveis aulas repetitivas e preguiçosas, tomei como resposta uma serenidade que mudou meu estado de espírito na hora: “Às vezes a aula só vale pelos momentos de silêncio do professor entre uma fala e outra. Nessas breves brechas ele é capaz de nos passar muito mais do que no discurso elaborado e afetado que vem depois, mesmo sem saber disso. Pra mim, isso basta.”.

Já foram indicadas em várias esquinas da internet as referências bíblicas onde Fumito Ueda bebeu. Não por coincidência, o texto mais sagrado da tradição judaica, o Cântico dos Cânticos, indica que o messias entra pela fresta de uma porta. Essa imagem da fresta que aparece quando menos se espera é aquela velha imagem de que Deus não está nem no céu, nem na terra (indicando aqui Política, Sociedade, Economia, etc.), mas está, sim, nos detalhes.

A indicação bíblica não é gratuita. Se não conhecemos a Bíblia e as histórias centrais da literatura grega e romana, por mais que leiamos livros e frequentemos o teatro, o nosso conhecimento da literatura não cresce, aponta Northrop Frye. E Shadow, se ainda não ficou claro, é o que mais próximo um game chegou de uma literatura de verdadeiro estofo.

Como seu próprio nome indica, o protagonista Wander é o nômade por excelência, condenado a ser andarilho mesmo que trocando o mundo “real” por esse mundo de sonho, extraordinário, sobre-humano e, portanto, completamente proibido. Ele nos personifica. Wander tenta sair de seu desespero – simbolizado pela garota morta que carrega à galope – deixando seu mundo e recorrendo aos poderes divinos proibidos à sua humanidade. Entra no mundo divino que conheceremos jogando não por meio de um portal ou de um movimento ascendente, mas exatamente por meio de uma fresta após vagar por montanhas, vales e florestas.

Do começo ao fim, a obra é pura hierofania (manifestação do sagrado). Ela não disfarça em momento nenhum, mas sabe que não será apreendida logo de cara dessa forma porque Ueda conhece o mindset do jogador: o herói, a espada, o cavalo, a princesa a ser salva e os monstros a serem derrotados. Fantasiamos sozinhos com os elementos dados e Shadow tira uma espécie de sarro da nossa ingenuidade em pensar que se trata apenas de mais uma aventura pueril.

Partindo deste ponto, o game lhe deixa sozinho como nenhum outro se propõe a fazer. Shadow almeja algo mais do que o simples entretenimento, a diversão pela distração, o barulho, a euforia cinematográfica, efêmera e usual, daquelas que consumimos no mínimo umas dez vezes por mês.

Cria-se uma sensação de idade de ouro, de uma verve mítica e épica, ainda que minimalista nas mecânicas e na proposta de ação. Elegante em sua simplicidade, faz penetrar em nós o mesmo desespero que Wander carrega, cegando-nos pelo resto da jornada naqueles campos divinos.

Todavia, o misto de contemplação e ação tenta nos despertar.

A hesitação, como contraponto ao ímpeto, logo expõe a ambiguidade do heroísmo que pensamos carregar. Ao tentar melhorar o pequeno mundo do próprio Wander, somos confrontados com o nosso próprio agito. Um agito de joystick cego, violento em busca do game zerado e da glória consequente. Basta olhar no olho de cada colosso no decisivo momento da lâmina fatalmente fincada. Dever cumprido? Satisfação ou dor?

Ao mesmo tempo em que deixamos aquele mundo mais vazio, nosso espírito – o de Wander – fica mais carregado. Nunca um game conseguiu efetivamente passar uma sensação tão profunda de ausência e de peso de forma tão constante. Lentamente, percebe-se que pegar o controle para jogar Shadow é uma caminhada implacável ao encontro do desastre.
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Do corte

É provável que precisamente na cinematografia se tente em um futuro próximo, com o máximo de felicidade, dar estatuto artístico às exigências espirituais impostas pela acatolia da civilização técnico-científica. E quem sabe se, mergulhando no individual, no humano e no contingente, o espírito ocidental não reencontrará um dia, às avessas talvez, o céu? (As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo, Constantin Noica)

Fumito Ueda está nos dizendo que na ação e no agito do joystick, de alguma forma, só pode haver perdição. Ele propõe um outro modo de perceber a própria mídia, de como um jogo deve ser encarado por seu jogador. No extremo, propõe uma visão de mundo, uma filosofia intrinsecamente trágica, daquele pessimismo que ou acaba em caos ou, como no caso, em um catártico final agridoce.

Você sabe que não deveria estar lá – mas nosso ímpeto já começou logo na vontade de conhecer essa estória. O idílico cenário é apenas mais um engodo atrativo para nos manter ali. Ueda joga com nosso diletantismo para nos manter na aventura, mesmo quando percebemos que o criador da obra está nos oferecendo, com mansidão e paz, ao sacrifício final.

Não há nada que se possa fazer quando se encarna a visão trágica de vida, a não ser aceitar o próprio destino.

Mas ainda nos debatemos, como peixes fora d’água. O controle de Wander – o nosso controle – é exatamente o de dominar aquela estória, criando motivações nas nossas cabeças ao vestirmos a pele do herói a cavalgar empunhando a espada antiga. Pouco importa se a garota morta é esposa, namorada, amante, mãe, irmã, prima ou filha de Wander. Ela pode ser tudo. Ou nada disso. Certamente, é o que nós e ele perdemos, símbolo de que o mal no mundo nem provado precisa ser. Basta ficarmos parados que a contingência encontra algum jeito de nos achar do modo mais doloroso.
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Da perda

A história da perda e reconquista da identidade é, ao meu ver, o arcabouço de toda a literatura (…) Em outras palavras, a literatura não só nos conduz à reconquista da identidade, mas também separa este estado do seu oposto: o mundo de que não gostamos e de que nos queremos afastar. O tom com que a literatura trata este mundo não é moralizante, mas o que chamamos de tom irônico. A ironia permite-nos observar o plano geral de uma situação – há ironia numa peça quando, por exemplo, sabemos melhor o que está se passando do que os personagens – e, assim, permite-nos desligar, pelo menos imaginativamente, de um mundo em que preferiríamos não estar envolvidos. (A Imaginação Educada, Northrop Frye)

Quando perdemos nossa égua perto do capítulo final de nossa jornada, faltam palavras para descrever o sofrimento que sentimos. Suttner diz que o evento é a perda total da inocência. Para algum jogador mais frio e analítico – que imagino ser impossível – a morte de Agro é um prenúncio para a perdição final a ser vivenciada. Naquele momento do jogo, contudo, a imersão já é de tamanha intensidade que o espírito de Wander se move obsessivamente em prol da melhora de seu mundo.

E quanto maior a altura, maior a queda. Como uma rima em homenagem à mecânica de seus desafios, Ueda provoca o final que todos conhecemos e que não precisa de qualquer outra palavra. Seu sentido é abscôndito e só funciona se o absorvermos em silêncio.
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Do tempo

Sim, sim, o resultado foi que eu perverti todos eles! Como é que isso pôde acontecer – não sei, mas lembro claramente. O sonho atravessou um milênio voando e deixou em mim apenas a sensação do todo. Só sei que a causa do pecado original fui eu. (O sonho de um homem ridículo, Fiódor Dostoiévski)

Se há, ou haverá, um cânone de games no futuro, onde uma elegância nobre seja valorizada em vez de ridicularizada no meio de tanto jogo bobo, é Shadow Of The Colossus quem tem a honra de inaugurá-lo.

Identificar-se com o profano em face do sagrado não é algo que se vê todo dia, e não estou me referindo apenas aos games. O brilhante Braid flerta com semelhante proposta, ainda que exagere na prolixidade e no tom. O tempo, de uma maneira ou de outra, é trágico por excelência.

Além de dialogar com nossa obsessão humana em ludibriar a morte, maravilhosamente exposta do John Gray em A Busca pela Imortalidade, Shadow encanta por repousar sua narrativa em sua quietude. O simples ato de Wander olhar para cima em quase todo duelo e deliberadamente desrespeitar seus adversários expõe, mais do que qualquer cutscene, diálogo ou texto, o derradeiro alerta que Wander ignora quando mata, por fim, o que restava de sagrado naquelas idílicas terras. Deus, definitivamente, não suportou o espasmo da nossa jornada assassina.

A encarada final do último colosso é mais um olhar de estupor, mas também de ternura e compaixão, não de punição. Entre o temor e o tremor, optamos pelo segundo pensando em melhorar nossas vidas, não importando quem estiver em nosso caminho. Shadow opta por mostrar o Caim em nós – fácil de achar, basta perdermos algo – para nos exortar à busca do nosso Abel. Um diálogo constante e atento, em suma, com o eterno, seja em forma, conteúdo, presença e ausência.

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Convocando o indivíduo por meio de seu drama metafísico visceralmente humano, o game faz por seus pares o que nenhum outro game foi capaz até então e desde então. O romântico Suttner bem descreve o que é Shadow Of The Colossus para essa ainda fresca arte: o grande mistério das florestas, o limpo sonho de gigantes e a trágica circunstância de suas quedas. É uma expressão de amor na arte, de companhias forjadas sob difíceis condições. É uma obra que repousa na confiança, nos espaços a serem explorados e na curiosidade que engendra. E além de ser uma transcendente e importante peça de arte, é uma câmara essencial no coração emocional de uma mídia inteira.

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