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Fora de Plano #59 | Sandra Bullock: Uma Análise Dramatúrgica

por Leonardo Campos
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Ela já interpretou a escritora Harper Lee, conhecida pelo romance O Sol é para Todos. Em 2007, depois de alguns anos da incursão no suspense em Cálculo Mortal, dedicou-se ao clima soturno de Premonições, filme que emula a atmosfera gótica de Edgar Allan Poe, em especial, os contos A Trapalhada e Três Domingo na Mesma Semana. Num desempenho dramático inspirado, deu brilho aos conflitos internos e externos da Dra. Ryan Stone em Gravidade, incursão repleta de metáforas psicológicas dirigida pelo eficiente Alfonso Cuarón. Ao assumir o papel que inicialmente seria de Halle Berry no comando de um ônibus ameaçado por um terrorista em Velocidade Máxima, Sandra Bullock adentrou o star system hollywoodiano.

Ela era uma candidata com potencial para o posto de namoradinha da América, rótulo que tal como outras tantas experiências na indústria, a manteve apenas como celebridade rentável e “estrela de cinema”, posições financeiramente confortáveis, mas de pouco prestígio no bojo da história da arte. Foi preciso empenho, desenho de carreira e busca por cineastas mais expressivos para que Sandra Bullock conseguisse alcançar um posto mais digno e fazer história na caudalosa e agitada indústria do entretenimento, espaço de atuação profissional que apaga o brilho de uma estrela na mesma dimensão temporal que a torna ofuscada. Por esses e outros motivos, torna-se relevante conhecer a trajetória dramática da atriz, uma história que não delineia apenas um indivíduo, mas um panorama do cinema contemporâneo de maneira geral.

Gravidade, Premonições e Velocidade Máxima: personagens versáteis, desempenhos idem

Antes de literalmente explodir em Velocidade Máxima, ao lado de Keanu Reeves, Sandra Bullock já tinha experimentado o gênero, mesclado com a ficção científica no questionável O Demolidor, de 1993, briga protagonizada por Wesley Snipes e Stallone. Vítima do psicopata interpretado por Jeff Bridges em O Silêncio do Lago, a atriz mostrou presença com protagonismo apenas na divertida comédia romântica Poção do Amor Nº 9. Trabalhou com Luis Llosa em Inferno Selvagem, incursão na selva amazônica, espécie de obsessão do cineasta, mais conhecido por sua direção em Anaconda. Ademais, as participações em Dinheiro Não é Meu Negócio, Carrascos, Assassinato no Central Park, Agitando em 57, Um Sonho Dois Amores, Quando a Festa Acabar, O Desafio Final, dentre outros, produções que se tornaram mais conhecidos depois que a atriz enfrentou os desafios de Dennis Hooper no filme de ação dirigido por Jan de Bont em 1994.

Exímio diretor de fotografia, haja vista o espetáculo imagético de Instinto Selvagem, um de seus principais trabalhos no campo em questão, o orquestrador das cenas de ação em Velocidade Máxima gostou do sabor do sucesso de seu filme e convidou a atriz para a continuação, talvez o fracasso mais gigantesco da carreira de Sandra Bullock. Velocidade Máxima 2 é absurdo como Twister, produção turbinada também assinada por Jan de Bont. Longe das ruas, a atriz precisou enfrentar a ira do vilão cartunesco de Williem Dafoe, além da reação da crítica e do público, chocado com o desempenho ruim da atriz, mergulhada em diálogos horrorosos, roteiro fraco e forçado, coadjuvantes caricatos e cenas de ação sem a intensidade do antecessor. Foi a retirada temporária da atriz do “mapa”.

A Rede, Tempo de Matar e Velocidade Máxima 2: Sandra Bullock em perigo constante!

Antes do desaparecimento momentâneo e da entrada na barca furada da sequência do filme que a colocou em evidência, Sandra Bullock esteve em Tempo de Matar, tenso drama de tribunal dirigido por Joel Schumacher, cineasta guiado pelo roteiro de Akiva Golsman, dramaturgo que por sua vez, inspirou-se no romance homônimo de John Grisham. Na produção, ela interpretou uma advogada idealista que colabora com a pesquisa e sucesso do protagonista em um caso de violência sexual contra uma criança indefesa, crime cometido numa região de fortes tensões raciais. No período, a atriz ainda participou de uma viagem com o namorado malandro em Corações Roubados, prévia de sua travessia com Ben Affleck em Forças do Destino, de 1999.

Hemingway foi a inspiração para a história pouco interessante do romance dramático de guerra No Amor e Na Guerra, produzido posteriormente ao romance natalino Enquanto Você Dormia. Além de ser perseguida por membros contemporâneos da Klu Klux Klan em Tempo de Matar, outra personagem da atriz enfrentou momentos de horror um pouco antes, em 1995, no suspense A Rede, um dos primeiros filmes a evidenciar os perigos da cibercultura numa dimensão mais doméstica, longe das ambições da ficção científica. Dirigida por Irwin Winkler, Bullock deu condução ao papel de Angela Bennett, programadora de computadores que vive de maneira solitária.

Num súbito processo ao “estilo” Kafka, ela é perseguida, bem como procurada pela polícia como uma perigosa criminosa. As pessoas ao seu redor estão em perigo e até o desfecho da narrativa, a atriz comprova a sua capacidade de assumir bem os gêneros suspense e ação. O que veio depois, entre o lançamento e o luto por Velocidade Máxima 2 foi uma série de comédias românticas e dramas pouco inspirados, alguns com destaque, outros esquecidos. Dois filmes se destacam nesta fase: a simples, mas sincera comédia romântica Da Magia à Sedução, com Nicole Kidman, e Quando o Amor Acontece, dirigido por Forest Whitaker, ambos realizados por sua produtora, Fortis’ Films, empresa que também assumiu a realização de Forças do Destino.

Há também o empréstimo da sua voz para a animação O Príncipe do Egito, superprodução que tinha Steven Spielberg como um dos “comandantes”. Na virada do milênio, a atriz fez as pazes com o sucesso. A crítica especializada indicou Miss Simpatia como produção a ser contemplada como entretenimento e os resultados positivos nas bilheterias deram sinal verde para outros projetos. No bojo do sistema industrial, a maneira que se tem de dar a volta por cima é o estabelecimento de parcerias inteligentes e usar o sucesso financeiro para exercer “poder de troca”.

Com roteiro construído por Marc Lawrence, o filme conseguiu justificar o seu sucesso por vários motivos, dentre os três principais, o carisma de Sandra Bullock, a história de transformação da feia que fica bela, algo que o cinema sistema hollywoodiano “venera”, além dos diálogos, escritos de maneira inteligente, cheios de referências cinematográficas e piadas inteligentes. O sucesso gerou uma continuação, totalmente desnecessária, alguns anos depois. Antes de ridicularizar os concursos de beleza estadunidenses, rizomas espalhados em escala global, Bullock trabalhou no drama de superação 28 Dias, letárgico e razoável demais, trajetória de uma alcoólatra que não conseguiu projetar a chama necessária para reacende-la no mapa cinematográfico.

Sandra Bullock em perspectiva: 28 Dias, Amor à Segunda Vista e Miss Simpatia 2!

Amor à Segunda Vista foi outra parceria da atriz com o texto de Marc Lawrence. Divertida e cativante, a comédia romântica investiu no carisma da atriz com outro ator competente no campo do humor: Hugh Grant. O resultado é uma série de situações embaraçosas, mas sem as costumeiras piadas escatológicas das irritantes comédias estadunidenses. Em 2002 a atriz embarcou no drama Divinos Segredos. Mesma época do suspense Cálculo Mortal, dirigido pelo alemão Barbet Schroeder, filme em que a personagem de Bullock vive um drama semelhante ao de Jodie Foster em O Silêncio dos Inocentes, tendo a função de agente policial como pilar para sustentação de seus traumas do passado.

Recebido de maneira morna, o suspense possui uma atmosfera interessante no que tange aos elementos detetivescos, mas expande demais os conflitos e apresenta subtramas dispersivas, oriundas do roteiro de Tony Gayton, inspirado no mesmo caso que Alfred Hitchcock contemplou no clássico Festim Diabólico. Apesar do fraco desempenho, o filme demonstrou o interesse de Sandra Bullock em flertar com outras possibilidades em sua carreira, distante da imagem de boa moça, dona de comportamento travesso, caretas e outras expressões que não lhe permitiam ser levada à sério pelos críticos de cinema.

Depois desse período, outras produções foram ensaiadas, pontas em pequenos filmes, como por exemplo, a brevíssima, mas significativa participação no drama independente Obsessão, estreia de Kevin Bacon na cadeira de diretor. Com toques de produção experimental, Bullock interpreta a Sra. Harker, personagem com pouco tempo em cena. Lançado em 2005, o filme sobre a relação absurda de uma mãe superprotetora e seu filho, absorvido pela obsessão alheia, chegou ao Brasil no formato DVD, sem exibição nos cinemas. Com produções pouco expressivas no cinema há bastante tempo, a atriz decidiu projetar novos rumos para a sua carreira. Era preciso esquecer o passado recente, tornar os fracassos expressões de aprendizagem e enfrentar outros desafios.

Os bons desempenhos em Obsessão, Confidencial e Crash – No Limite

Ciente do desenvolvimento de um filme sobre os relacionamentos humanos estadunidenses posteriores ao 11 de setembro, Sandra Bullock basicamente agenciou a sua participação em Crash – No Limite, dirigido e escrito por Paul Haggis, trama com montagem de histórias paralelas em Los Angeles, repleta de críticas sociais ao sistema político, ao tráfico de drogas, aos problemas oriundos do preconceito e dos estereótipos racistas, dentre outras questões. Criticado por alguns por ser um filme que se enquadra no que alguns idiotas atuais chamam de “mi-mi-mi”, o drama não é uma obra panfletária sobre os temas apontados anteriormente, mas um excelente exercício da linguagem cinematográfica, em especial, na edição e na direção de fotografia.

Na mesma época, a atriz interpretou a escritora Harper Lee no drama Confidencial, cinebiografia menos conhecida de Truman Capote, interpretado por Toby Jones, personagem de Philip Seymour Hoffman em Capote, lançado pouco tempo antes. Dirigido por Douglas McGrath, pouco experiente na direção, o filme sobre o jornalista escritor do livro À Sangue Frio não possui o mesmo glamour e orçamento da produção de Bennet Miller, além de ser razoavelmente vagante ao buscar seu foco narrativo central. Ainda assim, é uma produção com expressão cinematográfica que merece integrar uma boa posição na lista de filmes da atriz.

Pouco antes, a atriz reencontrou Keanu Reeves no alegórico A Casa do Lago, refilmagem de um drama coreano sobre dois apaixonados que precisam lidar com uma inconsistência temporal. Eles estão separados por dois anos. Ela em 2006, ele em 2004. Trocam cartas e precisam arranjar uma maneira de se encontrar. Com trilha sonora, design de produção e direção de fotografia eficientes, a produção flerta com os relacionamentos contemporâneos, pois as pessoas estão próximas fisicamente uma das outras, mas distantes por conta dos seus empenhos na edificação de um relacionamento.

Essa é uma das possíveis leituras para a metáfora temporal do filme, situação dramática que também esteve em Premonições, suspense leve com toques visuais góticos sobre uma esposa dedicada que acorda um dia e é avisada pela polícia que o seu marido morreu num acidente de carro. A surpresa? No dia posterior, ela descobre que ele está vivo, morto no outro, vivo de novo. Basicamente, os seus dias da semana estão embaralhados. Em 2009, Sandra Bullock viveu três experiências cinematográficas que merecem destaque nesta análise: o retorno ao âmbito das comédias românticas em A Proposta, a realização do estranho Maluca Paixão e do drama “família” Um Sonho Possível, os dois últimos, responsáveis por suas indicações ao Framboesa de Ouro e o Oscar, respectivamente, no seguinte.

Os bons desempenhos em Um Sonho Possível, A Proposta e Maluca Paixão

A atriz fez questão de buscar o seu prêmio por pior atriz no dia anterior ao momento de consagração na cerimônia do Oscar, reconhecimento merecido enquanto atriz, mas num filme cheio de boas intenções, algo que nos deixa bastante desconfiados, afinal, o inferno está cheio dos bem intencionados, não é mesmo? Versão menor do personagem de Meryl Streep em O Diabo Veste Prada, a protagonista de A Proposta comporta-se como “malvada” durante boa parte do filme, mas revela-se um ser humano menos esférico e ambiciosa que a maligna e esperta Miranda Prisley.

O resultado enquanto romance funciona muito bem, mas uma escolha ousada ao final poderia reduzir os dados de bilheteria, mas entregaria um personagem bem mais intrigante. Importante observar que o desinteresse da atriz pelas comédias românticas refletia a própria condição do gênero que já tinha deixado de ser a galinha dos ovos de ouro de Hollywood. Isso talvez reflita a falta de empenho da atriz em articular-se por um roteiro melhor. No filme que lhe rendeu o Oscar, ela trafega numa narrativa que funciona como versão de Grandes Esperanças, de Charles Dickens, para os contemporâneos.

Tudo é muito óbvio e a bondade é exagerada demais. A instável criadora de palavras-cruzadas que atravessa o país em busca do homem que lhe atraiu é uma pouco inspirada e todo o elenco parece deslocado. Merece o esquecimento. Depois de tantas experiências novas em sua carreira, alguns dramas pessoas retiraram a atriz mais uma vez dos holofotes midiáticos, desta vez, por decisão da própria Sandra Bullock, envolvida numa trama digna de tabloides que salivam por barracos da vida alheia.

Tão Forte e Tão Perto prometeu alavancar mais uma indicação ao Oscar, mas a direção de Stephen Daldry, inspirado e mágico em As Horas e Billy Elliot, não alcançou o mesmo brilhantismo neste filme sobre um tema indigesto para os estadunidenses: o fatídico 11 de setembro, resultado de conduções políticas históricas obscuras entre o governo Bush e a família Bin Laden, acontecimento que ganha desdobramento bem didático no discurso ácido de Michael Moore. Com Tom Hanks, Max von Sydow e Viola Davis, o drama não teve a sua credibilidade dramática descartada pela crítica, mas passou pouco percebido pela mídia e hoje é um filme dificilmente mencionado em retrospectivas, comentários, etc. Sandra Bullock deu mais um breve intervalo para algo maior: ser dirigida por Alfonso Cuarón.

O hiato fez bem, pois permitiu que a atriz se dedicasse ao denso, complexo e bem sucedido Gravidade, uma travessia cinematográfica repleta de simbologias, conduzida por um roteiro bem escrito, direção bem executada, fotografia com manipulação formidável da imagem e mescla de boas escolhas narrativas, trabalho que lhe rendeu a sua segunda indicação ao Oscar. Não ganhou, mas permitiu que Sandra Bullock mantivesse em sua filmografia, experiências mais significativas no que tange ao campo da arte. Ela já não era exclusivamente uma atriz do entretenimento ligeiro, mas alguém com traços curriculares mais encorpados.

Antes do filme, houve a participação em As Bem Armadas, bobagem em parceria com Mellisa McCarthy provavelmente realizada para alimentar o ócio. Especialista em Crise foi lançado diretamente em DVD no Brasil. Divertido e com diálogos irônicos, o filme apresenta uma leitura sobre os bastidores da política, numa história realizada na América do Sul, num local que poderia ser a metáfora dos brasileiros diante das acusações de golpes políticos dos últimos anos, estampadas em veículos informativos locais e estrangeiros. Na trama, Sandra Bullock interpreta Jane Bodine, personagem tratada como “calamidade”. Ser humano apático e sem interesse de se relacionar por meio de convenções impostas pela sociedade, mas que em seu campo de atuação, age como uma felina, observadora das relações e sempre um passo à frente dos opositores de seus clientes.

Dirigida pelo versátil David Gordon Green, responsável por resgatar Michael Myers em Halloween, Sandra Bullock havia emprestado mais uma vez a sua voz para uma animação em 2015, em Minions, trabalho prévio aos seus dois últimos desempenhos nas telas: Bird Box e Oito Mulheres e Um Segredo.  No spin-off da trilogia Ocean’s, dirigida por Steve Soderbergh, a comédia sobre o planejamento e execução de assaltantes inescrupulosas resgatou o clima dos filmes masculinos protagonizados por George Clooney, mas não passou de saudosismo. As escolhas narrativas são basicamente semelhantes à sua versão masculinas, tendo a escalação de Rihanna, Helena Bonham Carter, Anne Hathaway, Mindy Kalling e Cate Blanchett como diferencial, isto é, a condução da história sob o ponto de vista feminino.

A propaganda e a política em Especialista em Crise, o crime em Oito Mulheres e Um Segredo e as alegorias bizarras da contemporaneidade em Bird Box (Às Cegas)

Em dezembro de 2018, Sandra Bullock estabeleceu sua parceria com a NETFLIX para veiculação do suspense Caixa de Pássaros, tradução intersemiótica dirigida por Susanne Bier, cineasta guiada pelo roteiro de Eric Heisserer, inspirado no romance homônimo de Josh Marleman sobre um mundo pós-apocalíptico dominado por criaturas que não podem ser vistas, pois carregam em si as trevas da nossa sociedade e levam os que as vislumbrarem à perturbação e suicídio. De olhos vendados, a personagens e seus dois filhos enfrentam diversos desafios, única experiência mais próxima do terror da atriz que tal como Julia Roberts, não gosta de ser aterrorizada.

O que temos para agora, Sandra Bullock? Depois de Bird Box, a atriz assumiu o projeto de uma série dramática e nostálgica sobre as suas memórias dos anos 1980. Precisamos esperar para conferir o que a atriz nascida em Arlington, na Virginia, nos ofertará. Com sangue artístico a percorrer as suas veias desde que nasceu, haja vista a inspiração na mãe, Helga Bullock, cantora de ópera que durante as suas turnês, possibilitou as viagens europeias da atriz em sua juventude, experiência que a trouxe visão de mundo e conhecimento vasto sobre o que as pessoas intitulam de diversidade cultural, Sandra Bullock é uma atriz consciente de suas habilidades e demonstrou, ao longo de sua trajetória dramatúrgica, o interesse de evoluir enquanto artista e ser humano.

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