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Fora de Plano #68 | Jairo Ferreira: Gênio Esquecido do Cinema Brasileiro

por Frederico Franco
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O cinema nacional sempre foi caso de polícia“, clamou um dos personagens de Rogério Sganzerla em O Signo do Caos. Estaria o cinema brasileiro em constante estado de investigação? O movimento de introspecção é tarefa sempre vigente para o realizador do Brasil. Uma das mais célebres investigações policiais da sétima arte nacional diz respeito a Humberto Mauro. Foi apenas nos anos 1960, com os discursos verborrágicos de Glauber Rocha e a arqueologia acadêmica de Jean Claude Bernardet e Paulo Emílio Salles Gomes, que Mauro ganhou notório (e devido) reconhecimento como pedra angular de todo e qualquer movimento estético do audiovisual brasileiro. Propõe-se, aqui, com consciência das claras limitações deste mero escrito, uma possível revisita a um ponto específico da história do cinema brasileiro: o cinema marginal; mais especificamente, ratificar a importância de Jairo Ferreira para este movimento. 

Por algum motivo indeterminado e misterioso, Ferreira, um dos principais tradutores do tropicalismo e da marginália de Hélio Oiticica para as telas do cinema, é, de certo modo, ignorado pelos grandes pólos de estudo cinematográfico. Como antes dito, Jairo Ferreira se encaixa dentro do cinema marginal, ou Boca do Lixo, cujos nomes de Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci e Júlio Bressane se sobressaem. Além de diretor, Ferreira realizou uma importante obra de estudo acerca de seu movimento estético. Cinema de Invenção, livro com caráter ensaístico, fugindo de um academicismo vigente nos estudos audiovisuais, Jairo Ferreira cria, a partir de mosaico de citações, uma análise aprofundada daquilo que chamaria de “experimentalismo brasileiro“.

Vagando pelos anos de chumbo da ditadura empresarial-militar brasileira, Jairo Ferreira e os marginais viam em sua realidade um prato cheio para as recorrentes sátiras e películas farsescas. Fugindo daquilo chamado de alta cultura, os filmes dessa corrente faziam uso de uma linguagem crua, mesclando ficção e documentário, dando voz a heróis macunaímicos que nada se assemelham aos protagonistas das grandes produções nacionais ou internacionais. 

Enquanto Sganzerla, Tonacci e Bressane têm suas principais obras posicionadas na ficção, como Copacabana Mon Amour, Bang Bang e Matou a Família e Foi ao Cinema, Jairo Ferreira parte de outro lugar: do documentário. A primeira vista, sua abordagem completamente escalafobética e desengonçada chama a atenção do espectador para compreender as confusas imagens e o discurso debochado do diretor. O próprio Ferreira em O Insigne Ficante afirma que “cultura começa com cu“, dando a entender seu apreço por um cinema vulgar que pouco tem preocupação com uma precisão estética ou narrativo.

Ao mesmo tempo, valoriza uma cultura estritamente nacional, apoiando os valores do cinema feito no Brasil. Dialoga diretamente, também, com o discurso de Paulo Emílio Salles Gomes em defesa da cinefilia, que considerava fundamental para a criação de um cinema inventivo. É perceptível, assim, um comportamento metalinguístico na obra de Jairo Ferreira. Em Nem Verdade Nem Mentira, além de utilizar do contexto pós-moderno de pós-verdade, questiona a própria narratividade do cinema; ao passo em que, em Horror Palace Hotel, desnuda a imagem do realizador cinematográfico, transformando-os em almas penadas que bebem e conversam em um simples bar.

Ao fazer um filme para os “anarquistas da forma“, Jairo Ferreira faz um importante posicionamento perante a linguagem cinematográfica. O Vampiro da Cinemateca é uma perfeita mescla entre uma encenação que preza por uma exaltação do cinema nacional mas também não deixa de lado uma crítica ao cinema novo – apontando que esse voltava suas atenções para o conteúdo e não para a forma. O que Jairo Ferreira defende é que o conteúdo de uma obra pode ser completamente vago, contudo uma forma inventiva pode vir a tornar o filme em uma legítima obra-prima. Na obra aqui referida, o diretor apresenta seus companheiros de profissão e expõe seus depoimentos acerca do presente e do futuro do audiovisual brasileiro. Ferreira não vê problema em obstruir as falas a partir de um voice over completamente sarcástico, chegando a debochar dos entrevistados. A partir desse compilado, o espectador suga as influências ali filmadas da mesma maneira que um vampiro drena suas vítimas.

É razoável, ainda, relacionar a filmografia de Jairo Ferreira com a estética da fome, proposição sessentista que permeou o âmbito cultural do Brasil na época. A partir de Glauber e, quiçá, de Fanon, ocorre nas obras de Ferreira (e nos marginais como um todo) uma inversão dos valores burgueses vigentes. Indo de encontro do tecnicismo e da exaltação seletiva de uma parcela da cultura nacional, o diretor vai em busca de uma personagens à margem da indústria – como Mojica, Reichenbach e outros. A violência revolucionária da câmara de Jairo Ferreira é, definitivamente, uma maneira de expôr toda a pujança daquilo que o sistema oprime por meio da força.

Interessante pensar que Jairo Ferreira passou sua carreira toda buscando jogar os holofotes para os escondidos e acabou por tornar-se um aos olhos da história do cinema brasileiro. Como dito no princípio, este breve escrito é um caso policial que se mantém em aberto, não arquivado, nem solucionado. Reabilitar Jairo Ferreira, no entanto, é um movimento de importância ímpar para este que vos escreve. A potência do cinema vulgar, marginal e famélico do diretor é um aspecto a ser admirado e visto como referência ao passarmos por tempos obscuros em que a verdadeira cultura do Brasil é vista como algo nefasto.

Seria Ferreira nosso poeta maldito perdido? Escondido por entre os escombros da história? Seu versos repletos de beatitude são, definitivamente, marcas de uma vanguarda que deveria ecoar de maneira caótica em nosso cinema. O papel de Jairo Ferreira é muito mais importante que esta coluna. Ou que um artigo. Ou que um livro. Ou que três volumes. 

Caso em aberto.

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