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Fora de Plano #83 | A Natureza de uma Mudança

Como é linda, a natureza...

por Luiz Santiago
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Um ano e um dia atrás, em 19 de janeiro de 2021, uma criança perturbada chamada Quevedo Henrique veio me fazer um convite. “Que tal se escrevêssemos um conto para um concurso obscuro, com NATUREZA como tema-gerador?“. Eu disse ao ninfeto que nunca tinha escrito nada com essa temática e que seria interessante experimentar. Assim surgiu o conto que vocês lerão abaixo, escrito em 20 de janeiro, exatamente no dia em que a OMS decretou Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional para a Covid-19.

Terminou que nós não participamos do tal concurso, mas os contos estavam escritos… e foram engavetados. Então eu disse para Quevedo, não uma, não duas, não três, mas quatro vezes: “Quevedo, vamos publicar nossos textos no site, num Fora de Plano? Pra que ficar guardado esses negócios aqui? Bora jogar lá pro povo ler!“. Mas Quevedo me ignorou completamente. E aqui estou eu, no aniversário de um ano de escrita desse negocinho, trazendo à luz, para todos vocês, um filhote que nasceu em um momento de tensão e apreensão. Mal sabia eu o que me esperava…

A Natureza de uma Mudança

Nunca se soube realmente como começou. Nos últimos meses, os cientistas ainda vivos limitavam-se a olhar para as câmeras e dizer que as pistas que sobraram para estudo eram dúbias e, por todo ângulo que se olhasse, inacreditáveis. Mas isso todo o mundo já tinha entendido. Todos se lembravam de como o mundo passou a olhar a natureza depois da noite de 31 de dezembro de 2022.

Tanto a literatura histórica quanto a biológica e a medicinal chamariam os primeiros pacientes internados em São Paulo de “Os Primeiros 132”. Tudo avançou tão rápido e tragicamente, que mesmo os mais resistentes a qualquer tentativa de explicação sobre o início da tragédia deixariam de fazer barulho e simplesmente aceitariam o termo. O número, no entanto, era preciso. Na fatídica noite, 132 pacientes foram internados, em diferentes hospitais da capital paulista, com problemas respiratórios graves e com inúmeras manchas escuras espalhadas pelo corpo. A nova doença passou de suspeita de mutação violenta do coronavírus para algo sem precedentes em nossa História. Em três horas, os infectados viram aumentar as manchas que formavam finas camadas, podendo ser retiradas com a mão como se fossem poeira, como se fossem… um tipo de bolor.

A profusão de informações e desinformações era estarrecedora até para quem já estava acostumado. Mas nenhum meio de comunicação dizia realmente o que todo mundo estava constatando a olhos nus, à medida que novos infectados apareciam, à medida que os médicos e cientistas do mundo inteiro não sabiam o que dizer. Como sempre, as denominações populares vieram do Youtube, com vídeos intitulados “O Apocalipse: pessoas apodrecendo vivas” ou “A natureza está se vingando de nossa espécie?”. Poderia ser clickbait, exagero, fake news, teoria da conspiração. Mas de São Paulo para o restante do Brasil, relatos e vídeos de pessoas apresentando algo parecido com fungos filamentosos na pele tornaram-se a norma. E teria se tornado o assunto do milênio se a fase seguinte não tivesse sido ainda pior. Centenas de milhares de pessoas eram vistas nas ruas urrando de dor, expelindo toda espécie de líquidos pelos mais diversos orifícios. Soube-se, depois, que a microbiota dos intestinos desses homens, mulheres, velhos e crianças tornou-se uma verdadeira máquina de guerra contra o corpo, dando origem a inflamações e gerando bactérias até então desconhecidas; levando essas pessoas à morte em dois dias, após intensa agonia.

O ciclo das infecções veio a seguir, com os casos igualmente anormais de tenebrosas feridas malcheirosas na cabeça, de onde pululavam um número agonizante de tapurus. Os remédios deixaram de fazer efeito. O Brasil fedia a pus. Os hospitais tornaram-se palácios de baratas e moscas que se proliferavam de modo exponencial e nenhum dedetizante ou material de limpeza parecia afugentar os bichos ou o mau cheiro. Nas ruas, urubus rondavam os corpos que o IML não conseguia retirar e hordas de ratos eram os pedestres das grandes avenidas e rodovias. Nas casas, cães e gatos morriam aos montes. Os pulgões e as cochonilhas das plantas infestavam os vasos e caiam pelos móveis. Formigas, aranhas, pulgas, carrapatos, cupins e pequenos escorpiões amarelados completavam a fauna caseira que enlouquecia as pessoas, não sabendo mais como fazer para matar tanto bicho em tão grande quantidade. Nenhum veneno parecia cumprir o seu papel.

O Brasil foi isolado. As ajudas humanitárias não entravam mais no país. Eram raros os médicos e cientistas que se voluntariavam para trabalhar no front animalesco e catastrófico que varria a pátria. Gafanhotos e serpentes completaram o golpe, multiplicaram-se inexplicavelmente e tomaram conta tudo, destruindo cada espaço ocupado e matando milhões de pessoas no processo, deixando todo o restante traumatizado.

***

Tudo eram flores naquele final de dezembro: o primeiro ano do Século 27. A Lei Federal de “uma árvore para cada nascido e uma árvore para cada morto” tornou o Brasil um invejável paraíso verde, que da vastíssima natureza retirava milhares de novas matérias-primas para medicamentos e pesquisas que a comunidade científica internacional sequer havia arranhado a superfície. E mesmo depois de tanto tempo, ninguém sabia realmente como tudo havia começado. Relíquias arqueológicas digitais mostravam antigos cientistas limitando-se a olhar para as câmeras e dizendo que as pistas que sobraram para estudo eram dúbias e, por todo ângulo que se olhasse, inacreditáveis. Mas isso todo mundo entendia, naqueles dias. A História se lembrava vivamente de como todo mundo passou a olhar a natureza depois da noite de 31 de dezembro de 2022.

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