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Fora de Plano #86 | Olhar de Cinema 2022

Um diário de viagem.

por Michel Gutwilen
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Bem, tudo que eu já tinha que falar com uma visão mais impessoal e objetiva da edição de 2022 do Olhar de Cinema, ou seja: sobre a estrutura do evento, dos cinemas, da logística,  da cidade de Curitiba etc., já foi abordado em nosso In Loco. Igualmente, sobre o que pude sentir sobre a proposta curatorial desta edição, usei o espaço do Top 10, em que fiz um panorama geral sobre todos os filmes. Então, neste espaço, me resta narrar algumas questões mais pessoais, histórias bem humoradas, ensinamentos, desafios etc.
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Aquilo que só o festival presencial proporciona (ou uma história de infarto).

É claro que uma versão online de festival possui seus prós, principalmente pelo caráter inclusivo em permitir que filmes vistos regionalmente e na sua maioria em metrópoles cheguem a pessoas do interior ou de regiões periféricas que muitas vezes nem acesso ao cinema de blockbuster possuem, imagine a festivais. Mas para mim, que já tinha frequentado versões presenciais, também defendo que existem charmes insubstituíveis da sua vivência que rendem boas histórias para contar. Eu, por exemplo, sou uma pessoa que gosto de adrenalina e costumo ficar ligado nos 220v, então há algo de desafiador no desbravamento urbano do festival, nessa correria de acabar um filme em um cinema, ter uma sessão começando daqui a 15 minutos em outro lugar que o trajeto demora 10 minutos pra chegar. Experiências extra fílmicas. 

Ok, mas nem tudo são flores. Com a missão de ver 4 filmes por dia, em que todos comem sempre muito próximos um do outro, eu tentava fazer um malabarismo para comer rápido. Além disso, quando almoçava, eu sabia que só iria comer de novo à noite, então escolhia self services para fazer um prato de troll justamente para me sustentar por horas. O que eu calculei mal foi que bater um pratão de comida e imediatamente ter que correr de uma sessão para outra não era uma boa ideia, ainda mais nessa cidade em que TODAS AS RUAS SÃO LADEIRAS. Houve uma vez que fiz isso e cheguei passando mal na sessão, com sensação de infarto (ok, vale dizer que sou hipocondríaco), então passei os primeiros quinze minutos do filme medindo meus batimentos cardíacos até tomar um calmante que tinha comigo e lá se foram meia hora de filme dispersas até o efeito de relaxamento bater — ah, não foi um filme que escrevi crítica, foi um clássico que estava sendo exibido no festival. Depois disso, passei a calcular melhor meus horários e também a quantidade do que eu comeria nas refeições.
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Minha rotina de crítico (ou como corri o risco de virar zumbi)

Para quem está interessado em saber um pouco da minha rotina crítica no festival, eu comecei os primeiros dias pegando quatro sessões, o que me fazia sair do hotel às 13h e só voltava por volta de 22-23h. Entre as sessões, normalmente haviam brechas que me permitiam de 10 a 60 minutos de descanso. Nesses intervalos, inicialmente eu já tentava começar o texto, pelo celular mesmo (o laptop ficava no hotel), mas essa ideia não foi muito para frente porque depois de um tempo eu percebi que esse tempo era importante para socializar com os outros críticos que acabaram de ver o filme, e até para relaxar. Não dá para ser o workaholic que não interage. Então, basicamente, eu começava a escrever mesmo lá pelas 23h, tendo me imposto o horário limite de ir dormir até 2h. Normalmente, dava pra acabar um texto ou deixá-lo bem encaminhado. No dia seguinte, eu botava o despertador para às 6h, o que me deixava com apenas 4h de sono, e aí eu tinha todo o tempo da manhã para escrever o segundo texto e talvez começar o terceiro antes de começar novamente o ciclo às 13h. 

Comecei assim, mas a verdade é que no quarto dia a conta biológica bateu completamente. Entrei em modo zumbi, cérebro já não funcionando direito, mal humor, imunidade física baixando (ainda mais no frio de Curitiba para um carioca)  e, naquele dia, tomei a decisão de abandonar as duas sessões no período da noite, não escrever nada e ir dormir de 21h até 8h. Estrategicamente, foi a melhor decisão que tomei, dando um reboot no sistema que fez parecer que eu tinha acabado de chegar no festival, o que me deu energias para sua segunda metade. Por outro lado, um efeito colateral foi que isto atrasou minha cobertura. Quando eu estava na segunda-feira, eu ainda estava escrevendo sobre os filmes de sábado; na terça, sobre os de domingo e assim vai. Isso é até curioso porque faz com que você exista em duas linhas temporais diferentes, vendo novos filmes naquele dia mas também pensando e lembrando dos filmes vistos dois dias antes. Inclusive, esse distanciamento compulsório também me permitiu encarar os filmes após uma certa maturação (ainda que pouca), diferente das impressões viscerais do pós-sessão.

O que aprendi também foi lutar contra o perfeccionismo e que é impossível travar, porque isso pode gerar uma bola de neve. Nas vezes em que travei, eu parava o texto na altura em que ele estava e já começava outro, para depois tentar retornar a ele no dia seguinte, o que me levou a ficar com três textos pela metade em dado momento do festival. Se você também não está muito confiante das ideias e sente que precisa de mais tempo para refletir, é preciso ser menos vaidoso e tentar descrever suas emoções mais honestas do momento, ainda que admitindo a confusão, sempre sendo honesto com o espectador de que sua experiência na crítica faz parte de um contexto de festival de cinema in loco, não uma análise isolada que você pode refletir por semanas e não viu nenhum outro filme durante.
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Uma nova experiência espectatorial (ou como viajei na minha mente em silêncio)

Foi neste Olhar de Cinema que tive a oportunidade de ver pela primeira vez filmes do Cinema Mudo em uma tela de Cinema. Ok, mas e daí? E daí que boa parte da minha educação cinematográfica e os filmes que assisti deste período foi através do Youtube, já que muitos deles estão em domínio público. Boa parte deste acervo está acompanhado de uma trilha sonora, sendo algumas até escolhas que passam por uma curadoria técnica, mas outras que são totalmente aleatórias. No Olhar de Cinema, me fascinou a experiência de ver filmes completamente mudos, sem nenhum acompanhamento. A sessão muda é algo que ressignifica completamente a experiência do espectador e que exige uma maturidade ou concentração acima do normal, ainda mais sendo filmes experimentais, pois não há um fio narrativo ou um grande cinema de atrações, como as comédias de Chaplin ou Keaton que facilitam o acompanhamento do espectador. Afinal, a trilha sonora, de certa forma, conduz o espectador pelas imagens, como uma linha auxiliar. Já na experiência completamente muda, há um maior espaço para dispersão, com você olhando para as imagens e viajando nos próprios pensamentos. Admito, foi o que aconteceu nas três sessões mudas que fiz, com Pelo Rio Abaixo (Su Friedrich), At Land (Maya Deren) e A Concha e o Clérigo (Germaine Dulac). Me dispersei mais do que queria e reconheço que é uma sensibilidade a ser treinada, mas valeu demais a experiência.
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Todos no mesmo espaço (ou eles estão te vigiando)

O hotel cedido aos participantes do Olhar de Cinema pela organização é um só. Ou seja, todas as tribos: críticos, atores, diretores e equipe dos filmes, pessoas da produção do festival, juris e curadores habitam o mesmo espaço. Por um lado, isso é ótimo, pois estabelece uma verdadeira rede de relações, em que eu sendo crítico, sento para tomar café da manhã em uma mesa que estão conversando um crítico, um diretor e uma pessoa do júri. Há abertura para isso, não há exatamente separação de classes. Ou, de repente, até aconteceu de eu chegar para pegar um chá na recepção do hotel meia noite, lá estar algum convidado do festival, eu não saber quem ele é, mas começar a conversar e só no meio do papo descobrir o que aquela pessoa faz. 

Mas… cuidado, não dá para cometer gafes também. Estar em um festival de Cinema sendo um crítico de cinema é que nem ser Joseph K. em O Processo, de Kafka… eles estão por todos os lugares. Não é recomendável falar alto de um filme que você não gostou, pois as chances de uma pessoa que faz parte dele estar do seu lado são consideráveis. Não, graças a Deus não aconteceu comigo, mas eu olhava para todos os lados quatro vezes antes de fazer algum comentário mais malicioso como se estivesse sendo espionado por uma rede de espiões. 

Brincadeiras à parte, isso também acabou sendo enriquecedor para minha experiência enquanto crítico de Cinema. Ser crítico na internet que nunca trabalhou em um set na vida é fácil, tampouco quem nunca conheceu as pessoas envolvidas por trás dos projetos. A distância protege (ou facilita, dependendo do ponto de vista). No festival, teve alguns filmes brasileiros que eu não gostei muito e ainda não tinha escrito meus textos sobre eles, mas durante os dias parecia que os(as) seus(sua) diretores(a) surgiam na minha frente como uma maldição, gerando o sentimento de culpa católica em mim. Aí eu via a pessoa ali, em carne e osso, e pensava: “nossa, coitada, eu vou ter que falar negativamente do seu filme”. Admito que por uns 2 dias, joguei os textos para frente e comecei outros. Depois, em uma conversa com o diretor Rodrigo de Oliveira — antes de começarmos nossa entrevista para falar de seu filme Os Primeiros Soldados — acabei trazendo o assunto para ele, pois ele já foi crítico de Cinema no passado, e ouvi conselhos e reflexões que foram fundamentais para que eu perdesse esse travamento. Afinal, a crítica negativa não é uma maldade, todos estão no mesmo barco, que é o desejo de um bom Cinema brasileiro. Enfim, ser honesto consigo e seus sentimentos, sempre, assim nunca deixar de falar o que achou de um filme por ter visto o diretor pessoalmente e, quiçá, até ter trocado uma ideia com ele, mas fazer a crítica negativa (ou melhor, construtiva) respeitando o Outro que há do outro lado, sempre.

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