Para quem já leu algumas das minhas críticas sobre obras que retratam esportes, como Lakers: Hora de Vencer e Senna, devem ter percebido que tenho um carinho por modalidades esportivas próximo do meu apreço por universos artísticos. A verdade é que eu gosto de quase tudo, dos mais famosos como futebol, basquete e vôlei, até os esportes olímpicos mais nichados como ginástica, atletismo, canoagem e afins. Sempre tive vontade de escrever sobre essas modalidades, mas com receio de talvez não ter a melhor abordagem textual, porque falar sobre esportes me parece algo mais aproximado de jornalismo do que de crítica artística. Não sei se o espaço do site e os leitores têm interesse nesse tipo de material também. Mas depois do jogo recente entre Brasil x Equador, que marcou a primeira partida oficial do técnico italiano Carlo Ancelotti à frente da seleção, decidi dar pitaco na discussão que circula o futuro da seleção brasileira, muito por conta desse debate soar cada vez mais revelador de problemas do passado e de um tópico que falamos muito aqui no site: nostalgia.
Para quem está por fora do que estou falando, segue um breve contexto: a seleção brasileira vem enfrentando dificuldades há um bom tempo para ganhar troféus, da local Copa América até a cobiçada Copa do Mundo. Desde o vexame nacional com o 7X1 em 2014, a Canarinha passou por diversas reformulações, mas até o momento com apenas um título – a Copa América de 2019 -, além dos ouros olímpicos em 2016 e 2020, e muitas decepções no torneio mundial, principalmente a derrota melancólica contra a Croácia em 2022. Com a saída de Tite do cargo de treinador, a CBF desperdiçou quase três anos do ciclo para a Copa do Mundo de 2026 com uma dança de cadeiras entre diferentes técnicos brasileiros – Ramon Menezes, Fernando Diniz e Dorival Jr. -, sempre na expectativa de conseguir trazer um treinador estrangeiro, que só chegou agora faltando apenas um ano para o torneio que acontecerá no Canadá, Estados Unidos e México.
A contratação de Ancelotti é sim um marco futebolístico, com um treinador de primeira prateleira assumindo a seleção, algo que talvez não tenhamos visto desde Telê Santana, mas é uma chegada que mascara problemas mais profundos. Afinal, por que estamos tendo tantos transtornos com a escola de técnicos brasileiros? Certamente não é um contratempo sul-americano, já que a Argentina pipoca grandes treinadores o tempo todo no cenário internacional, e não pode ser uma adversidade de falta de investimento, considerando que o Brasileirão é provavelmente o maior entretenimento das massas brasileiras, gerando receitas estratosféricas. Então, por que raios nenhum técnico brasileiro atualmente parece capacitado para assumir a seleção brasileira ou até para ter uma carreira de sucesso nas maiores ligas europeias? Penso que a resposta caminha por diversas tangentes, muitas das quais não tenho o conhecimento e a proximidade profissional para abordar, mas como um espectador olhando de longe, é notável que essa falta de sucesso nacional parte de obstáculos culturais, midiáticos e administrativos.
O primeiro ponto que gostaria de abordar é o maldito saudosismo. Se valoriza no Brasil o futebol arte, o jogo bonito e as firulas pouco objetivas que são, sim, parte da nossa identidade futebolística, mas que também nos mantêm parados no tempo em termos táticos. O jogo evoluiu. O futebol de alto nível exige mais do jogador fisicamente. Se você perde a bola nas alas do campo, você tem laterais que saem no contra-ataque iguais guepardos como um Kyle Walker ou um Alphonso Davies. Um goleiro hoje sem capacidade de passe é praticamente nulo – olhem só o que vem acontecendo com o De Gea – e zagueiros viraram volantes. A marcação começa no ataque com a pressão dos atacantes, o campo tem poucos espaços e menos tempo ainda de raciocínio rápido para quebrar linhas. O drible continua fazendo parte fundamental do jogo, mas é mais objetivo, mais tático e menos plástico. O Messi é o exemplo máximo da objetividade do futebol moderno, enquanto o brasileiro ainda gosta de adorar jogadores no estilo do Denílson Show.
O mais interessante de tudo é que mesmo com as nossas categorias de base retrógradas, que parecem querer formar só pontas, volantes e zagueiros, ou então o estilo tático padrão de 4-4-2 da maioria dos clubes brasileiros (que quando jogam num 4-3-3, ficam perdidos na armação), temos talentos explodindo na Europa o tempo inteiro. Muitos de nossos atletas são tão naturalmente talentosos que conseguem chegar em outro continente e se adaptarem para um estilo de jogo diferente, mais exigente e avançado do que o que assistimos aqui. E mesmo fazendo isso, precisam escutar que “o futebol antigamente era mais técnico“, “que hoje os jogadores não têm habilidades” e coisas do tipo. Me dá um ranço ter que ouvir ex-jogador de futebol que jogava 11 horas da manhã contra o Bangu dizer que é melhor do que o Vinícius Júnior. Não existe ego mais inflado do que o de jogador aposentado.
E isso não é de hoje. Antes da idolatrada seleção do penta ganhar a Copa do Mundo de 2002, o grupo inteiro era contestado. Não queriam que o Ronaldo fosse convocado; falavam que o Cafu não sabia cruzar; diziam que o Lúcio não tinha qualidade técnica; quase mataram o Felipão por não levar o Romário; e assim em diante. Naquele ciclo, perdemos até para Honduras entre mudanças constantes de treinadores. Mas disso ninguém lembra, porque a memória da mídia e do público é seletiva. A verdade é que brasileiro não gosta de torcer, ele gosta de ganhar. Só se valoriza o trabalho por aqui quando há vitória ou então quando se passou muito tempo, porque o que veio antes é sempre melhor – só notar como só agora estão vendo a competência de Tite em seus dois ciclos pela seleção ou então a necessidade de Neymar como armador de jogadas de uma seleção com meio-campo estéril nesse departamento.
É nesse sentido que a visão imediatista do futebol brasileiro revela seus vícios. O treinador pode ganhar um título ontem, mas se tiver um mês ruim, é demitido. Tem que jogar bem e ganhar bem o tempo todo, com exigências que não acompanham a falta de desenvolvimento do esporte no Brasil através de uma CBF em constante chuva de polêmicas e alegações de corrupção. Aí o técnico brasileiro ainda é crucificado por ter que trabalhar suas táticas dentro desse ambiente tóxico, sem tempo para desenvolver seu próprio jogo, seus próprios ideais e formas de jogar. Um dos poucos treinadores que tentam algo assim é o Fernando Diniz com seu Dinizismo de aproximação de jogadores e ênfase na posse de bola, que, por bem ou por mal, é um estilo de jogo diferenciado e com personalidade. Mas aí a CBF pega um cara desse e bota numa seleção brasileira que o treinador tem pouquíssimas datas FIFA e quer que ele ganhe de maneira imediata, só para queimar o profissional no maior palco do esporte nacional.
A mídia segue a mesma toada. Quantos jogadores o Galvão Bueno detonou ao longo dos anos? Quantos comentaristas como o Casagrande e o Neto passam seus dias odiando jogadores específicos sem qualquer análise técnica de qualidade? Estou cansado de ouvir “na minha época…” como se estivéssemos no mesmo cenário de 1970 quando nossas táticas eram revolucionárias internacionalmente, como na precursora posição de Tostão como um falso nove. Vamos cair na realidade: o futebol brasileiro está ficando pra trás, não em termos de talentos, e sim no meio administrativo e organizacional, que não acompanham a evolução de coordenação e de gestão que vemos no cenário europeu. A gente compete com uma deficiência de diretoria que não é tão criticada como os jogadores, momento em que chego no meu segundo ponto: vira-latismo.
Se o Vini Jr. e o Rodrygo fossem europeus, os brasileiros iriam respeitá-los muito mais pelo que vêm fazendo no Real Madrid, mas como nasceram no país do futebol, tomam pancada direto por não serem, em tese, tão bons quanto gerações antigas. Passo mal de rir sempre que escuto algum comentarista dizer que o Vini só sabe correr, sendo que é talvez nosso atleta mais habilidoso pós-Neymar, ou que o Rodrygo não tem personalidade, sendo que é um dos caras mais decisivos da Champions. Se o futebol deles no clube não é transmitido com a amarelinha, é mais culpa de outros fatores do que dos jogadores em si. Querem mais um exemplo recente de como os torcedores brasileiros e a mídia nacional tem pesos diferentes para nossos atletas? Olhem a convocação recente do Danilo e do Alex Sandro, dois laterais que passaram anos taxados como atletas de má qualidade quando estavam na Europa, mas que agora que jogam no Flamengo, se tornaram figurinhas aceitáveis no grupo selecionado. He, será que essa galera é tendenciosa?
Não é querendo desmerecer o Brasileirão, porque tem muito talento aqui, mas notem como os técnicos de maior sucesso na história recente são em sua maioria estrangeiros, como Jorge Jesus e Abel Ferreira, e agora o próprio Filipe Luís, que é brasileiro, mas que tem propostas de jogo europeias por sua experiência internacional (diria que é nossa maior promessa na profissão desde o surgimento do Tite). Os talentos existem e vão continuar existindo, mas os problemas da seleção brasileira vão além de “precisamos de um técnico estrangeiro“. A convocação do Ancelotti foi similar às anteriores e não penso que vá mudar muito daqui para a Copa, porque o grupo é talentoso, mas o jogo com o Equador já mostrou um time taticamente organizado e defensivamente seguro, algo que vinha faltando – e olha que o Carleto mal teve tempo de preparação -, apesar de ofensivamente ainda ser um time com defeitos, principalmente na armação do meio-campo (resultado de uma escola brasileira que não forma mais meio-campistas articuladores, como a Espanha e Portugal, em detrimento de focar só em pontas ou posições defensivas).
O jogo morno da última quinta-feira é um primeiro passo na direção certa? Talvez. Não tem como não ficar animado com o Ancelotti, mas penso que as expectativas precisam ser diminuídas. Falta apenas um ano para a Copa do Mundo, com seleções que tiveram ciclos de preparação e um grupo que o novo técnico está conhecendo agora. A palavra-chave é paciência; algo que infelizmente os brasileiros não têm, como podemos ver na repercussão do jogo, como se o Ancelotti fosse chegar e arrumar a casa num passe de mágica. Os problemas do futebol brasileiro são bem maiores. São de ordem cultural, com um público saudosista e imediatista que não respeita seus atletas e não enxerga a realidade do esporte a nível nacional. São de ordem midiáticas, com diversos (não todos) comentaristas e jornalistas que dão combustível para essas narrativas nostálgicas deturpadas e ódio descomedido. E são de ordem administrativa, com uma CBF que não mostra um pingo de segurança, mudando de direção logo após a contratação de Ancelotti, e com muitos questionamentos no ar para o que vem depois de 2026. O projeto não poder ser tira-teima, com tudo se resolvendo em um ano atribulado; vamos precisar de bem mais do que isso para termos consistência no campo, reeducação fora dele e uma construção gradual para pequenas vitórias em diversos departamentos antes de ganharmos no palco principal. O caos de última hora pode até funcionar – funcionou em 1994 e em 2002 -, nas costas do talento de atletas criticados além da conta e de um treinador que chega com expectativas desmedidas, mas a sorte é uma aposta incerta e que certamente não dá segurança para o futuro, mesmo se levantarmos o hexa.