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Lista | Psicodelia Nordestina: Uma Viagem Musical

A revolução lisérgica da MPB nascida em Pernambuco.

por Luiz Santiago
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Em 11 e 12 de novembro de 1972, uma turma de estudantes cabeludos se encontrou na Feira Experimental de Música, festival realizado em Nova Jerusalém, distrito de Brejo da Madre de Deus, interior de Pernambuco, para o que alguns chamaram de “Woodstock cabra da peste“. Dali saiu o movimento musical mais radical que o Brasil já produziu, com experimentos indo do rock com guitarra distorcida à fusão entre psicodelia internacional e tradições do sertão: maracatu com fuzz, frevo com sitar, embolada e ritmos sertanejos com mantras orientais; uma linguagem totalmente nova que antecipou muitos debates da world music.

Enquanto os Tropicalistas faziam colagens estilísticas brilhantes, só que pontuais, os psicodélicos nordestinos viviam essa fusão de forma orgânica e verdadeiramente visceral, como se fosse impossível separar o regional do universal, o ancestral do futurista. Era uma música que falava simultaneamente do Sertão e do cosmos, da Pedra do Ingá e de Woodstock, das tradições indígenas e da era espacial, das pulsões sexuais e dos temores da vida após a morte. Não à toa, muitos discos desse movimento são hoje disputados por colecionadores do mundo inteiro por altos valores, reconhecidos como obras-primas não somente da música brasileira, mas da psicodelia mundial.

Diário de Pernambuco, 9 de novembro de 1972 – Nota de Fernando Spencer.

Em linhas gerais, este movimento, também chamado de “udigrudi” (underground) pernambucano, durou, em linhas gerais, de 1971 (nas origens, com alguns membros reunidos num bar do Beco do Barato, em Recife) e 1981, mas essas datas são maleáveis — algumas fontes dão o início do movimento por volta de 1968 e o final por volta de 1980, por exemplo. Mas isso é o de menos.

Lula Côrtes virou uma espécie de guru do movimento depois de voltar do Marrocos com um tricórdio. Zé Ramalho chegou da Paraíba trazendo lendas indígenas. A banda Ave Sangria foi censurada por fazer “suposta apologia à homossexualidade”. Marconi Notaro criou experimentos que beiravam o dadaísmo sonoro. Alceu Valença experimentou, no canto e na instrumentalização, todas as propostas do movimento, desde as suas origens. E quase todos gravitavam em torno da gravadora Rozenblit, no Recife, onde nasceram discos que hoje valem fortunas entre colecionadores.

Ainda é válido citar que a psicodelia nordestina também apareceu na literatura, com o livro-objeto O Livro das Transformações (1975), de Lula Côrtes e Katia Mesel, lançado artesanalmente pela Abrakadabra produções, com tiragem limitada em 500 cópias, que nunca foram vendidas, apenas distribuídas entre amigos.

Diário de Pernambuco, 13 de novembro de 1972.

 

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DISCOGRAFIA ESSENCIAL

Aqui, não pretendo esgotar as indicações, apenas apresentar uma linha fundamental para quem se interessa pelo tema. São obras que possuem grande importância para o movimento e que vão dar uma noção grande para o ouvindo daquilo que se experimentava, das propostas poéticas e da gigante variedade musical explorada pelos artistas do udigrudi pernambucano. Como disse, não é algo que pretendo esgotar aqui, então é provável que algumas obras estejam de fora, mas ainda assim, a lista cumpre o seu papel de fornecer uma base (o que é essencial) para um contato sólido com a nossa fantástica psicodelia musical nordestina.

É bom esclarecer que essa lista foca especificamente na psicodelia ou udigrudi, deixando de fora outros movimentos musicais que rolavam no Nordeste na mesma época. O chamado “Pessoal do Ceará” (Ednardo, Belchior, Fagner e Amelinha ), por exemplo, seguia um caminho bem diferente, mais centrado na canção e na poesia, sem o experimentalismo sonoro radical que marcava a turma psicodélica de Pernambuco. Da mesma forma, outros grandes nomes nordestinos do período como Elba Ramalho, Quinteto Violado, Jackson do Pandeiro e os mestres do forró tradicional, mesmo sendo contemporâneos e às vezes colaborando com a galera do udigrudi, construíram suas carreiras em outras vertentes musicais que fogem do recorte específico deste mapeamento da cena psicodélica.
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Quadrafônico (1972)

Alceu Valença & Geraldo Azevedo

Primeiro disco gravado em tecnologia quadrafônica no Brasil, com arranjos de Rogério Duprat. Fez fusão entre psicodelia internacional e elementos nordestinos.

Satwa (1973)

Lula Côrtes & Lailson

Primeiro disco produzido independentemente no Brasil. Álbum instrumental que estabeleceu a estética fundamental da psicodelia nordestina através da fusão entre tricórdio marroquino e viola de 12 cordas.

No Sub Reino dos Metazoários (1973)

Marconi Notaro 

Obra mais radical do experimentalismo psicodélico brasileiro. Os sons acústicos foram gravados no estúdio da Rozenblit, enquanto os sons elétricos vieram da TV Universitária do Recife. A faixa Made in PB” marca a primeira aparição fonográfica de Zé Ramalho.

Ave Sangria (1974)

Ave Sangria

Lançado em maio, vinte dias depois entrou na lista dos mais vendidos. Censurado em agosto e retirado das lojas. Símbolo máximo da resistência cultural que influenciaria muitos artistas.

Flaviola e o Bando do Sol (1974)

Flaviola

Vertente mais literária do movimento. Flávio Lira musicou poemas de García Lorca e Maiakovski, com Lula Côrtes, Robertinho do Recife, Paulo Raphael, Zé da Flauta.

Perfumes y Barachos (1974)

Ave Sangria

Registro do último show com a formação original da banda no Teatro de Santa Isabel, Recife, em 28 e 29 de dezembro de 1974. Marcou o encerramento das atividades do grupo após a censura.

Molhado de Suor (1974)

Alceu Valença

Primeiro disco solo de Alceu, consolida a síntese entre psicodelia e regionalismo que se tornaria referência para a “invasão nordestina”.

Paêbirú (1975)

Lula Côrtes & Zé Ramalho

O álbum duplo mais raro da música brasileira. Inspirado na Pedra do Ingá, divide-se pelos quatro elementos. “Às vezes preparávamos o estúdio como sala de umbanda para receber entidades”. Cerca de 300 cópias sobreviveram.

Vivo! (1976)

Alceu Valença

Registra a potência ao vivo da psicodelia nordestina, com improvisos e energia fora de série. Um manual estético ao vivo, com dezenas de fusões musicais.

Jardim da Infância (1977)

Robertinho do Recife

Demonstra a sofisticação técnica alcançada pelo movimento. Fusiona jazz, rock e música nordestina com participações de Amelinha e Sivuca.

Transas do Futuro (1977)

Jarbas Mariz

Mistura experimentações eletrônicas com ritmos tradicionais: texturas de guitarras dissonantes, sintetizadores rudimentares e percussões regionais criam paisagens sonoras hipnóticas e inéditas.

Espelho Cristalino (1977)

Alceu Valença

A sonoridade mistura guitarra elétrica, viola nordestina, pífanos, zabumba, agogôs e flautas. Imagens surrealistas, críticas sociais e referências eruditas, alinhadas à estética lisérgica do movimento, estão presentes no disco.

Zé Ramalho (1978)

Zé Ramalho

Mescla folk, rock progressivo e ritmos regionais com letras místicas e apocalípticas. A faixa Avôhai nasceu de uma experiência alucinógena com cogumelos. Um dos discos mais conhecidos da cena, trazendo a psicodelia nordestina para maior reconhecimento nacional.

Ivinho ao Vivo – Montreux International Jazz Festival (1978)

Primeiro brasileiro a se apresentar solo no Festival de Jazz de Montreux. Show histórico de Ivson Wanderley com violão de 12 cordas, transformando sonoridades regionais em peças jazzísticas e psicodélicas. Álbum totalmente instrumental com composições próprias que demonstra a capacidade técnica e criativa dos músicos do movimento, levando a psicodelia nordestina para palcos internacionais e validando artisticamente o experimentalismo regional.

Saudade de Pernambuco (1979)

Alceu Valença

Disco raríssimo composto no exílio na França, lançado apenas em 1998. Gravado em Paris em 1979 durante o autoexílio de Alceu para fugir da ditadura militar. Marca uma época especial pré-estouro nacional, com sonoridade mais voltada às raízes nordestinas.

Rosa de Sangue (1980)

Lula Côrtes

Primeiro trabalho em que Lula assume os microfones como cantor principal. Representa (para ele) o fechamento de uma década de experimentações da psicodelia recifense. Som que varia desde folk-rock étnico alucinado até zonas de psych folk mágico da selva, rock fuzz e groove disco. Nunca chegou às lojas por disputa com a Rozenblit.

Caruá (1980)

Zé da Flauta & Paulo Rafael

Zé da Flauta: mestre do pífano e das texturas sonoras regionais. Paulo Rafael: guitarrista que transitava entre o rock e as raízes nordestinas. Figuras centrais do movimento desde seus primórdios. O disco representa a síntese final de uma década de experimentações: une a sofisticação técnica alcançada pelo movimento com a maturidade artística de seus protagonistas.

O Gosto Novo da Vida (1981)

Lula Côrtes

Junta o lirismo de seus poemas com ritmos nordestinos em inúmeras variações. Retirado de circulação devido disputa judicial entre Rozenblit e Ariola quando “Desengano” começou a escalar as paradas de sucesso.

Indra (1981)

Ricardo Uchôa

Um dos álbuns mais obscuros e experimentais da cena, junto com O Gosto da Vida, uma espécie de fechamento do ciclo. Edição limitada de 1.150 cópias distribuídas apenas para amigos e jornalistas. Representa a vertente mais underground da psicodelia recifense, mesmo sendo lançado tardiamente.

 

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