Home Literatura Crítica | Antes de Nascer o Mundo, de Mia Couto

Crítica | Antes de Nascer o Mundo, de Mia Couto

Uma análise profunda de um homem em fuga de si mesmo, em tempos de crise.

por Luiz Santiago
2,2K views

_ Pai, a mãe morreu?

_ Quatrocentas vezes.

_ Como?

_ Já vos disse quatrocentas vezes: a vossa mãe morreu, morreu toda, faz de conta que nunca esteve viva.

_ E está enterrada onde?

_ Ora, está enterrada em toda parte.

Mia Couto

Antes de Nascer o Mundo foi o meu primeiro passo em literatura africana. O livro do escritor moçambicano Mia Couto narra a história de uma família que se auto-exila na savana de Moçambique. O motivo deste exílio é conhecido apenas por três pessoas: Silvestre Vitalício, o patriarca da família e empreendedor dessa “nova vida”; o Tio Aproximado, que mora “do outro lado” e provê mantimentos para o cunhado Silvestre; e Zacaria Kalash, o servo.

O lugar onde esse grupo de pessoas se estabeleceu foi chamado de Jesusalém (que, aliás, é o título original do livro), e segundo Silvestre Vitalício, seria ali que “Deus voltaria para pedir desculpas para a humanidade”. Ainda segundo Silvestre, o mundo havia morrido. Só existia Jesusalém e os cinco homens que formavam aquela sociedade. Já foram citados três. Os outros dois são os filhos do Patriarca: Mwanito e Ntunzi.

A história principal é narrada por Mwanito: uma verdadeira saga de autodescoberta e (re) nascimentos. Tudo e todas as possibilidades daquele mundo nascem em Jesusalém: um filhote de zebra com a égua Jezibela; a alma de uma fotógrafa portuguesa; a escrita e a leitura de Mwanito; o “Rio Avô”; os mitos sobre o céu; a magia da tempestade; as garças, a leoa, os redemoinhos; a memória dos mais velhos e a própria morte. Mia Couto consegue a difícil tarefa de articular a passagem do tempo em um lugar em que nada acontece.

A paz é o elemento-chave da narrativa até o meio do livro. Então Zacaria Kalash consegue ler a sorte em um punhado de papéis rasgados e lançados ao vento, e sua sentença é: “Mwanito, a nossa paz está nos últimos dias. Receberemos uma visita.”. E então o marasmo inquietante dos capítulos de apresentação dos cinco personagens muda para um contínuo movimento, para a descoberta de coisas jamais imaginadas pelos dois meninos e para o confronto com o passado, no caso dos mais velhos. Couto cria uma mãe-natureza que dá a luz a um filho em cada parágrafo. No capítulo “Os papéis da mulher” descobrimos a veia poética de qualidade profundamente antropo-feminina que o escritor aborda com muito vigor. Cada separação de período é uma revelação, um nascimento de uma ferida ou a chegada de uma cura. A alma lírica se expõe em momentos como este:

Vês como fico pequena quando escrevo para ti? É por isso que eu nunca poderia ser poeta. […] Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estás, me desconheço, ignorante. Eu só sou na tua presença. E só me tenho na tua ausência. Agora, eu sei. Sou apenas um nome. Um nome que não se acende senão em tua boca.

O mundo de Jesusalém nasce para o “novo velho mundo”. Então há o choque cultural e social dos antigos habitantes da pacífica Jesusalém com a  desigualdade das comunidades africanas. Surgem as mulheres que lavam roupas no rio e comem formigas e barro. O livro passa para um outro momento, onde a descoberta do sexo, as passeatas pelos direitos da mulher, a corrupção política e militar, a loucura e o envelhecimento, a igreja católica, a música, a morte, a AIDS ou a segregação tomam lugar e nascem como um câncer aos olhos de um incrédulo Mwanito, que jamais pensava existir tais coisas.

Conforme cada personagem envelhece, o mundo se torna novo. A realidade se metamorfoseia em dinheiro e aproveitamento. Os sentimentos humanos se enfraquecem. Deus não aparece para intervir na miséria e parece magoado com os habitantes do mundo. Enquanto uns nascem para a vida e outros para a morte, a sociedade nasce para a adequação “metropolitana”. Na mudança de mundos, Mia Couto capta bem a transformação do indivíduo e do espaço ao seu redor. Pouquíssimas vezes eu tive a oportunidade de ler isso da maneira tão incrível como o escritor nos expõe em Antes de Nascer o Mundo.

O livro é a prosa do que Drummond disse em poesia: “a dificílima dangerosíssima viagem de si a si mesmo”. O livro é o puro nascimento da consciência de si no mundo e do nascer do mundo na consciência. A relação entre o externo e o interno é um ciclo: vai da savana de Moçambique aos prédios e grandes avenidas de Portugal e voltam para os olhos e para o silêncio daqueles que não conseguem falar de suas mágoas.

Com uma escrita empolgante, parágrafos relativamente curtos e muitos diálogos, o escritor produz algo inesquecível. Sem fazer política literária rasa e sem tornar o enredo intragável com seu grande número de temas trabalhados, autor e livro propõem um olhar sobre a tentativa de fuga do homem, uma urgente fuga deste mundo que tanto lhe causa sofrimento. Uma viagem que vai da magia ao gabinete do governo. Um livro para se ler com o coração.

Antes de Nascer o Mundo (Jesusalém) – Moçambique, 2009
Autor: Mia Couto
Lançamento no Brasil: 2009
Editora: Companhia das Letras
280 páginas 

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais