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Crítica | Kappa e o Levante Imaginário, de Ryunosuke Akutagawa

por Luiz Santiago
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Os contos aqui reunidos fazem parte de uma coletânea da Estação Liberdade, publicada aqui no Brasil em 2010, um volume chamado Kappa e o Levante Imaginário. Além dos famosos Rashomon e No Matagal, o livro nos traz mais nove outros contos, e é sobre eles que irei discorrer nos parágrafos seguintes. Optei por utilizar a ordem cronológica de produção original dos textos, afim de estreitar as devidas relações entre os temas recorrentes na obra do autor ao longo dos anos.

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O Nariz (1916) é um dos melhores exemplos literários sobre a relativização dos defeitos físicos de uma pessoa que eu já tive oportunidade de ler. A história é cômica, mas não abandona o tom trágico da questão.

A trama é centrada no dilema do narigudo naigu (ou naidojo gubu, monge budista de alta hierarquia, selecionado para rezar pela saúde do Imperador, no Palácio Imperial) de nome Zenchi. Dono de um nariz de “seis ou sete polegadas de comprimento”, o monge enfrentou durante toda a sua vida o suplício de ser observado por todos e de ouvir inúmeros risos de escárnio às suas costas. Perseguindo a ideia de que um dia encontraria um modo de se livrar do enorme nariz, seguiu aceitando e procurando receitas ou tentando encontrar personagens históricos tão narigudos quanto ele, como uma espécie de consolo.

O conto percorre uma espécie de via crucis do monge e problematiza o resultado de sua vitória contra o enorme nariz. O autor adota um tom de brincadeira no início, mas termina de forma irônica e com uma interessante moral da história, fazendo-nos refletir sobre o que a renúncia de um defeito pessoal pode trazer e se realmente é necessário excluí-lo de nós. Acabei me lembrando daquela música de Oswaldo Montenegro, A Lista, que diz, “quantos defeitos sanados com o tempo, eram o melhor que havia em você”.

Dois sentimentos contraditórios habitam o coração dos seres humanos. Por certo, não há quem deixe de se compadecer pela infelicidade de um apessoa. Porém, se essa infelicidade for superada de alguma forma, isso produz naqueles ao seu redor uma espécie de insatisfação. Com um pouco de exagero, podemos dizer que elas têm certo desejo de que a pessoa caia de volta em sua infelicidade.

Destino (1917) nos traz a velha história do “tome cuidado com o que deseja”. Lembrando um pouco os desdobramentos desesperadores de RashomonDestino nos traz uma situação inicial de conversa entre duas pessoas, e então passamos para a narração de um fato ocorrido já há muito tempo. A incursão do flashback é muito presente na obra de Akutagawa, e aparece em outros contos do livro, como No Matagal (o melhor exemplo) e Kappa (na minha opinião, o melhor conto da coletânea).

Os Salteadores, também escrito em 1917, vai por um outro caminho. O conto supera as expectativas do leitor, que de início imagina ser este apenas o relato ou o preparo de um importante assalto. O que temos, na verdade, é uma história de relações familiares tão intricada, que ao término, sentimos o impulso de querer voltar ao início e relê-la, tamanha a quantidade de detalhes e a força da trama criadas pelo autor.

A descrição detalhada dos locais onde as ações acontecem e os perturbadores eventos mostram o domínio que Akutagawa tinha sobre a construção completa de cenários para suas histórias e a capacidade de criar uma prosa de forte caráter “cinematográfico”, não apenas apontando uma situação xis, mas revelando sequencialmente tudo o que a envolve, e também os seus desdobramentos, exatamente como em uma sequência fílmica *. Dos elementos que mais me chocaram em Os Salteadores, posso citar a mulher doente e literalmente apodrecendo viva, no início do conto e a soberba descrição da batalha dos salteadores contra os samurais, com destaque absoluto para a Jiro e sua batalha contra os cães.

A força que move os sentimentos dos dois irmãos nesse conto é uma das coisas mais verdadeiras já escritas sobre o ódio e o amor a alguém tão próximo. Da mesma forma, o duplo papel da mulher se destaca, seja a visão da manipuladora e dada aos prazeres ou a idiota, doce e maternal. Aliás, o nascimento de um bebê, no conto, é um evento que traz outro lado dos salteadores, paradoxalmente, um lado amoroso e fraternal, algo totalmente diverso dos seus atos brutais que houvéramos lido algumas páginas antes.

Inferno (1918) é a perfeita imagem da perturbação psíquica de um homem, um artista que só conseguia pintar o que via, e que para fazer obras-primas, não tinha escrúpulo algum em provocar coisas terríveis para poder pintá-las. O conto é construído quase sem muita pretensão, e de início, não sabemos aonde o autor pretende chegar. Todavia, algo se destaca já os primeiros parágrafos: a  chocante pintura do inferno no biombo.

Conforme a narrativa avança e nos familiarizamos com os métodos pouco ortodoxos de Yoshihide para produzir sua arte, começamos a entender a forte carga emocional e moral problematizada pelo autor – uma das maiores problematizações do livro. Há uma exatidão e um cuidado extremos em retratar e deixar muito claros os significados dos símbolos e alusões dentro da história, tornando o seu significado final um verdadeiro mar de emoções.

Esse homem teve um destino cruel – perdeu a vida para pintar o inferno sobre um biombo. Em outras palavras, o inferno retratado nesse biombo foi o próprio inferno para onde Yoshihide, o melhor pintor do império, despencou um dia…

Dragão (1919) é a fantasia da transformação de uma mentira contada por vingança que vira verdade – ou objeto de delírio coletivo. Vemos aqui o retorno da personagem do monge narigudo, desta vez, o monge E-in. Para se vingar das brincadeiras feitas em relação a seu nariz, o tal monge resolve colocar uma placa à beira de uma lagoa: “Ao terceiro dia do terceiro mês do ano, um dragão se elevará destra lagoa”. O que ele não esperava é que sua brincadeira se tornaria motivo de comoção geral, tanto naquela cidade quanto nas cidades vizinhas; e menos ainda, que o resultado de sua mentira culminaria em uma de suas experiências mais fantásticas para aquele povo.

A brincadeira que o autor faz com a mentira e o tom dúbio que ele dá ao desenrolar das coisas cria no leitor a gostosa sensação de estar lendo uma farsa junto à incerteza do que realmente aconteceu, um dilema que, quando bem escrito, pode mudar muita coisa em relação o texto, como é o presente caso.

As Laranjas, também de 1919, está em outro patamar de emoções. Trata-se de uma história de contexto bonito, mas eu não achei nada divertida a leitura, ou mesmo a proposta do autor. É claro que nos toca a oposição entre um homem de negócios indiferente e uma menina pobre que lança laranjas para seus irmãos através da janela de um trem. O autor não alcança neste tipo de história um bom resultado, talvez porque o tom fantástico tenha sido posto de lado em detrimento de uma captação mais realista do cotidiano. Trata-se de um conto de mensagem bonita, mas um tanto desajeitado e pouco inspirado.

Em A Mágica (1920), temos uma história simpática e uma intrigante reflexão sobre a ganância. A volta dos elementos fantásticos e a ligação entre o mundo real e a experiência quase espiritual entre os protagonistas são o verdadeiro charme da história, que por mais estranha que pareça, possui um contexto normal, se compararmos com os dois contos do autor escritos dali a sete anos: Kappa e Rodas Dentadas.

Eu já manifestei a minha preferência por Kappa, um conto riquíssimo, pontuado por uma narrativa realista e outra fantástica. A história é interessante nos “dois mundos” onde se passa, e o recorrente tema da loucura na obra do autor alcança aqui um significado quase místico.

Kappa, acima de tudo, é um conto crítico em relação à sociedade japonesa do início do século vinte, e facilmente poderíamos transportar os apontamentos de Akutagawa para os dias de hoje. A descrição do mundo dos kappas, sua organização cultural, social e política são praticamente a versão não mascarada ou envernizada do que temos (ou do que se tinha à época) em nosso mundo, questão, inclusive, comentada por um dos kappas ao narrador. Além dessa reflexão crítica, é importante citar o caráter insano e ao mesmo tempo crível da viagem do “homem louco”, elementos que marcam fortemente o desenvolvimento dessa obra inestimável.

Rodas Dentadas não é o meu conto favorito do livro. Nem perto disso. Primeiro, acho-o caótico demais e escrito de maneira brusca, sem nenhuma lapidação dos acontecimentos, especialmente em seu encadeamento narrativo. A súbita aparição de eventos ou pessoas na história torna todo o texto bem menos interessante do que contos mais fracos da coletânea, como As Laranjas, por exemplo. O mais incrível é que mesmo não sendo, a meu ver, uma das melhoras obras de Akutagwa, Rodas Dentadas guarda o elemento perturbador tão comum ao artista, e por isso isso mesmo, conta com momentos de impecável angústia de alma.

Kappa e o Levante Imaginário é uma interessante reunião de contos, a maior parte deles geniais, e mesmo os mais fracos, dotados de momentos que certamente irão impressionar ou encantar o leitor. Para quem nunca ingressou na literatura japonesa, este seria um primeiro passo interessante, rápido, divertido e muitas vezes, deliciosamente medonho. Assim como é a vida.

* Talvez por isso eu seja bastante indiferente à afirmação de que Rodas Dentadas é uma obra-prima do escritor, posto que acredito ser este o seu conto menos trabalhado, podendo, antes, receber o título de “um dos contos mais perturbadores”, mas não uma obra-prima.

Kappa e o Levante Imaginário (Japão, 1916 – 1920)
Autor: Ryunosuke Akutagawa
Tradutor: Shintaro Hayashi
Publicação no Brasil: Editora Estação Liberdade, 2010
352 páginas 

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