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Crítica | Leite Derramado, de Chico Buarque

Reflexões de uma vida.

por Luiz Santiago
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Cinco anos depois do badalado Budapeste (que acabou sendo adaptado para o cinema), Chico Buarque voltou à literatura trazendo-nos o histórico e reflexivo Leite Derramado (2009), um romance que fala de um tempo em que ele não viveu, assim como nunca tinha viajado para a capital da Hungria antes do seu romance de 2003. Leite Derramado conta uma história ambientada principalmente nos anos 1920, mas que volta para os tempos do Segundo e do Primeiro Império, ou ainda, para o Brasil Colônia, seguindo posteriormente para o fim da Primeira República, para o governo Getúlio Vargas, para a Ditadura Militar e o século XXI. O velho e amargurado narrador teve sua origem na personagem de O Velho Francisco, uma antiga e pouco lembrada canção do próprio Buarque.

Eulálio é um centenário. Toda a sua saga familiar é narrada de sua cama, num hospital. Ele faz questão de lembrar que veio de um passado familiar garboso, com educação conservadora e religiosa, com escravos e boas-relações vindas de seu pai Senador (“brincava nos jardins do Catete com os filhos do Presidente Artur Bernardes“). No presente século XXI, Eulálio se vê entre pessoas que não ouvem direito o que ele fala e o maltratam, segundo sua própria interpretação do que está acontecendo.

Acompanhar a vida deste velho enfermo e abandonado é fazer uma viagem por uma memória parcialmente falha e muitas vezes, caótica. Ele confunde as enfermeiras com alguém da família, delira acreditando que irá se casar com uma delas ou que está sendo detalhadamente anotado, por isso fala devagar, afim de que “a moça” tome nota de tudo o que ele diz. Desse modo, ele pode publicar suas memórias. Às vezes ele fala sozinho, mas percebe tudo o que acontece em torno. A televisão o incomoda. O mau humor dos enfermeiros e a comida do hospital também. Eulálio é um velho fora do seu tempo.

A primeira parte do livro é bárbara. Temos uma menor cadeia de eventos confusos e uma maior interação do narrador com as pessoas do hospital, colocando-o frente a frente com o seu passado. Ao passo que o livro avança e a presença de Matilde, a mulher de seus sonhos, se faz perceber em cada página, temos uma queda na qualidade geral da obra. É possível, porém, interpretar a fase final do livro como um agravamento da doença de Eulálio, culminando em maiores delírios e troca de tempos, pessoas e situações que já haviam aparecido em outro ponto da história. É evidente que o homem está cada vez mais perto da morte, ou que pelo menos sua senilidade tem se tornado plena. Esse maior mergulho no mundo íntimo de Eulálio, porém, apresentou uma quebra na fluidez do texto (paciente delirando versus mundo real) que não precisaria existir.

Essa quebra, porém, não estraga o livro. Misturando bom humor, eventos da História do Brasil e elementos próprios da obra de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, Chico realiza uma obra de leitura deliciosa, de trama forte e tipicamente brasileiro-elitista do início do século XX. Uma angustiante reflexão sobre a velhice está nas entrelinhas do livro, o que fará os leitores pensar e talvez temer o futuro, quando não irão mais ter certeza de quais histórias aconteceram primeiro, para quem foram contadas; e onde ou quando aconteceram. Leite Derramado é uma espécie de tratado sobre uma longa vida. Uma  realidade onde não há mais sentido chorar por alguma coisa deixada para trás.

Leite Derramado – Brasil, 2009
Autor: Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 200

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