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Crítica | O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov

Um séquito de demônios tornando a Moscou soviética um inferno.

por Luiz Santiago
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O processo de escrita e publicação de O Mestre e Margarida é um épico por si só e que merece ser conhecido. Mikhail Bulgákov começou o romance em 1928 e, dois anos depois, queimou o manuscrito em uma explosão de raiva, após outra obra de sua autoria ter sido censurada pelo Departamento de Cultura da URSS. Entre 1931 e 1936,  trabalhou em uma segunda versão do volume, que foi abandonada e logo depois parcialmente destruída, ficando apenas a estrutura central que hoje conhecemos do livro. Um ano depois (1937), ficou pronto o terceiro rascunho da obra, que também foi abandonado e passou por um processo de recriação nos anos seguintes. A quarta versão da escrita começou a ser moldada em 1940, um mês antes da morte do autor. O livro foi terminado por sua viúva, em 1941, e lançado em duas versões na URSS: uma censurada e outra clandestina. Só em 1973 o livro receberia uma editoração profissional e sem censura alguma, em Frankfurt.

A história de O Mestre e Margarida é das mais incríveis já postas no papel. Trata-se da chegada do diabo (Woland) e seu séquito  de demônios (Behemoth, um grande gato preto que adora vodka, xadrez e armas de fogo; Korôviev, um grande negociador, com um pincenê rachado e roupas apertadas; Azazello, um ruivo com um canino à mostra e um olho vazado; e Hella, uma jovem totalmente nua, ruiva e com olhos ardentes e fosforescentes) à Moscou stalinista de 1929.

Woland, o chefe do grupo, se apresenta pela primeira vez a um crítico literário e a um poeta, e então passam a conversar coisas que momentaneamente não fazem sentido algum para o leitor, mas que aos poucos se encaixam perfeitamente na história. A narrativa fantástica de Bulgákov nos toma de assalto. A partir da chegada dos demônios, Moscou se torna um verdadeiro inferno. Coisas estranhas começam a acontecer por todos os lados da capital e cidades adjacentes: notas de dez se transformam e abelhas e papel picado, roupas desaparecem do corpo das mulheres e, finalmente, inúmeros casos de insanidade individual ou coletiva — como um terno que vai trabalhar sem o seu dono dentro… ou uma repartição pública inteira que canta incontrolavelmente uma canção folclórica eslava.

Bulgákov não perdoa nenhuma estrutura social, nem burocrata, nenhum caminho ideológico nacional. Todo o aparelho e sistema soviético é criticado pelo autor em sua base, das artes à política econômica. A cidade, o transporte público, os artistas, a ganância das pessoas, a imigração, a religião, a moda, a visão de mundo interna e externa à URSS, tudo é reinventado e sofre perturbações demoníacas nas linhas do livro.

Paralela à história principal, porém, existe outra, de um livro dentro do livro: a história de Pôncio Pilatos, Jeshua Ha-Notzri, Judas de Kerioth, Dismas, Mateus Levi e o cão Banga, no ano 29 da Era Comum (EC). Na história de Pilatos, Bulgákov recria toda a saga bíblica de Jesus e sua crucificação. Essa narrativa, por sua vez, de um modo inigualável, se integra à história da visita do séquito infernal à Moscou soviética, que em dado momento dá um baile em que o regente da orquestra é ninguém menos que Richard Strauss e para o qual comparecem personalidades como Napoleão, Calígula, Leopoldo I, Frida, marqueses, duquesas e dezenas de personalidades artísticas ou figuras sociais… nuas. Uma multidão jamais vista. E tudo isso dentro de um único apartamento!

O rastro de loucura, incêndios, confusão, prisão e choro que os demônios deixam é o tempero de todo o enredo. Bulgákov é preciso ao mesclar, na pessoa de Woland, o historiador, o estrangeiro, o especialista em magia negra. A moral e a mentira social são questionadas e desobedecidas, como um desafio às autoridades. O dinheiro estrangeiro vem à tona. Os pequenos roubos também. O livro é de tal alcance universal que influenciou criações impensáveis: a música Sympathy for the Devil (Rolling Stones), Pilate (Pearl Jam) e Love and Destroy (Franz Ferdinad). Em 2005, o diretor Vladimir Bortko adaptou para a TV russa a versão mais fiel e bem-sucedida do livro.

Na segunda parte do livro, o autor se dedica aos protagonistas. Observamos a história do Mestre (o escritor da história de Pôncio Pilatos) e de Margarida (futuramente, Rainha ou Bruxa Margot) se desenvolver e acompanhar a chegada do diabo a Moscou. Também a vida do casal amante mudará completamente, e é com os dois apaixonados que Woland e seu grupo caminhará para o desfecho da obra, que é, em tudo, impressionante. Em O Mestre e Margarida, César vira Stálin; Jerusalém é rigorosamente retratada e Moscou é o espaço mítico e ao mesmo tempo real que se opõe à capital judaica dos tempos de Cristo; e a Lua é um caminho que leva para algum lugar que não se sabe bem se é Céu ou Inferno. Uma obra incrível em todos os aspectos, e não é à toa foi considerado uma obra-prima da ficção do  século XX. Definitivamente vale cada linha.

O Mestre e Margarida (Мастер и Маргарита) – URSS, 1966 – 1967
Autor: Mikhail Bulgákov
Lançamento no Brasil: 2010
Edição lida para esta crítica: Alfaguara Brasil
Tradução: Zoia Prestes
456 páginas 

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