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Crítica | Ralé (No Fundo), de Maksim Górki

Comodismo, miséria e ironia.

por Luiz Santiago
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A edição da peça Ralé, de Maxim Gorki, que tenho em mãos, é uma publicação da editora Veredas, e vem com uma advertência importante que penso ser útil para um melhor entendimento ou aproveitamento da obra, por isso irei reproduzi-la aqui.

Prezado leitor, provavelmente por influência do título em francês – “Les Bas-fonds” – a peça estreou no Brasil com o nome “Ralé”, que Gorki de certo desaprovaria por remeter a um sentido depreciativo. Mas em função da consagração do uso desse nome, optamos por mantê-lo. Gostaríamos, entretanto, de esclarecer que o título original, “Na dnie”, significa em português: “No fundo”.

Dito isto, vamos ao texto.

Ralé é uma peça incomum. Escrita por Maksim Górki em 1901, a obra marcou época, levou um enorme público ao teatro e serviu de ponte para a dramaturgia posterior, influenciando diversos autores e obras de cunho social, especialmente Bertold Brecht. Enquanto lia Ralé, não pude deixar de fazer algumas comparações temáticas com A Santa Joana dos Matadouros, obra brechtiana que também tem o seu foco voltado para os pobres e miseráveis.

Ralé é um drama em quatro atos que se passa em um porão; uma pensão paupérrima na qual moram diversas pessoas. Este lugar recebe a constante visita de vagabundos e amigos de bar de alguns dos moradores, bem como de um policial sem muita voz ativa. Cada um desses personagens possui contornos humanos muito fortes, mas a cada novo ato da peça, agem de maneira diferente, como se o autor quisesse provar a nossa primeira impressão geral colocando nossos afetos contra a parede.

Se pudéssemos classificar Ralé em uma frase genérica, poderíamos dizer tranquilamente que se trata de uma peça sobre o desejo e a amargura da não-realização. Todos os personagens procuram algo; desejam estar em outro lugar, agridem-se, matam-se. Mas a verdadeira motivação de tudo isso é a busca por outra coisa, outro lugar, uma situação fora da miséria financeira e moral em que vivem. Górki adentra à discussão do que é “ser bom” e “ser mau“, do que é “mentira e verdade” do que é “ser e não ser” alguém. Nesse jogo de idas e vindas, cada um ganha a aparência de andarilho, seja em sua própria vida, seja em sua existência na Terra: nenhum personagem de Ralé realizou ou realiza algo, parecem nômades incapacitados de estabelecer ações a médio e longo prazo, à exceção de Luka, um dos personagens mais incríveis da dramaturgia.

Luka é o velho sábio, o contraponto de alguns personagens e o complemento de outros. Sua fala mansa esconde sua ironia e rudeza. Sua postura ante a vida é de otimismo, mas ele não se furta em ficar triste por alguém ou por todos ao mesmo tempo. No final das contas, o próprio destino de Luka marcará o último ato da peça. A narrativa de Górki consegue dividir a atenção e trabalhar essas idas e vindas de forma natural e agradável. Ralé, sob esse ponto de vista se apresenta como um drama de passagem, uma junção de pontos fugazes cuja importância ou gravidade imediata não ultrapassam mais que um dia. Vivendo um dia de cada vez, os pobres e miseráveis de Górki esperam. Sabe-se lá o quê.

Talvez por ser atemporal, já que a situação exposta pode ser adaptada a qualquer momento da História e em qualquer lugar do mundo, Ralé se conecte com o leitor ou espectador mais facilmente. Seus personagens são seres humanos doentes de desejo por uma vida melhor, mas estão presos à própria realidade que desprezam, por uma preguiça ou descrédito tamanhos que os impedem fazer algo para que tudo mude. Não é preciso muito esforço para estabelecer as devidas relações com os grupos sociais que compõem as sociedades contemporâneas. Mesmo tendo sido escrita no início do século XX, Ralé é uma peça atual e marcante, definitivamente uma obra que sobreviveu bem aos porões de ralé da História.

Ralé (Na dne) — Rússia, 1901
Autor: Maksim Górki
No Brasil: Editora Em Cartaz/Veredas
146 páginas

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