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Crítica | Uzumaki

por Luiz Santiago
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Juni Ito é um dos autores mais perturbadores dos mangás de horror. Nascido em 1963, o artista foi influenciado pela obra do mestre Kazuo Umezu (outro grande autor de obras de terror), e teve influência em sua própria casa, através dos trabalhos da irmã mais velha. Depois de dar os primeiros passos em narrativas aterrorizantes, Ito foi reconhecido e premiado, o que bastou para que continuasse assustando os leitores através de seus mangás.

O que mais me impressiona nas obras de Junji Ito é como ele instaura o terror em ambientes aparentemente calmos e livres de qualquer influência do mal, e como suas personagens são rasas de emoções e características marcantes. E são essas mesmas personagens ordinárias as vítimas da loucura e da maldição de alguma coisa. Está aí outro elemento que muito me agrada nos bons mangás de horror e principalmente nos de Ito: a presença da insanidade e como a divisão entre loucos e sãos é feita no meio de uma situação nada normal. O paradoxo é tão forte, que não precisa muito para que nos apaixonemos pelo que é mostrado pelo autor e por tudo o que está nas entrelinhas.

Em 2006, a Conrad editou os volumes de Uzumaki no Brasil. Trata-se de uma obra notável de Junji Ito, que conta a história de uma cidade dominada pela “maldição das espirais”. Em 2000, foi realizada uma adaptação cinematográfica horrorosa para a obra (publicada originalmente no Japão entre 1998 e 1999)..

Esta é a cidade de Kurouzu, onde eu nasci e cresci. O que eu vou contar para vocês agora é a história sobre fatos muito estranhos que aconteceram nesta minha terra natal…

O primeiro volume de Uzumaki chama-se Cicatriz. Nele, temos a apresentação das personagens principais e também o que eu chamo de “primeiras crônicas” – já já explico isso melhor. A história é narrada pela simpaticíssima Kirie Goshima, uma jovem estudante que tem um pai ceramista, uma mãe cuidadosa e um irmão mais novo muito apegado a ela. Kirie namora um cara enjoado chamado Suichi Saito. Ele vive com a mãe e o pai na mesma cidade de Kurouzu, mas estuda numa cidade próxima. É a partir da família dele que veremos a maldição das espirais se espalhar pela cidade.

Quando eu disse “primeiras crônicas” no parágrafo acima, eu me referia ao tipo de história de Junji Ito apresentou nos dois primeiros volumes de Uzumaki, e a junção de todas elas no terceiro mangá, quando tudo começa a fazer sentido. Tanto Cicatriz quanto Farol Negro são volumes que nos mostram histórias quase desconexas, aparentemente sem nenhuma relação imediata com a outra, embora haja uma sequência lógica de tempo e espaço, algo que desaparece por completo no terceiro volume. Portanto, “primeiras crônicas” são episódios quase isolados que acontecem na cidade de Kirouzu antes que o Caos (título do terceiro volume) se estabeleça.

O início da saga é muito sutil. Só depois percebemos como o autor foi plantando elementos que só fariam sentido muitos capítulos depois. O que o leitor precisa saber é que nesse primeiro volume, a cidade de Kurouzu recebe a primeira lufada de vento da maldição das espirais. Começa com pequenoa casos, já nos capítulos de abertura, Maníacos por Espirais – partes 1 e 2; e segue pelos capítulos seguintes, que demonstram transformações em diversos pontos da cidade e como isso transforma a vida dos envolvidos. É também nesse primeiro volume que começa a longa jornada de Kirie contra a maldição. Não sei quanto a vocês mas eu admiro profundamente a força e a vontade e viver que essa garota possui, algo realmente impressionante para uma personagem de Junji Ito.

O aluno Mitsuru Yamaguchi, do 1º ano, turma B, da escola Kurouzu era um menino que adorava dar susto nos outros. Por isso todos o chamavam pelo apelido de “Caixinha de Surpresa”. Parece que ele pôs na cabeça que gostava de mim agora… e isso estava começando a me incomodar.

É a partir desse segundo volume que a coisa vai ficando realmente tenebrosa para a cidade amaldiçoada. A forma geométrica espiral encontra as mais inimagináveis possibilidades de se fazer presente na vida dos habitantes, e como se não bastasse, acaba contaminando a própria cidade.

A arte de Junji Ito se apresenta aqui com toda a sua força e horror. Embora não seja o meu volume preferido, devo dizer que em todos os capítulos o autor adicionou algo que realmente me fez estreitar os olhos durante a leitura. Os capítulos Caracol HumanoColuna de Pernilongos e Cordão Umbilical são aterrorizantes. Ito explora planos de fundo totalmente escuros ou plenamente preenchidos – num crescente aumento de objetos por quadro, algo que alcançaria o seu clímax com os furacões do terceiro volume –, não economiza nas deformações corporais e no sofrimento das personagens. O autor consegue explorar o máximo de cada crônica, não deixando nada para trás. Essa característica de bom aproveitamento do roteiro compensa as falhas de verossimilhança (mesmo levando em conta a questão de ser uma história fantástica) e alguns problemas de continuidade. Esse é o meu grande problema com o roteiro de Uzumaki: as falhas no ritmo dos acontecimentos, algumas atitudes tomadas em meio a situações extremas e o incômodo causado pela já citada separação entre as histórias até o volume final.

O arco que o autor cria no último capítulo de Farol Negro é instigante, principalmente porque lidaremos com o mesmo motivo dramático no volume seguinte, e porque todas as histórias se cruzarão logo em seguida.

O enorme Furacão Nº1 foi sugado pelas águas do lago e provocou um grande turbilhão que acabou por envolver todas as residências à sua volta. Milagrosamente toda a minha família escapou ilesa. Mas fomos obrigados a procurar outra morada.

Esse terceiro volume de Uzumaki é simplesmente perfeito em todos os aspectos. O roteiro deixa para trás os problemas narrativos e se torna lancinante a cada página. A arte acompanha o ritmo caótico já adiantado pelo título, e temos a horrível sensação de “fim de mundo” durante as 222 páginas da história principal mais as 32 páginas do Capítulo Extra. Aqui, não só as pessoas mas também a cidade se transforma e é absorvida pela maldição das espirais. Trata-se de um volume de tirar o fôlego, com horror à flor da pele, suspense, ação e desenhos maravilhosos.

Percebemos que a maldição não só altera o corpo das pessoas e o formato da cidade, mas que também a personalidade e constituição “natural” das coisas se alteram – ou se mostram. Os instintos mais cruéis do homem são postos para fora, e até o tempo e o espaço são alterados pela maldição.

O roteiro alcança aqui o seu clímax. Somos apresentados de uma vez por todas ao caráter simbólico das espirais, seu ciclo, evolução e involução, movimento, formação de labirintos, vida e morte. Embora nem todas as coisas sejam explicadas ao final do mangá, podemos preencher esses espaços com os nossos próprios temores, de modo que classifico o término da obra como perfeito. Mesmo o capítulo extra, que nos apresenta uma possível outra realidade (uma futura povoação de Kirouzu? Ou ainda, mais uma faceta da mesma civilização, num ciclo eterno das espirais?) termina muito bem, com os mesmos espaços para preenchermos e pensarmos em nossa própria versão da história.

Uzumaki não é uma obra que vai agradar a todo mundo. Leitores mais ligados a desenhos bonitinhos, histórias politicamente corretas e belas lições de moral e de vida devem passar longe de qualquer coisa que Junji Ito já desenhou e escreveu. O que o leitor vai encontrar em Uzumaki é terror psicológico, gore e inteligente em máxima potência, coisa que parece lenda ou insanidade para os adoradores do “terror cute freaks” da Disney e da Turma do Penadinho.

Uzumaki (Japão, 1998 — 1999)
Roteiro: Junji Ito
Arte: Junji Ito
No Brasil: Conrad Editora
670 páginas (3 volumes)

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