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Pílulas Musicais | Adriana Calcanhotto, Orishas, Heitor Villa-Lobos e Outros

Dos clássicos aos modernos.

por Luiz Santiago
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O nome desta coluna já dá uma boa ideia daquilo que, metaforicamente, ela irá tratar. Diferente das críticas de música aqui do Plano Crítico, que são formais, bojudas e criteriosamente estruturadas, as Pílulas Musicais são pequenas abordagens críticas a respeito de álbuns ou EPs de diversos artistas, épocas e lugares. Você até pode chamá-las de “mini-críticas“, se quiser, mas é necessário entender que a abordagem não tem exatamente as mesmas preocupações: é essencialmente mais informal e mais solta em termos de exigência analítica. Cada Pílula Musical traz de 5 a 10 álbuns/EPs brevemente comentados, sendo cada um deles acompanhado de uma música ou clipe do projeto. Nesta edição, vocês encontrarão produções clássicas de 1932 e 1994, além de discos produzidos durante a pandemia de COVID19. Boa leitura e boa audição a todos!

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“12” — AnnenMayKantereit

Alemanha, 16 de Novembro de 2020

Meu primeiro contato com a banda AnnenMayKantereit aconteceu no final de março de 2020, uma semana depois do início do isolamento social decretado em São Paulo por conta da pandemia de COVID. Um single lançado pela banda em 7 de fevereiro apareceu como um dos meus indicados do Youtube, eu cliquei, assisti ao clipe caseiro, filmado com celulares e adorei tudo: música, conceito visual, mensagem da faixa. Alguns meses depois, em novembro de 2020, a banda lançou 12, o seu terceiro disco de estúdio, completamente escrito e gravado durante a pandemia. O título é uma indicação lírica para um “relógio da vida“, uma espécie de Relógio do Juízo Final (Doomsday Clock), dispositivo que utiliza uma analogia onde a raça humana está a “poucos minutos da meia-noite da civilização” — a “meia-noite” aí representa a destruição de tudo por uma guerra nuclear. No álbum da AMK, o 12 simboliza essa “hora final”, mas não necessariamente com uma conotação negativa. Pode ser vista como um momento de mudança, o fim de um ciclo e o começo do outro, a morte de uma realidade, de uma situação e a apresentação de uma nova Era — algo que a gente pode ver exposto de maneiras diferentes nas duas faixas iniciais do disco, So Wies War e Gegenwart, esta última, já falando diretamente dos impactos do fechamento de tudo durante aquele ano de 2020.

No geral, 12 é um álbum muito melancólico e relativamente sombrio, o que me parece ter sido uma recorrência, em maior ou menor grau, nos discos que foram concebidos durante aquele período e cuja proposta era realmente representar um pouco daquela realidade (em alguns casos, ganhando contornos críticos, como visto em Não Tem Bacanal na Quarentena ou Inside). Muitas faixas aqui fazem referência direta ao coronavírus, ao fechamento dos cinemas, dos bares e à impossibilidade de se encontrar com as pessoas por um tempo. A solidão do isolamento e andar de um cômodo para outro dentro de casa como se fosse o “grande evento do dia” também aparecem em uma das letras, e podemos ter uma visão muito clara de como isso afetou a banda (os três principais membros, Henning May, Severin Kantereit e Christopher Annen são também os principais compositores). Mas há também uma abertura solar aqui (algo igualmente recorrente nos discos concebidos nesse período), um ponto de esperança, carinho e felicidade em algumas faixas. Não chega a ser algo equilibrado, porque a melancolia é a atmosfera dominante, mas certamente não é a única: sempre há um olhar para a beleza das coisas simples, para algumas descobertas positivas e para a mudança de um pensamento estrutural sobre a vida e o mundo. No fim e no mínimo há um amadurecimento forjado por essa tragédia.

O meu único problema com o disco é a faixa Paloma. Dela, eu não gosto apenas dos primeiros versos, enquanto acho a linha “cuervo y una paloma” belissimamente cantada. Mas a faixa como um todo está deslocada no disco. Mesmo momentos que eu considero inúteis aqui, como a Intro ou o Interlúdio, por exemplo, consigo entender por que estão presentes. O álbum foi gravado de forma crua e os artistas representaram isso na maneira como montaram a lista de canções ou como elas foram produzidas. Entre linhas recitadas como poemas e faixas claramente gravadas em ambientes abertos, encontramos essa Paloma como uma verdadeira estranha no ninho. No lugar dela, a banda deveria ter colocado o excelente single Ausgehen, lançado em 7 de fevereiro de 2020 (alguns dias antes da onda de cancelamentos de shows e grandes eventos na Alemanha e do decreto de lockdown) numa “atmosfera pandêmica” de gravar um clipe. Mas a banda optou por não adicionar o single ao álbum e apenas trabalhar com composições inéditas. 12 tem uma abordagem lírica um pouco diferente do que a AMK trouxe em seus projetos anteriores. É verdadeiramente um “filho de seu tempo“, um dos muitos recortes musicais que, pelo contexto em que foi produzido, se tornou verdadeiramente histórico para esses músicos.

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“Só” — Adriana Calcanhotto

Brasil, 29 de Maio de 2020

Em junho de 2019, sete anos depois de Partimpim Tlês, seu décimo álbum de estúdio, Adriana Calcanhotto lançou o experimental e aquático Margem, finalizando uma trilogia litorânea completada por Maritmo (1998) e Maré (2008). Justamente por conta dos hiatos entre os trabalhos da cantora é que ninguém imaginava que menos de um ano depois, em 29 de maio de 2020, ela lançasse um outro disco. Mas foi exatamente o que aconteceu. Décimo segundo projeto de estúdio da artista, foi gravado entre 27 de março e 8 de maio de 2020, na casa da cantora, no Rio de Janeiro, e foi lançado oficialmente em seu canal do Youtube (além das plataformas de streaming, claro), com um clipe-filme caseiro intitulado Clipão da Quarentena, onde ela cria situações para todas as faixas do disco num fantástico plano-sequência. Todas as faixas do álbum foram escritas durante a quarentena e o disco foi pensado justamente para aquele momento, de modo que sua essência reflete sobre o confinamento e sobre pensamentos que acometeram cada um de nós durante os anos de 2020 e 2021. Produzido por Arthur Nogueira (exceto a faixa Bunda Lê Lê, que teve participação e produção de Dennis DJ), é um pouquinho das nossas angústias, atinos e desatinos em um período complicado para todo mundo.

E tudo começa com Ninguém na Rua, uma observação sobre o lado de fora da casa, numa batida de funk carioca e a representação de uma constatação que certamente apareceu para todo mundo. É a música perfeita para começar esse tipo de disco, que terá a maior parte das faixas cercando tal situação mundial. O Que Temos fala do pouco que sobrou para fazer através das janelas, das sacadas e dos sobrados. A faixa termina com gravações fundidas dos panelaços que aconteceram contra Bolsonaro no final de março de 2020, por ocasião de seus odiosos pronunciamentos na TV. Sol Quadrado é um samba que alfineta o gado bolsominion e traz uma verdadeira (e esperada) promessa para o futuro. Mas esta é apenas uma parte da interpretação da canção, que também pode ser entendida como nós, ouvintes, sendo os prisioneiros da situação, “vendo o Sol nascer quadrado” de nossas casas durante o confinamento. Tive Notícias é uma balada sobre contatos às vezes inesperados que a gente acabou estabelecendo nos meses de afastamento. Lembrando da Estrada é um olhar para o período em que a gente podia viajar e curtir a vida. E Bunda Lê Lê é uma faixa que eu não gosto mundo, mas que faz todo sentido que esteja aqui: um funk onde a cantora brinca sobre uma atividade possível durante a quarentena: a leitura e o estudo.

As outras faixas falam de situações como um ardente de desejo de amor (Era Só, a minha faixa favorita do disco), a lembrança do comportamento de uma pessoa amada (Eu Vi Você Sambar) e uma faixa metalinguística chamada Corre o Munda, reflexão da compositora sobre uma de suas cidades favoritas de Portugal (país onde vive a maior parte do tempo, por ser professora na Universidade de Coimbra) e sobre o processo de compor e encontrar rimas para o nome dessa cidade. Há um sentimento muito forte de isolamento e de sensações melancólicas perpassando esse eu-lírico ‘quarentenado‘ do disco, e Adriana Calcanhotto consegue nos transmitir essas sensações como uma conversa, um espelho de tudo aquilo que a gente também passou.

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“A Lo Cubano” — Orishas

Cuba, Espanha, França, 3 de Outubro de 2000

A formação do grupo cubano Orishas (inicialmente chamado Amenaza) conversa bastante com o ideal cultural que eles pretendem passar através de suas músicas. O resgate das raízes africanas em sua nação (e isso se vê já no nome do grupo, referindo-se às divindades iorubás), a exposição de problemas sociais graves, questões ideológicas de massa e retratos do dia a dia que tocam em diferentes temáticas estão na linha de frente das letras deste conjunto de hip hop, que se formou após os membros conhecerem-se em um programa de intercâmbio estudantil na França. Seu primeiro álbum, A Lo Cubano, tem uma abordagem interessantíssima em relação à vida num país sob bloqueio econômico, mas não para por aí. As faixas trazem uma riqueza musical muito grande, com instrumentos que tipicamente atribuímos à música cubana (a sensação de repetição, em alguns momentos, vem justamente pela presença desses instrumentos muito marcantes, especialmente o trompete) e também discorrem sobre elementos religiosos, sobre relações amorosas, visões de mundo, sentimentos pessoais e família.

É um disco com um grande apelo temático e que facilmente prende o ouvinte. A mescla de rap com linhas melódicas bem cantadas ou narrações de fundo tornam o corpo da obra diferente daquilo que majoritariamente se tinha no hip hop até o final dos anos 1990, mesmo na América Latina. Há um frescor na produção do disco que é perceptível por qualquer ouvinte, e isso tanto na escolha das batidas para cada faixa com sua mensagem específica e, claro, para a maneira como os artistas interpretam as letras. Até hoje não sei se este é o meu disco favorito da banda, porque também gosto muito de Emigrante e El Kilo. Muita gente diz que eles ficaram ruins com o passar do tempo, o que não concordo, mas é verdade que os discos possuem diferença de qualidade. Porém, não acho que nenhum álbum do grupo seja ruim. Esse começo de carreira é um fantástico resgate cultural, antropológico e até mesmo político para uma música nacional tão incrível que, em termos de divulgação e atenção de massa fora de suas fronteiras, no final do século XX, só teve uma outra exposição, em 1999, com o documentário musical Buena Vista Social Club, de Wim Wenders. Definitivamente merece ser conhecido e reconhecido pelas novas gerações.

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“Danzón Nº2” — Arturo Márquez

México, 1994

O danzón é um gênero musical cubano com uma história antiga e rica, começando na Europa do século 17 (com a country dance britânica, que depois passou para França e para a Espanha, com modificações de tempo, instrumentalização, estilo e também um outro nome: contradanza) e que na ilha de Cuba, durante o século 19, recebeu influência africana e de outros gêneros populares na época, como a habanera (um ritmo de quatro notas), o tresillo (um ritmo de três notas) e o cinquillo (um ritmo de cinco notas). No livro Cuban Music: From Son and Rumba to the Buena Vista Social Club and Timba Cubana, a Historiadora e especialista em História Caribenha, Maya Roy, comenta algo que eu sempre achei muito interessante quando falamos de gênero musical: “O danzón foi o primeiro gênero a ter um autor ou criador, Miguel Faílde Perez (1852-1921)“. Esse compositor concebeu em 1877 uma peça com 3 danzóns, sendo que um deles, Las Alturas de Simpson, foi performado num Clube de Matanzas, em 1º de janeiro de 1879, e esta é considerada a primeira performance de um danzón executado de maneira completamente estruturada, com todas as ideias rítmicas, uso de um tipo específico de orquestra e variações dançantes. Em poucos anos, o ritmo se espalhou para outras ilhas do Caribe e se tornou muitíssimo popular na costa Leste do México, especialmente na província de Veracruz. E é dessa tradição que o compositor Arturo Márquez trouxe a sua excelente composição — que faz parte de uma série de outros danzóns que ele escreveu nos anos 1990, embora este segundo seja o meu favorito.

A apresentação do primeiro tema, assim que a composição começa, é pacífica, bela e muito simples. O clarinete assume a linha melódica, como alguém lamentando suavemente em uma noite estrelada. Ele acompanhado pelas cordas em pizzicato (tocadas de forma “beliscada”, com o dedo), piano e uma clava servindo de percussão. O lamento do personagem interpretado pelo clarinete começa a ser respondido por um atencioso oboé, e os dois trocam frases, com o oboé liderando a conversa. Aos poucos, outros instrumentos também dão a sua contribuição para esse diálogo (destaque para as flautas e as violas, nesse ponto), mudando um pouco a dinâmica inicialmente estabelecida, com o tempo acelerando levemente a cada novo grupo de compassos e as cordas e as trompas aparecendo para completar o que nesse momento já é uma conversa orquestral organizada e que ganha intensidade, levando-nos para uma explosão dançante, com percussão intensificada. Para ouvidos brasileiros, não será rara a comparação com uma levada que lembra o samba.

A composição dá essa ideia de confraternização entre diferentes vozes, tendo momentos muitíssimo sensuais ou “noturnos”, românticos e apaixonados, como aquele que começa a se preparar (tomando como base o vídeo que coloco nessa postagem) a partir do minuto 4:43, seguindo com um pequeno arranjo de câmara — com destaque para o violino — e que a partir do minuto 5:29 explode de amor. Desse ponto em diante temos um jogo de diferentes instrumentos participando e interagindo, com uma maravilhosa e dramática pausa dramática aos 7:01, voltando ao drama, adicionando marcantes linhas de destaque para os os trompetes e construindo a ponte que nos levará para o intenso e vibrante final. É possível imaginar facilmente uma história de amor sendo narrada ao longo desse Danzón. E tem mais uma coisa: eu DUVIDO que alguém que ouça essa obra não comece a se remexer e a sorrir a partir de um determinado momento. Não dá para evitar, é mais forte que a gente.

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“Bachianas Brasileiras Nº 1” — Heitor Villa-Lobos

Brasil, 22 de Setembro de 1932

Villa-Lobos tem, hoje em dia, um bom reconhecimento no Brasil e (principalmente) no exterior, mas eu ainda acho que é pouco, comparado ao tamanho da genialidade e da obra desse carioca prolífico e profundamente mergulhado nas raízes nacionais da música, misturando o clássico com o popular. Esta, aliás, é uma das grandes diferenciações de Villa-Lobos em relação a outros compositores clássicos brasileiros. Antes, é necessário fazer uma crítica ao lado fechado dele em relação à música africana e suas muitas facetas e misturas que ocorreram em nosso país, algo que ele não considerava como parte orgânica dos “ritmos nacionais”, mas uma música continental à parte, uma outra cultura com seu desenvolvimento e práticas musicais que não tinha se integrado, de verdade, ao que ele entendia como “música popular brasileira”. No entanto, sua maneira de expressar os nossos outros diversos ritmos em inúmeras composições para orquestra ou instrumentos solo acabou, ironicamente, também colocando muitos elementos da música africana que se desenvolveu e se metamorfoseou no Brasil.

Compostas entre 1930 e 1945, as Bachianas Brasileiras são suítes (nove, ao todo), que homenageiam um compositor que Villa-Lobos amava (Bach) e que traz uma boa mistura de instrumentos, vozes e formações orquestrais (além de dar muita voz aos violoncelos, que era o instrumento favorito dele). Elementos recorrentes na música de Bach são aqui misturados a elementos do folclore brasileiro e à considerada “música caipira“, algo que tem reflexo até na maneira como ele nomeou essas peças (exceto a última delas), trazendo sempre um nome “bachiano“, ou seja, a nomenclatura clássica de algum movimento musical (usando como exemplo esta primeira: Introdução- Animato; Prelúdio – Andante; e Fuga – Un poco animato mais um nome tipicamente brasileiro (usando como exemplo esta primeira: Embolada, Modinha e Conversa). Esta primeira criação da série foi escrita para “pelo menos oito violoncelos”, por isso vemos diversas formações na execução da obra.

Como os violoncelos são a grande estrela da peça, já indicando uma homenagem às Suítes para Violoncelo Solo de Bach, o espectador/ouvinte tem diante de si uma profunda e reflexiva execução musical, com aquela melancolia às vezes doce, às vezes amedrontadora, às vezes surpreendentemente alegre que esse instrumento pode trazer. No primeiro movimento, o estilo-base europeu para a peça é a toccata e a ele se junta a nacional embolada, um estilo de canto e música improvisados, tipicamente nordestinos, e que normalmente traz uma dupla de “cantadores” acompanhados de um pandeiro, dizendo versos numa métrica mais ou menos rígida. É o meu movimento favorito dessa bachiana e consegue brincar muito mais com a ideia de “conversa” do que o último movimento, que leva este nome. Já na segunda parte temos um flerte do compositor com os concertos de câmara de Bach, principalmente com os movimentos mais lentos. A essa concepção se junta a modinha, uma transformação brasileira da moda portuguesa, uma desalentada e compassada expressão sentimental (majoritariamente no sentido amoroso mesmo) que Villa-Lobos expressa de maneira impecável aqui.

E fechando a peça, ele nos traz uma fuga no melhor estilo bachiano, misturada com a dinâmica das canções de amor de sua época, criando uma troca de frases musicais entre violoncelos que, apesar de lembrar muito o estilo de Bach, tem uma animação e uma porção de linhas melódicas que nos trazem sem sombra de dúvidas mais para o Brasil.

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