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Pílulas Musicais | Calle 13 e Residente

Música para pensar a América Latina.

por Luiz Santiago
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O nome desta coluna já dá uma boa ideia daquilo que, metaforicamente, ela irá tratar. Diferente das críticas de música aqui do Plano Crítico, que são formais, bojudas e criteriosamente estruturadas, as Pílulas Musicais são pequenas abordagens críticas a respeito de álbuns ou EPs de diversos artistas, épocas e lugares. Você até pode chamá-las de “mini-críticas“, se quiser, mas é necessário entender que a abordagem não tem exatamente as mesmas preocupações: é essencialmente mais informal e mais solta em termos de exigência analítica. Nesta edição, temos Residente e Calle 13. Boa leitura e boa audição a todos!

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“Residente” — Residente

Porto Rico, 31 de Março de 2017

É sempre emocionante perceber que as estruturas de produção de álbuns de artistas experientes e bem estabelecidos na música proporcionam oportunidades para que experimentem gêneros, culturas musicais e novas formas de criação musical, além da sempre bem-vinda atmosfera familiar que esperamos deles. É claro que essa prática não é uma novidade na indústria, mas grupos ou artistas solo que faziam isso, já tinham essa postura aglutinadora e experimental desde sempre, em suas discografias. O que vemos nessa nova Era musical é uma extrapolação da bolha, com muito mais músicos lançando discos que se propõem abraçar uma variedade muito maior de estilos; modelos mais ousados de produção (da escolha dos instrumentos a todo o mapa dos arranjos, pausas, batidas, maneiras de cantar ou vocalizar) e visitas musicais para além das fronteiras de onde este artista está. Em 2022, por exemplo, tivemos um fantástico exemplo disso, com o álbum Multitude de Stromae. Voltando um pouco mais no tempo, para 2017, encontramos o mesmo padrão no marcante primeiro disco do rapper porto-riquenho Residente.

O ponto de partida, em termos de inspiração para o disco, veio quando o músico fez um teste de DNA e ficou impressionado com o resultado, passando a investigar mais as suas raízes, a história de migração e andanças de sua família e de seus antepassados. Isso o levou a pensar na fusão que ele era, como artista. E então surgiu o ímpeto para fazer a mesma coisa em seu novo projeto. Ao longo de dois anos, Residente realizou uma viagem pelo mundo, passando pelos lugares de onde vem o seu DNA e gravando canções com artistas locais, todos devidamente creditados e com sua parte proporcional de royalties garantida (e isso é importante destacar porque o que tem de grandes medalhões da indústria por aí utilizando o trabalho de músicos menores sem pagar ou mesmo sem creditar nada é absurdo!).

O álbum, nos presenteia com sons típicos da Rússia (especificamente da Sibéria e de Moscou); China, Armênia, Geórgia (especificamente da Ossétia), França, Espanha, Inglaterra, Antígua, Gana, Burkina Faso e Níger. É uma sopa cultural e musical que o artista conseguiu realizar de forma muito bem pensada nesse autointitulado álbum, promovendo lírica, vocal e instrumentalmente uma viagem por sua própria vida, pensamentos, sentimentos e relações interpessoais, amorosas e profissionais. Uma produção que toca o ouvinte de diversas formas, tanto pela letra, quanto pela instrumentalização e pela fantástica produção.

O fato de estarmos falando de um álbum de world music nos dá muitas ferramentas necessárias para analisar os conceitos de raça, alinhamento político-ideológico, igualdade social através do trabalho justamente remunerado e unidade entre os povos. E não se trata de uma produção utópica! Ao longo dos anos, Residente sempre foi capaz de entregar letras que denunciavam a triste realidade das massas e as injustiças e os horrores causados pelos “donos do poder“, mas nunca de maneira derrotista, jogando a toalha, com um discurso de que “não há nada a ser feito“. Muito pelo contrário. Em seus clipes e em suas letras, o compositor sempre abriu portas, janelas e buracos nesses quartos fechados onde estão sufocados os mais diversos grupos humanos sob a égide de uma “plena e invejada liberdade do sistema capitalista” que não existe e nem nunca existiu para todo mundo. Seu pensamento aqui indica a possibilidade de mudança através da organização, da consciência política e de classe, da luta por direitos e por uma sociedade que garanta a todos o acesso ao que é produzido por quem trabalha.

Da participação de Lin-Manuel Miranda, na primeira faixa, à presença de artistas como SoKo, Bombino, Goran Bregović, Francisco “Cholo” Rosario e mais algumas dezenas de músicos, cantores e até mesmo pessoas comuns dos lugares visitados por Residente, o disco chega a uma conclusão que faz par com a enorme riqueza sonora com a qual nos guiou pelas 13 faixas. A produção (assinada pelo próprio compositor-viajante em busca de suas raízes) conseguiu criar uma temática geral que fosse coerente com a exposição das mensagens, e entregue para o público de forma que fosse percebida claramente e, principalmente, sentida como um pulo através fronteiras e culturas de diversos lugares do mundo, falando de problemas sérios e de sentimentos profundos vividos por quase todo mundo… em qualquer lugar. Um disco de braços abertos para a humanidade em luta.

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“Entren Los Que Quieran” — Calle 13

Porto Rico, 22 de Novembro de 2010

A banda porto-riquenha Calle 13 chegou ao cenário musical chutando todos os baldes possíveis. Fundada em 2004 pelos meio-irmãos Residente (René Pérez Joglar, que, aliás, é primo de ninguém menos que Lin-Manuel Miranda) e Visitante (Eduardo José Cabra Martínez); posteriormente tendo a adição de sua irmã iLe ou PG-13 (Ileana Mercedes Cabra Joglar), o conjunto já se fez notar com inúmeras ameaças de morte recebidas e censura pelas rádios de seu país com a icônica canção Querido FBI, um reggaeton cru e politicamente engajado sobre (mais uma, entre milhares) ações criminosas do FBI, que acabou com o assassinato do militante político Filiberto Ojeda Ríos, então líder do grupo revolucionário Ejército Popular Boricua (também conhecido por Los Macheteros), em luta pela independência de Porto Rico. Para quem não sabe, o país é um “território não incorporado dos Estados Unidos“, ou seja, não é um Estado oficial do Tio Sam, mas também não é independente. Em outras palavras, é uma nação com o pior de dois mundos, o de pseudo-colônia e o de pseudo-autogoverno.

Querido FBI colocou os holofotes na banda, cujo primeiro disco, lançado em 2005 (sem essa faixa, inclusive), trouxe o estilo muitíssimo rico de composição de Residente, mais a produção ousada de Visitante. Cinco anos depois, eles trouxeram ao mundo este soco no estômago chamado Entren Los Que Quieran, um disco que segue os padrões de experimentos com diversos gêneros, caminhos musicais, líricos e de performance que a banda já vinha fazendo em suas duas produções anteriores, Residente o Visitante (2007) e Los de Atrás Vienen Conmigo (2008). Neste disco de 2010, os produtores Elías de León e Visitante criaram uma ambientação irônica de espetáculo, ressaltando aquilo que o título do projeto diz e fazendo de cada letra um ato político e social difícil de se esquecer, a começar pela introdução, que é uma sátira absurdamente ácida a respeito da indústria da fama, de como as rádios porto-riquenhas se comportam diante de artistas independentes e politizados e de como a alienação domina o país, que está “mais preocupado com a Miss Universo do que com a educação“.

O estilo circense ou de musical à la Broadway que temos na primeira faixa acena para o que veremos no desenvolvimento do disco: muitos versos que refletem sobre a vida contemporânea em seus mais diversos aspectos, com faixas que vão de referências a casos pessoais de Residente (citando a polêmica — e necessária — crítica que ele fez, em um show, ao governador Luis Fortuño por cortar milhares de empregos) até verdadeiros hinos de caráter fabular sobre a organização dos trabalhadores (a sensacional faixa El Hormiguero) e à belíssima “tese de doutorado em Sociologia” do disco, intitulada Latinoamérica, que conta com a participação de Totó la Momposina, Susana Baca e de nossa querida Maria Rita.

Entren Los Que Quieran é um disco sobre estruturas sociais viciadas e o poder das forças de propaganda para mantê-las exatamente dessa forma; sobre ideologias e alienações e também sobre a esperança de uma luta social organizada da classe trabalhadora. Sobre a visão de um mundo melhor, de um futuro que não seja a oficialização da barbárie da qual vemos a semente em nossos dias. Um disco que pode servir até como material didático pessoal (ponto de partida para estudos, pesquisas e debates), e início de um pensamento sobre as doenças sociais constantes da América Latina. Um projeto crítico musical absolutamente imperdível.

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