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Plano Histórico #20 | O Camundongo e a Raposa: Do Sistema de Estúdio à Compra da Fox pela Disney

por Ritter Fan
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(arte: Rob Dobi)

Em 1948, por decisão por maioria, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no famoso caso United States v. Paramount Pictures, Inc., 334 U.S. 131, obrigou os estúdios de cinema a venderem ou se desassociarem das cadeias de cinema que eram donos ou que tinham acordo de exclusividade, encerrando de vez o chamada Sistema de Estúdio e colocando a produção cinematográfica em uma espécie de recessão — também graças à chegada da televisão — da qual só sairia de verdade na década de 70 (só em termos comparativos, em 1937, os estúdios lançavam 500 filmes por ano e, em 1980, apenas 100). A ação, que se originara 10 anos antes, tinha como base principal a chamada integração vertical, com os estúdios controlando a cadeia de criação, distribuição e exibição de cima para baixo ou de baixo para cima (daí o “vertical”), algo que limitaria a concorrência segundo os sete Ministros que votaram pela “desintegração”.

Claro que os detalhes do caso são muito — MUITO — mais complexos do que deixei entrever acima, mas o presente artigo destina-se a passar um panorama histórico mais, digamos, palatável da questão, de forma a ilustrar o que exatamente representa a aprovação, pela diretoria da Fox, no dia 27 de julho de 2018, da venda da parte da empresa geradora de conteúdo roteirizado (para tornar mais fácil a compreensão, já que toda a parte do negócio relacionada a notícias e esportes permanece com a Fox) para a Disney, por 71,3 bilhões de dólares entre dinheiro vivo e opções de ação, depois de uma aguerrida concorrência com a Comcast. Portanto, começar na década de 40 com a derrocada do Sistema de Estúdio é um passo necessário para uma melhor contextualização.

Afinal, os estúdios — os chamados Big Six — mantiveram-se razoavelmente “desconcentrados” até o final década de 80 (tomarei a liberdade de pular a aquisição da MGM por Kirk Kerkorian em 1969 e da Columbia Pictures pela Coca-Cola em 1980 dentre outras várias aquisições semelhantes senão o artigo ficará longo demais), quando a Sony adquiriu a Columbia Pictures. À época, o VHS estava em alta e o DVD estava a seis anos de ser lançado, o que tornava a aquisição uma “espécie” de integração vertical, considerando que ela colocava a Sony na posição tanto de criadora de conteúdo quanto de fabricante das mídias utilizadas para distribuir o referido conteúdo em uma de suas janelas, então ainda extremamente lucrativa. No entanto, o efeito era bem menor do que a concentração que existia nas décadas de 30 e 40, por razões óbvias, já que a distribuição cinematográfica continuava de fora dessa equação. Mas a porteira foi aberta, sem dúvida.

A Paramount nos tempos do Sistema de Estúdio.

O tempo passou e o mundo do consumo do entretenimento musical e audiovisual mudou radicalmente com o advento da internet para uso público comercial a partir de 1989 e o barateamento e a otimização de processadores e de espaço de arquivamento digital em computadores. Não demorou e esses fatores combinados permitiram que novos entrantes no mercado ameaçassem a Indústria de Entretenimento como um todo, a começar pela Indústria da Música que sofreu seu primeiro e gigantesco baque com a chegada do Napster. Mesmo com a Suprema Corte forçando o encerramento das atividades da empresa, por violação a direitos autorais, na decisão A&M Records, Inc. v. Napster, Inc., uma página havia sido virada e a sinalização de um mundo quase que unicamente digital como forma de consumo de massa de produtos musicais e audiovisuais tornou-se o único possível.

É nesse contexto que empresas como a Netflix, uma startup que, com seu negócio de locação de DVDs usando o correio, já havia pregado o último prego no caixão das locadoras, percebeu a inevitabilidade do caminho que surgia e migrou para o streaming e, em 2012, também para a criação de conteúdo próprio. Que fique muito claro que apenas cito a Netflix por ela ser, atualmente, o mais importante e mais conhecido dos “novos players” no mundo do entretenimento audiovisual, mas não podemos esquecer de outros, como as gigantes Amazon, Google e Apple, além da Hulu (uma joint venture entre Disney, Fox, Comcast e AT&T que passa, agora, a ser controlada pela Disney, com 60% das ações) e Crackle (da Sony).

Se pararmos para pensar, uma empresa como a Netflix produzindo e distribuindo conteúdo é o equivalente à integração vertical proibida pela Suprema Corte décadas antes, com a diferença que não houve uma integração propriamente dita e sua algo como uma evolução natural de uma empresa que queria ser mais do que uma “locadora virtual”. No entanto, essa “integração inata”, digamos assim, estabeleceu vantagens competitivas para as empresas de streaming da qual os estúdios tradicionais de cinema não poderiam desfrutar. A eficiência da operação “eu produzo e eu mesmo distribuo” criou uma clara disrupção no mercado que passou a ser combatida por um caminho de reversão “pelas beiradas” da decisão que acabou com o Sistema de Estúdio.

Napster, o gatinho que rugia.

O advento meteórico do streaming de audiovisual nesse nível de sofisticação, de certa forma, assemelhou-se à de paranoia instalada perante os estúdios clássicos com a chegada da televisão, o que alimentou uma nova onda de aquisições. A primeira foi a fusão, em 2004, da NBC (da General Electric) com a Universal Pictures, criando a NBCUniversal que, em 2009, foi adquirida pela Comcast. Notem, caros leitores, que estamos falando basicamente de duas integrações verticais no espaço de cinco anos: a NBC é a televisão que serve de outlet para o conteúdo produzido pela Universal e a Comcast, como backbone de internet, é responsável pela estrutura com que o conteúdo da NBCUniversal chega ao consumidor. Estou, claro, sendo reducionista aqui, já que a classificação não é tão simples e tão imediata assim, mas o paralelo é justificado.

O que é importante notar é que, a essa altura do campeonato, o cenário já era radicalmente diferente da época em que a decisão da Suprema Corte “desintegrou” o Sistema de Estúdio. A concorrência (ou a ameaça, usem o termo que preferirem) de novos e poderosos entrantes no mercado justificaram a verticalização em razão do aumento de “eficiências” operacionais que reduziriam (uso o futuro do pretérito, pois tudo é sempre “em tese”) o custo e, portanto, o preço final. A concorrência seria beneficiada e não prejudicada. Houve oposição à compra, mas o Departamento de Justiça dos EUA a aprovou em 2011, estabelecendo algumas poucas condições, mas nenhuma referente à forma com que o conteúdo da empresa adquirida seria disponibilizado pela adquirente.

Se a porteira havia sido entreaberta com a compra da Columbia pela Sony, ela foi completamente escancarada com a aquisição da NBCUniversal pela Comcast.

O universo cabe dentro da Comcast.

Ato contínuo, movimentos laterais de concentração – as chamadas integrações horizontais, ou seja, feitas entre empresas da mesma cadeia produtiva – começaram a ocorrer muito fortemente, notadamente tendo a Disney como pivô. A Pixar, originalmente divisão da Lucasfilm e já com um acordo de distribuição exclusiva com a Disney, foi ao infinto e além ao ser adquirida em 2006 pela Casa do Camundongo (7,4 bilhões de dólares), com a Marvel mostrando-se digna de seguir o mesmo caminho em 2009 (4 bilhões de dólares) e, finalmente, a própria Lucasfilm sendo absorvida pela força da Disney em 2012 (4.05 bilhões de dólares).

Não muito tempo depois, poucos se lembram, a própria Fox tentou algo que, se tivesse ocorrido, teria sido a maior fusão da Indústria do Entretenimento da década: a aquisição hostil da Time Warner, empresa que, por sua vez, foi fruto de intensas fusões e alienações desde 1990. Sim, Rupert Murdoch fez de tudo para comprar a empresa dona dos estúdios Warner, Turner, CNN e DC Comics, mas a oferta – de 80 bilhões de dólares – foi interpretada como insuficiente pela diretoria da Time Warner, levando a empresa, por seu turno, a fazer de tudo para tornar suas ações mais valiosas. Um desses movimentos foi anunciar, em 2014, os filmes que formariam o Universo Cinematográfico DC pós-O Homem de Aço. Isso mesmo, meus caros: Batman vs. Superman, Esquadrão Suicida, Mulher-Maravilha e Liga da Justiça, além de The Flash, Aquaman, Shazam e Liga da Justiça 2 (sem contar com Ciborgue, Lanterna Verde e novos filmes solo do Batman e do Superman) nasceram não necessariamente de finalmente colocar em marcha um universo compartilhado nos moldes do da Marvel, mas sim de correr para literalmente emular o modelo de sucesso da Marvel para servir de tônico fortificante para acrescentar valor às ações do estúdio, explicando, de certa forma, a correria que levou ao relativo fracasso da maioria dos filmes (calma, eu disse relativo, pois houve sucesso financeiro, mas não no grau que a empresa esperava).

De toda forma, esse e outros esforços da Time Warner deram frutos e a Fox retrocedeu e mudou suas estratégia, passando a repensar seu posicionamento no mercado, o que a levaria à decisão, algum tempo depois, de desfazer-se de seu lado de criação de conteúdo próprio (filmes, séries de TV, etc.), permanecendo, “apenas”, como uma gigante das notícias e do esporte. Mas estou me adiantando. Voltando à Time Warner, a empresa evitou a integração horizontal, mas não a vertical, já que a AT&T, gigante de telecomunicações, anunciou, ao final de 2016, que faria uma oferta para adquiri-la. O valor total do negócio, aí incluídas as dividas do grupo adquirido, seria de 108,7 bilhões de dólares.

Nascidos de uma tentativa de aquisição hostil?

No entanto, diferente do caso Comcast, o Departamento de Justiça americano tentou bloquear a operação sob alegações de limitação da concorrência. O que diferenciava um caso do outro? Bem, basicamente tudo, pois só na superfície os dois são parecidos. Sem entrar em juridiquês ou economês, duas características saltam aos olhos imediatamente: à época da aquisição da NBCUniversal, a Comcast era um conglomerado de pouco mais de 50 bilhões de dólares fazendo um negócio de 30 bilhões ao passo que a AT&T é um conglomerado de mais de 200 bilhões de dólares fazendo um negócio de 85 (já descontando o que seria usado para pagar as dívidas pré-existentes só para ser justo na comparação). Mais importante ainda, há a questão do alcance: a Comcast pode ser grande, mas não serve todos os estados dos EUA, enquanto que a DirecTV (adquirida pela AT&T) sim. E, como se isso não bastasse, olhando agora para o lado das empresas adquiridas, a NBCUniversal tinha um fatia de mercado e uma variedade de atividades debaixo da bandeira da Indústria do Entretenimento substancialmente menor do que a Time Warner tem.

A ação movida pelo Departamento de Justiça em 2017, porém, chegou ao seu fim – até agora – com uma decisão monocrática (ou seja, de apenas um juiz) em 12 de junho de 2018 que concordou com a aquisição estabelecendo condições relativas a canais de esporte apenas. Ainda que a matéria seja passível de discussão judicial (afinal, vale relembrar que a decisão que quebrou o Sistema de Estúdio começou de forma parecida e foi até a Suprema Corte americana), a sentença deu confiança suficiente para a AT&T efetivar a fusão de um lado e, de outro, para a Comcast renovar seu interesse pela Fox, o que ela fez literalmente no dia seguinte da decisão, aumentando a oferta para 65 bilhões em dinheiro, batendo a anterior da Disney, que havia sido pré-aprovada pela Fox, de 52,4 bilhões só em ações.

No entanto, como com o camundongo não se brinca, a Disney conseguiu aprovação de sua diretoria para engordar a proposta e conseguiu oferecer o valor que finalmente sairia vitorioso, depois que a Comcast, em 19 de julho de 2018, saiu do “leilão” para concentrar-se na aquisição da Sky. Sem oposição e já com uma pré-aprovação do Departamento de Justiça na manga, a integração horizontal entre Fox e Disney passou a acontecer.

Princesa não. Rainha!

O que isso significa?

Bem, como em toda operação dessa magnitude, ainda é muito cedo para especular. Considerando-se a horizontalidade da fusão, espera-se, infelizmente, que milhares de demissões — provavelmente no lado da Fox — ocorram mundialmente, com as operações internas sendo consolidadas pelas equipes da Disney. Além disso, teremos basicamente um estúdio de cinema a menos, o que não necessariamente será compensado pela quantidade de filmes lançada no cinema pela empresa resultante, já que é improvável que a Disney duplique seu output. Considerando que a Disney, hoje, tem 16,23% do mercado cinematográfico e a Fox 11,56%, com a Warner em segundo lugar com 15,12%, a simples soma indica um gigante que abocanhará algo como 28% da bilheteria, mas essa é uma “conta de padeiro” que, provavelmente, não refletirá a realidade com exatidão.

Claro, haverá a consolidação das propriedades Marvel outrora licenciadas para Fox (X-Men e Quarteto Fantástico) debaixo do guarda-chuva do Universo Cinematográfico Marvel hoje em andamento e, também, a consolidação dos direitos sobre Star Wars: Episódio IV- Uma Nova Esperança — cuja distribuição permanecia com a Fox — na unidade Lucasfilm da Disney. Mas e o conteúdo de estúdios e canais menores e de “arte” como a Fox Searchlight e o FX? E o canal de streaming Hulu responsável por produções premiadas como The Handmaid’s Tale? E franquias como Avatar, PredadorAlien e Planeta dos Macacos? E as animações da Fox? E a National Geographic nessa história toda?

É, eu só tenho perguntas, nenhuma resposta. Mas a Indústria do Entretenimento americana é resistente e camaleônica, com uma capacidade grande de se reinventar. A concorrência, hoje, é feroz e uma fusão dessas, por maior que ela seja, se dá em um cenário muito interessante se o encararmos de maneira global, com as empresas de tecnologia transicionando para a criação de conteúdo e novos países — China e Índia especialmente — entrando com força nessa estrutura, algo que pode alterar fundamentalmente o jogo que ainda está sendo jogado. O futuro pode não ser discernível agora, mas o passado nos ensina lições para quem souber ler nas entrelinhas.

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