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Plano Polêmico #17 | Negros nos Quadrinhos e Essa Tal de Representatividade

por Luiz Santiago
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Dezembro de 2017. O Tribunal da Internet e sua via máxima de comunicação, as redes sociais, ressuscitou uma frase do ator baiano Lázaro Ramos dita em 2015 em uma entrevista dada na ocasião do lançamento do seu terceiro livro infantil, Cadernos de Rimas do João. Durante a entrevista à jornalista Júlia Barbon, duas frases do ator e escritor se destacaram. As mesmas frases que dois anos depois seriam subtraídas de seu contexto, modificadas, reproduzidas apenas parcialmente ou com início e final falsos para fazer Ramos parecer “um homem que jamais leu quadrinhos e não sabe o que está falando, portanto está de mimimi, porque assim como não existe mãe solteira — existe mãe — não existe herói negro — existe herói –; e todos nós somos de uma única raça, a raça humana, então esse negócio de representação é uma polêmica desnecessária da geração creme de avelã“… como dizem alguns por aí.

As frases de Lázaro Ramos foram essas:

Herói é aquele que inspira, que abre um novo baú. Por exemplo, gosto muito do menino Kiriku. […]

Muitas vezes faltam referências de heróis negros. Esse rosto diverso é fundamental para a infância, não só para a criança negra, mas para toda a qualquer criança.

Bilbolbul (Itália, 1913); Powerman (Reino Unido, exclusivo para a Nigéria, 1975).

A discussão sobre a temática racial quase sempre se perde em acusações e frases de efeito de verdadeiros produtos de mente sandia, como as que parcialmente compilei em um bloco só no final do primeiro parágrafo deste Plano Polêmico. Tendo isso em mente e todos tendo lido e entendido exatamente o que Lázaro Ramos falou, dá para pensar em algumas coisas a respeito. E a primeira delas é a questão de identificação + a necessidade de representação. De maneira simples: etnia, origem, características físicas, religião, sexualidade, gênero… todo item de qualquer personagem das artes que tenham par com uma caraterística humana terá sua importância para um grande número de pessoas. E esta é uma questão tratada na sociologia desde as representações coletivas de Émile Durkheim, não é algo exclusivo de nossa sociedade líquida. Nós procuramos e nos identificamos com aquilo que se parece conosco, com o nosso meio, com a nossa cara, gostos e espaço de vivência. Agora preste bem atenção no que isto NÃO quer dizer:

  1. Não quer dizer que pessoas negras não possam se identificar com heróis brancos; que mulheres não possam se identificar com heróis masculinos e por aí vai;
  2. Não quer dizer que toda a produção majoritária de heróis brancos, em todo o planeta Terra deva parar imediatamente e apenas histórias com personagens negros devam ser produzidas a partir da meia-noite do dia de amanhã;
  3. Não quer dizer que porque um grupo é minoritário que ele deva ser tratado na arte apenas como poderosos e gloriosos. Personagem é personagem e existem bons e maus; honestos e bandidos; feios e bonitos; gordos e magros; empresários e empregados… exatamente como na vida real. O que não dá carta branca para uma representação preconceituosa. Como já dizia o Capitão Óbvio (e mais uma porção de gente por aí): “uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa“.
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Sjors (Alemanha) e Negro Heroes, uma revista de biografias de famosos e influentes afro-americanos (1947).

Representatividade não é exclusão. É soma. E não é porque existem algumas dezenas de personagens da Nona Arte (nosso foco aqui) que “está bom demais, chega de representar“. O ponto central da conversa é que a arte mostre o mundo da forma como ele é e que personagens de diversos tipos — como diversos são os tipos de humanos na superfície do planeta — tenham suas representações. Não adianta fazer montagem de personagens como Vixen, Super-Choque, Raio Negro (Jefferson Pierce), Tempestade, Pantera Negra, Luke CageBlade, Lanterna Verde (John Stewart), Falcão, Manto, Misty Knight, Cyborg… e achar que a discussão sobre representação negra nas HQs está encerrada porque estes personagens existem; que esta é a situação fixa e imutável dos negros nos quadrinhos, que “a sociedade é branca então os brancos devem ser a maioria representados e acabou” (esse argumento é fresquinho — noite de 4 de dezembro de 2017 –, retirado de uma página do Facebook que eu adoro seguir só para ver as tretas).

Ninguém em sã consciência vai negar a importância que esses heróis têm para a indústria e para as pessoas. E qualquer indivíduo com o mínimo de conhecimento sabe que existem dezenas de personagens negros nos quadrinhos. A discussão de representação segue como aprimoramento disso, não para aí. Pense um pouco:

  1. Falta falar da QUANTIDADE de personagens negros com o mínimo de relevância e também da criação de NOVOS personagens com bons roteiros e boas histórias, não apenas a passagem de manto heroico ou mudança de etnia em outra realidade, como nos clássicos casos do Homem-Aranha de Miles Morales e de Riri Williams, que vestiu o manto do Homem de Ferro (existem outros casos, mas vocês entenderam o meu ponto).
  2. Falta falar da relevância e visibilidade aos heróis negros que já existem, em duas categorias. Primeiro, sem a mania de “lacração ensandecida“, mas com histórias palatáveis, condizentes com o personagem de qualquer minoria retratada. Segundo, fazendo com que o mercado conheça esses personagens. Porque não adianta ter histórias de Dwayne McDuffie, Christopher Priest, Kyle BakerReginald Hudlin ou Marguerite Abouet se essas publicações não são conhecidas do grande público. Este, aliás, é um dos problemas encontrados no caso dos heróis. Existem excelentes personagens negros e de outros grupos sociais nas HQs que simplesmente ninguém conhece! A informação e divulgação também fazem parte desse processo! E claro, a baixa venda está em partes relacionada ao preconceito étnico-racial-social-sexual de milhares de leitores, mas eles não são os únicos a comprar revista, não é mesmo?
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All-Negro Comics (1947) e Lobo (1965), ambas nos Estados Unidos.

Eu poderia continuar e fazer uma seleção não só de heróis conhecidos mas também dos primórdios das décadas de 1930 e 1940, mergulhando na forma como eram representados os personagens negros Lothar, Bungleton Green, Sunnyboy Sam, Bucky e Susabelle (nos EUA) ou, aqui no Brasil, nas histórias do Benedito das tiras do Nhô-Quim de Angelo Agostini, no final do século XIX, ou até mesmo de Benjamin (Luís Loureiro), Lamparina (J. Carlos), Azeitona (Luíz Sá), Pererê (Ziraldo), Preto-que-Ri (Henfil) e dos icônicos Pelezinho e Jeremias, os personagens negros mais famosos de Mauricio de Souza, mas cairíamos no mesmo ciclo, talvez com um único probleminha que eu abordarei para encerrar o Plano Polêmico: a questão histórica.

É preciso ter muito cuidado para não ser vítima de anacronismos ao se propor analisar e/ou criticar determinada abordagem de um grupo minoritário nos quadrinhos — ou em qualquer outra mídia. Da mesma forma que sabemos da chacota, má representação e claros elementos racistas em algumas tramas, nunca devemos perder o contexto social do período em que elas foram produzidas. Na minha crítica de Tintim no Congo eu discuto sobre esse tipo de tratamento “paternalista”, como dizia Hergé, para os negros e pense que essa perspectiva é importante para não fazer exatamente como as samambaias falantes que tiram as frases de Lázaro Ramos de contexto e saem por aí pseudo-argumentando sobre representação dos negros nos quadrinhos, achando que a coisa toda é apenas uma birra fora de tempo entre “negros mimizentos e brancos sempre com a razão”.

Tenham em mente que qualquer grupo em posição de domínio irá, por fatores políticos, sociais e culturais, mostrar e fazer valer aquilo que eles gostam mais: eles mesmos. É por isso que a busca por igualdade civil e representatividade pululam nas discussões em nossos dias e nem sempre é fácil falar sobre isso. Há ainda um longo caminho para esse tipo de representação tornar-se plural e diversa como a própria humanidade.

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Na versão original (depois mudada para uma aula de Matemática) Tintim ensina Geografia aos congoleses dizendo que a Bélgica era a pátria deles.

*

Agora é com vocês! Qual é o seu pensamento sobre a temática da representação dos negros nos quadrinhos? Você já viu esse “meme” do Lázaro Ramos rolando na sua timeline? Você acha essa discussão importante? Opine e chame aquele seu amigo barraqueiro para vir polemizar conosco também!

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