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Crítica | Community – 1ª & 2ª Temporadas

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

ATENÇÃO: O texto que se segue contém um grande volume de spoilers, portanto, se você não assistiu a essas temporadas, não recomendo a leitura. Também aviso que o texto não pode ser menor que este: além de estar falando de uma série muito querida, tive que considerar a análise de duas temporadas, o mesmo critério utilizado para a cotação. Ainda chamo a atenção para as inúmeras indicações que fui fazendo no decorrer do texto. Minha intenção foi localizar melhor o leitor frente a cada episódio citado. Desejo a todos uma boa leitura.

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Community

Criada por Dan Harmon e exibida pela NBC, a série Community figura dentre as produções televisivas mais criativas, engraçadas e inteligentes de hoje, classificando-se como a melhor comédia das últimas três temporadas.

A série é ambientada em Greendale, uma Universidade Comunitária onde o corpo de alunos e professores é composto por pessoas que beiram a “loucura”. O centro desse Universo é um grupo de estudos de língua espanhola formado por Jeff, Britta, Abed, Shirley, Annie, Troy e Pierce, personagens de origem e constituição dramática distintas, capazes de se sobressaírem em momentos diferentes a cada episódio sem anular a performance do outro. Acrescentam-se a esse grupo o Reitor da Universidade e o professor de espanhol (futuro aluno e segurança), o Señor Chang, ou, como ele se autodenomina, “El Tigre Chino”.

Ao lado de outras espécies dessa fauna universitária, os protagonistas fazem da inteligência, da arte e da cultura algo que o espectador tem orgulho de prezar e conhecer. Acima de qualquer coisa, Community é um teste de intensidade cultural, e o nível de aproximação e encantamento pela série está no quanto o espectador pode entender ou gostar do que é dito e mostrado – daí o seleto público do show. Diferente do blockbuster de Chuck Lorre e Bill Prady, que se importa em transformar ciência em “linguagem de feira”, Community não tem o interesse didático em explicar o que é dito, em dissecar ou criar piadas em cima de conceitos repetitivos. Ou você é cinéfilo e tem familiaridade com o mundo nerd e pop ou jamais decodificará a série. Em Community, a piada não é a explicação, é o conceito bem colocado. Na maioria das vezes, o humor é inteiramente cerebral, adaptado de um jogo ou filme, de modo que se o espectador não os conhece, fica difícil achar graça ou aproveitar o que é mostrado, como nos gloriosos episódios Modern Warfare (S01E23), Advanced Dungeons & Dragons (S02E14) e Critical Film Studies (S02E19), exibições que certamente deixaram os espectadores com um sorriso do tamanho do horizonte estampado na cara.

Meta e Linguagem

Duas temporadas e alguns webisódios depois, entendemos que Community é o tipo de série que despreza o riso fácil e ainda cobra neurônios para ser bem apreciada. A meta não é sustentar uma comédia de caráter ordinário, algo que já foi (e é) bastante repetido nas comédias da televisão. Até mesmo os bordões da série, típicos virais das sitcoms, aparecem de maneira natural em Community, não se limitando a usos restritos e particulares, como podemos observar no “Cool cool cool!” de Abed; no “That’s nice!” de Shirley; no “Owww!” de Shirley e Annie e no “I’m a bad / good dean!” do reitor Pelton.

O grupo de roteiristas conseguiu estabelecer um ritmo narrativo ímpar para os episódios, combinando e interagindo a curto, médio e longo prazo os núcleos aparentemente soltos da série. E já nesse ponto temos uma diferença em relação as outras, porque é normal que não haja nenhuma ligação imediata (apenas permanecendo as estruturais) entre os episódios de uma sitcom, mas em Community, percebemos que a cada episódio os roteiristas inserem uma referência do passado, um objeto, um acontecimento, uma piada que não é apenas solta como lembrança, mas como parte de um contexto. Embora seja uma série de comédia, esse ritmo de sucessão narrativa e elementos internos são mais frequentes em séries dramáticas ou no cinema, daí percebemos o esmero com que é trabalhado o roteiro da série.

Enquanto as unidades dramáticas menores são apresentadas e solucionadas em cada episódio, a história geral da série se articula com um rigor impressionante. Em primeiro lugar, não há o “congelamento do tempo”, ou seja, cada temporada representa um ano de avanço no curso dos protagonistas, o que naturalmente já abre portas para a adição de novas personagens, como a selvagem professora de Antropologia no início da segunda temporada, o ex-detendo professor de Biologia e o misterioso professor de Teatro, Professor Professorson, apresentado no episódio Conspiracy Theories and Interior Design, um dos mais inteligentes já vistos na televisão, com um roteiro tipicamente cinematográfico e referências diretas a The MentalistNancy Drew e Annie Get Your Gun.

Em segundo lugar, as sátiras ou as referências não estão postas apenas como componentes formais do episódio (algo muito usado em Os Simpsons, por exemplo), mas o próprio conteúdo obedece às particularidades daquilo que o roteiro traz de novo, por isso, temos uma história viva que nunca parece desinteressante: ela renasce a cada semana ainda melhor do que já fora (compare isso ao ambiente familiar e imóvel que temos emThe Big Bang Theory ou Two and a Half Man).

E por fim, todo novo material e personagens são trazidos para os episódios sem qualquer prejuízo à trama que já existe, e não são necessários minutos inteiros para explicar sua origem, uma vez que essa chegada é trabalhada como parte da história. É o que temos em Basic Genealogy (S01E18), quando a enteada de Pierce aparece para o “Family Day” de Greendale, ou em Custody Law and Eastern European Diplomacy(S02E18), quando um criminoso de guerra albanês chamado Lukka se torna amigo de Troy e Abed e desperta a sexualidade de Britta. A mesma coisa também acontece com grandes grupos, a exemplo dos episódiosDebate 109 (S01E09), quando há o hilário encontro retórico entre os estudantes de Greendale e de outro colégio e em The Psychology of Letting Go (S02E03), quando o grupo de estudos lida com os antigos amigos do escritório de advocacia onde Jeff trabalhava.

Ao agruparmos esses núcleos dramáticos, temos uma trama rica em (auto) referências e, e mesmo assim, de uma leveza impressionante. O resultado é uma série que da sua produção ao resultado final, agrupa, dispersa, alterna e altera os recursos técnicos recorrentes da televisão e faz do próprio sistema o seu material, sabendo contar uma história levemente sequencial em núcleos de episódios mais particulares. É isso que faz deCommunity algo único na TV.

Metalinguagem

No Episódio Piloto, observamos um andamento vagaroso na criação do plot inicial, na apresentação das personagens e nos arcos para o cliffhanger, uma situação comum na maioria dos primeiros episódios em séries de comédia. Essa apresentação inicial pode não impressionar uma parte do público, mas mesmo assim, o humor cinéfilo e com referências diretas e críticas à cultura pop conquistam o espectador atento a essas manifestações. Que cinéfilo não se sentiria atraído por um roteiro que conseguisse adequar, já no início da série, citações contextualizadas dos filmes Recrutas da PesadaAlmôndegasClube dos CincoDirty DancingProposta Indecente e Quem Quer Ser um Milionário; das séries Shark Week e Seinfeld, além de criticar o Oscar de Melhor Roteiro recebido por Ben Affleck em 1998?

Tendo como “catalisador pop” a personagem Abed Nadir (e futuramente a auto-trollagem da série com o aparecimento da personagem Pop-Pop), as muitas referências a filmes, séries, jogos, bandas e particularidades de muitas áreas do conhecimento ganham destaque. A metalinguagem se torna a alma do show, mas nunca entregue didaticamente, o que torna cada episódio visivelmente rico, mesmo que você não tenha visto ou saiba da existência de filmes como Meu Jantar com André (Louis Malle, 1981), Os Eleitos (Philip Kaufman, 1983) ou Alien (Ridley Scott, 1979).

Como já foi dito anteriormente, a forma e o conteúdo da série vivem em constante mudança. Eu duvido muito que um fã não tenha se perguntado sobre um episódio ainda não visto: “O que será que eles aprontarão essa semana?”. Community é uma série imprevisível. Se compararmos o que vimos em Introduction to Statistics (S01E07), onde temos o primeiro, hilário e inteligentíssimo Halloween em Greendale e o que vimos em Abed’s Uncontrollable Christmas (S02E11), o magnífico episódio especial de Natal, com todos animados em stop motion, nem precisamos nos alongar nesse ponto.

Cool!

Mesmo os desafetos de Community concordam com os fãs em duas coisas: o roteiro e a produção da série são maravilhosos. A primeira temporada é levemente inferior às seguintes, mas deixo frisado o “levemente”, e ele se aplica em especial a finalização de uns poucos capítulos (dos 25 que compõem a first season).

A equipe de arte e todos os diretores procuraram manter dentro do que a série precisava pontos únicos de sua criatividade. Prova clara disso são as decorações do escritório do reitor, a sala do professor Ian Duncan e o apartamento de Troy, Abed e Annie. Mas não há prova mais evidente da genialidade da equipe de arte do que nos episódios temáticos. Modern Warfare (S01E23), Epidemiology (S02E06), Critical Film Studies(S02E19) e Paradigms of Human Memory (S02E21) estão no topo da minha lista nesse quesito. O cuidado com os mínimos detalhes e a excelente direção de fotografia desses episódios me fizeram ir aos céus quando os assisti.

Do elenco, devo dizer que mesmo não gostando da personagem de Gillian Jacobs (Britta), percebo o seu valor e sua colocação na série. Por mais teórico que o Jeff Winger de Joel McHale seja, acho-o vital, assim como o seu “antagonista” dramático, o único ator consagrado do elenco, Chevy Chase (Pierce). Danny Pudi (Abed) e Donald Glover (Troy) são os meus favoritos. Com veias cômicas distintas, os dois juntos formam uma dupla de excelente contato com o público, algo muito bom de se ver, exatamente como eram Joe e Chandler em Friends.

A bela Alison Brie (Annie) faz um contraponto ótimo de inocência e aprendizado no meio de tantos “lobos”. O sex appeal da atriz é tremendo, e se opõe perfeitamente à imagem de ingenuidade que ela possui na maior parte da série. Quem ainda duvida, reveja o episódio A Fistful of Paintballs (S02E23) e relembre da Annie recatada de todos os outros para ter um choque. Na terceira temporada ela ainda mostra que pode fazer mais, surpreendendo bastante em episódios como Studies in Modern Movement (S03E07) e principalmente o espetacular Documentary Filmmaking: Redux (S03E08), onde não apenas ela, mas Joel McHale e Jim Rash (o reitor Pelton) atuam maravilhosamente.

Yvette Nicole Brown (Shirley) tem um papel interessante, como a religiosa conservadora de bom coração. A mudança no tom de voz dela mostra o controle da atriz para compor uma personagem cristã que teve um passado tenebroso, mas que mudou de vida. Quando confrontada com essas situações, a atriz mostra uma postura que eu particularmente gosto muito de ver.

That’s nice, Dan Harmon!

Quem assistiu aos extras dos DVDs da primeira temporada e quem acompanha o criador de Community pelo twitter e programas de televisão a fora, sabe que ele é louco de pedra. E é graças a essa loucura queCommunity se tornou um antro de inteligência e qualidade, mas por outro lado, uma pérola injustiçada na NBC, tendo sido forçada a um hiato mais longo que o normal, a uma desagradável mudança do dia de exibição, e por fim, o afastamento de Harmon da série. O que jamais vão conseguir tirar dele são todos os méritos de nos ter presenteado com algo novo, genial e tão viciante como Community. Cool cool cool!

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