Quem nunca ouviu falar da malandragem? E do jeitinho brasileiro? Temas comuns nos debates no âmbito da sociologia, tais tópicos muitas vezes são interpretados com base em pontos de partida literários, como é o caso deste icônico ensaio do crítico literário Antonio Candido, intitulado Dialética da Malandragem, texto basilar dos estudos de qualquer estudante de Letras, focado na análise dos desdobramentos interpretativos de Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, clássico do século XIX. Situado no período definido pelos especialistas como Romantismo, o romance reflete as peripécias de Leonardo Pai e Leonardo Filho, envoltos em situações que envolvem comportamentos tipicamente associados ao brasileiro: mergulhados na desordem, mas conscientes do lugar da ordem diante das coisas, sendo este um dos melhores exemplares de nossa história literária para compreender o Brasil e, sem sombra de dúvida, o brasileiro. Com ecos em personagens posteriores, como o lendário Vadinho, de Dona Flor e Seus Maridos, escrito por Jorge Amado, e Macunaíma, de Mário de Andrade, salvaguardadas as devidas proporções comparativas, o herói construído por Macedo é a “cara” de determinado Brasil, aquele situado entre os “rigores da lei” e as “delícias da corrupção”.
Inicialmente mais travado, com uma linguagem pernóstica mais voltada para quem está habituado com as leituras no âmbito dos estudos acadêmicos, Dialética da Malandragem logo se solta, tal como o personagem delineado na análise. O crítico Antonio Candido inicia o texto instalando um painel das interpretações anteriores de Memórias de Um Sargento de Milícias, reforçando o seu contexto e destacando as observações importantes de José Veríssimo, mas com nenhuma novidade do que havia sido dito até então. Logo depois, apresenta considerações de Darcy Damasceno, autor que analisou o romance com base no picaresco, dando um olhar para a perspectiva estilística da história. Num tom questionador, Candido traz um novo ponto de vista para o livro, mas sem deixar de explicar onde as demais interpretações deixaram lacunas em seus olhares. É um ensaio, acima de tudo, muito respeitoso com aqueles que vieram antes.
Assim, apesar de sua estrutura com elementos pícaros, Memórias de Um Sargento de Milícias está mais para o que o crítico chama de romance malandro. É uma publicação que entra na atmosfera cômica e quase folclórica do seu tempo. Compreendê-lo melhor requer identificar o seu contexto e o amplo circuito de produção de caricaturas e sátiras no período da Regência, bem como nos primeiros anos do Segundo Reinado, época de florescimento de jornais satíricos, além do desenvolvimento das paródias políticas, contempladas nas atividades visuais de Araújo Porto Alegre e na escrita de Martins Pena, conhecido por suas composições que ultrajavam os juízos moralistas, tal como fez Manuel Antônio de Macedo no livro em questão. Tratado também como “Romance Documentário”, tal termo é questionado por Candido, numa escrita que prefere não afirmar veementemente todas as coisas, mas elucidar por meio de perguntas as designações.
Apesar de destacar comportamentos e estilos de vida da época, o romance não pode ser tratado exatamente como documentário, pois segundo o interpretador, há restrições espaciais em sua estrutura narrativa. Ao retratar o que chamamos hoje de pequena burguesia, o livro registra aspectos centrais da ação no Rio de Janeiro, em áreas peculiares que naquele tempo, constituíam o “grosso” da cidade. Sendo assim, trata-lo dentro desta concepção seria ampliar sua abrangência mais restrita. Com capacidade de intuir sobre princípios constitutivos da sociedade, Memórias de Um Sargento de Milícias é um clássico muito popular, algo que não pode ser retirado de seu legado. São fatos, embasados por meio de registros da crítica literária. Em seu desenvolvimento, acompanhamos a trajetória dos personagens em meio ao processo dialético da ordem e da desordem. Para todos os lados, há o jeitinho, a fuga, a busca por algo fora daquilo estabelecido no centro, dominado pela ordem. Isso vai desde os aspectos políticos aos relacionamentos. É diante da oscilação entre o que denominado certo e errado que os personagens gravitam em torno do tempo e do espaço descritos no romance, uma obra peculiar para compreensão do Brasil de ontem e suas ressonâncias na brasilidade de hoje.
Dialética da Malandragem (Brasil, 2004)
Autoria: Antonio Candido
Editora: Ouro Azul
Páginas: 20