Publicado em 1870, A Pata da Gazela, de José de Alencar, nos apresenta uma narrativa centrada em um triângulo amoroso envolvendo Horácio, Leopoldo, Amélia e, logo depois, Laura, mudando o enquadramento das relações que se tornam bifurcadas em conflitos típicos do estilo literário romântico. Horácio, sedutor, mas considerado um homem de comportamento superficial, fica encantado pelos delicados pés de Amélia, enquanto Leopoldo, atraído pelo sorriso dela, desenvolve um amor mais profundo, mesmo ao perceber a sua “imperfeição física”. É assim que, ao longo de suas 96 páginas, o romance explora essa dinâmica entre os personagens, destacando a tensão entre o amor guiado pela aparência, representado por Horácio, e o amor baseado na essência da alma, defendido por Leopoldo. O escritor traz à tona questões de escolha e avaliação, ao inverter a narrativa clássica Cinderela, onde é a jovem quem decide, com a ajuda da amiga Laura, qual dos pretendentes é realmente merecedor de seu amor. O romance sugere que a verdadeira beleza reside nas virtudes morais, colocando a protagonista no papel ativo de decidir seu destino amoroso.
É, como todas as composições do autor, amplamente descritivo, mas tal como Diva, Lucíola, Encarnação, dentre outros, funciona como exercício diletante e também se adequa de maneira mais confortável em propostas pedagógicas em sala de aula, se nós pensarmos os desafios ao levar José de Alencar para as gerações mais atuais, dominadas pela leitura em telas que resumem ao máximo a quantidade de informações escritas em prol dos estímulos visuais. Interessante que além do flerte com Cinderela, a história possui outras referências literárias, como a fábula O leão amoroso, de La Fontaine, que simboliza a dominação de Horácio pela paixão, ressaltando a ideia de que o amor verdadeiro transcende a beleza física e se concentra nas qualidades interiores. Nesta narrativa, La Fontaine utiliza a figura do leão, tradicionalmente associado à força e ao poder, para contar uma história que aborda temas como amor, vulnerabilidade e traição. O escritor romântico, leitor voraz, trouxe para o seu romance pontos cruciais de outras histórias, desaguando em sua trama autoral, reflexos de outras histórias.
A narrativa se desenrola no Rio Antigo e gira em torno de Amélia, uma jovem de 18 anos que se encontra em um dilema amoroso entre dois homens: Horácio e Leopoldo. Horácio é um boêmio obcecado pelo pé de Amélia, cuja admiração começa após ele encontrar uma botina no centro da cidade, levando-o a idealizar a beleza do pé que a jovem calça. Em contrapartida, Leopoldo é um romântico que realmente ama Amélia, aceitando sua condição de pessoa com deficiência e o desafio de sua deformidade, que é habilidosamente disfarçada através do trabalho do sapateiro. A trama mirabolante ganha complexidade com a revelação de que não é Amélia quem possui o pé incomum, mas sim sua prima e melhor amiga, Laura. Essa reviravolta traz à tona a verdadeira motivação de Horácio, que deseja casar-se apenas para satisfazer sua obsessão. Ao perceber que o amor de Horácio é superficial e material, Amélia toma a difícil decisão de rejeitar o pedido de casamento, escolhendo valorizar um amor mais puro e genuíno que encontra em Leopoldo, numa narrativa folhetinesca ideal para um argumento de novela na televisão aberta.
Tal como o que é delineado nas estruturas narrativas dos demais perfis femininos do escritor, o amor é um tema que se estabelece como possessão e liberdade, pois nas obras de Alencar, o tema é complexo, frequentemente representado como uma força tanto redentora quanto opressora. As personagens vivenciam o amor como uma forma de libertação de seus papéis sociais, mas também como uma nova forma de possessão, especialmente nas dinâmicas familiares e matrimoniais. Há também as expectativas sociais e familiares que moldam as escolhas das mulheres. A opressão familiar, o medo da rejeição e a pressão social estão sempre presentes, evidenciando a luta das protagonistas contra as imposições da sociedade conservadora. Ademais, há em A Pata da Gazela uma esquemática representação do amor platônico, afinal, as relações amorosas nas obras de Alencar muitas vezes têm um caráter platônico, onde os sentimentos são elevados, ideais e delicados. Essas representações refletem os valores da época e criam um espaço para a expressão de emoções profundas, mesmo que em um contexto de limitações.
A Pata da Gazela (Brasil, 1870)
Autor: José de Alencar.
Editora: Ática – Série Princípios.
Páginas: 96.