- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios e de toda a franquia Alien.
É absolutamente fascinante como Noah Hawley consegue, beneficiado pelo tempo “esticado” que tem com sua série, trabalhar magistralmente com o que de pior a humanidade tem ao justamente desafiar os conceitos de Humanidade, algo que Ridley Scott fez tanto no longa original de 1979 como no clássico Blade Runner que, lá no fundo, para mim, compartilham o mesmo universo. Depois de um episódio milimetricamente feito para agradar o público mais amplo possível, em que ele fez um remake do filme que deu origem à franquia sem realmente fazer um remake e oferecendo seu próprio e belíssimo verniz, Hawley retorna para o presente e para a Terra do Nunca onde crianças em corpos robóticos adultos vistas como produtos pelos donos do dinheiro se comunicam com xenomorfos, têm traumas muito humanos e são tentados pela figura do diabo, e onde criaturas desconhecidas são tratadas como potenciais armas a serem usados na guerra por hegemonia de poder.
E tudo, como é nossa sina desde tempos imemoriais, é marcado pelo puro hubris, pela nossa capacidade infinita de usarmos a arrogância de nossa suposta superioridade como escudo e espada, deixando evidente que nós, humanos, temos é muita sorte de conseguirmos chegar ao ponto em que chegamos. Se a arrogância entre humanos é padrão, algo visto na negociação entre o simiesco Boy Kavalier e a fleumática Yutani que assegura a guerra entre as duas corporações que dominam dois quinto desse mundo, quando ela é aplicada por humanos a seres que esses humanos consideram inferiores, tudo é quase sardonicamente trágico. Afinal, Kavalier, em suas próprias palavras, criou os híbridos com o objetivo central de ter alguém inteligente o suficiente para conversar, com Wendy, ao longo do episódio, ironicamente notando que ser chamada de humana é ser chamada de inferior (mais sobre a frente) e Yutani, por seu turno, não tem o menor pudor em ameaçar o planeta inteiro ao aceitar o plano de Morrow que consiste em desestabilizar a ilha da Prodigy para ficar com os espólios. Se tivermos a serenidade para transpor essa arrogância ficcional para nossa realidade, veremos que ela não é realmente tão diferente assim e nosso destino, portanto, é igual.
Peguem Wendy, por exemplo. Ela é uma criança humana que teve sua consciência transplantada para um altamente sofisticado corpo adulto, em tese imortal, que, ao ver o tratamento radical em Nibs, que basicamente passa por uma lobotomia para fazê-la esquecer de seu trauma, confirma sua suspeita de que a Humanidade é eminentemente perversa e destruidora, algo que já vinha das pesquisas com os aliens, e que até mesmo aqueles em quem confiava – notadamente Dame Sylvia – são capazes de cometer atrocidades por razões puramente egoístas. Seu olhar de decepção e até nojo para a cientista quando ela está prestes a sair do consultório, perguntando se o problema a que Dame alude é justamente os humanos, isso depois de ela concordar com o pensamento de Kirsh de que é inútil os híbridos insistirem que são humanos. Não duvidaria nada que Wendy, muito em breve, lidere um exército de xenomorfos não exatamente contra a força invasora da Weyland-Yutani, mas contra a Humanidade como um todo.
Mas não fiquemos apenas em Wendy, pois há mais. A aparentemente boba – e até cômica – troca de provocações na “conversa de elevador” entre Kirsh e Morrow é emblemática. De um lado, um sintético que parece desgostar da humanidade por conhecê-la profundamente, por se ressentir de ser um produto prestes a ser ultrapassado e, sim, por não ser humano, de outro um humano com parte cibernéticas que tem uma dívida de vida com a humanidade e que aparentemente odeia seres sintéticos, até mesmo os parcialmente sintéticos, porque sim, ele também se odeia. Ambos são, por assim dizer, filhos da arrogância dos humanos em brincar de deuses ao criar seres pensantes com nossa própria aparência esperando servidão total e irrestrita e a estender a vida de humanos com implantes mecânicos como parte de um projeto para alcançar a imortalidade, projeto esse que, lógico, só beneficiará aquela meia dúzia de pessoas “importantes” que merecem essa duvidosa honra.
Nessa esteira, saber e acompanhar Kirsh monitorando os acontecimentos nefastos na ilha é quase que ver o diabo trabalhando, algo que só eleva o trabalho dramático de Timothy Olyphant que quase alcança um nível semelhante ao de Ian Holm como Ash, mas que, como Hawley, se beneficia do tempo alongado de uma série para deixar as coisas bem mais ambíguas e sem resposta. Afinal, o que exatamente ele quer? O caos? Destruir os híbridos para ele não se sentir ultrapassado? Destruir os humanos porque ele os odeia? Todas as respostas acima? Alguma outra mais insidiosa, como um proto-David? Há um espaço enorme para o showrunner trabalhar o personagem, até porque, como a Wendy deixa claro na conversa com Dame, Kirsch também funciona como um mentor anti-humanidade para os híbridos, o que pode fazer parte de um plano manipulativo maior.
No lado dos humanos que ainda realmente mantêm sua humanidade mais ou menos intacta, o que vemos são, basicamente vítimas ou pessoas desesperadas para fugir da situação kafkiana em que vivem. Arthur Sylvia, ao lutar por sua integridade moral (relativa, claro, mas mesmo assim bem maior do que a de seus pares), é sumariamente traído por sua própria esposa e, em seguida, demitindo, servindo, coitado, de hospedeiro para o xenomorfo como parte do plano de Morrow, com um pouco de ajuda de Slightly (digo “um pouco”, pois o polvo zoiudo ajudou mais). Hermit, tentando compreender o quanto sua irmã – se é que é mesmo sua irmão depois de toda essa discussão sobre Humanidade e tal – está ou não segura por ali, recebe mensagem desesperada de Arthur para que ele faça aquilo que ele já queria mesmo fazer, que é tirar a jovem híbrida dali a todo custo, algo que nem mesmo ela quer, já que sua conexão com o xenomorfo alcançou outro nível. A inocência do jovem é até assustadora, mas de certa forma compreensível, já que ele sempre trabalhou dentro de uma hierarquia rígida militar que, em seu nível, normalmente não tem jogos políticos, mas isso aponta para um potencial fim trágico para ele (talvez não tão horrível quanto o de Arthur, porém) e, talvez, o ponto final de virada de Wendy/Marcy.
Por último, mas não menos importante, temos a versão alienígena de Kirsh, o polvo zoiudo que tudo observa e que age cirurgicamente para causar a queda de dominós no momento certo, no lugar certo. Falo, claro, daquela brilhante cabeçada no vidro que aprisiona Tootles/Isaac na câmera de contenção das “moscas” (eu gostaria muito de saber o que se passou na cabeça do tradutor do título para o português, que fez de The Fly um completamente sem sentido Voe) que, não sem querer, se alimentam de materiais inorgânicos, transformando-o em refeição e mantendo a porta aberta para futuras vítimas. Essa convergência dos frutos da arrogância humana em um lugar isolado como a Terra do Nunca promete fazer dos dois últimos episódios da temporada uma lição sobre como nós somos estúpidos e, claro, será um prazer observar nossa própria derrocada.
Alien: Earth – 1X06: Voe (Alien: Earth – 1X06: The Fly – EUA, 09 de setembro de 2025)
Desenvolvimento: Noah Hawley
Direção: Ugla Hauksdóttir
Roteiro: Noah Hawley, Lisa Long
Elenco: Sydney Chandler, Babou Ceesay, Alex Lawther, Timothy Olyphant, Essie Davis, Samuel Blenkin, Adarsh Gourav, Erana James, Lily Newmark, Jonathan Ajayi, David Rysdahl, Diêm Camille, Moe Bar-El as Rashidi, Adrian Edmondson, Sandra Yi Sencindiver
Duração: 59 min.